domingo, 26 de fevereiro de 2012

Pataquada: O romance, o testemunho e o padeiro de Graciliano Ramos

          Sim, a literatura é omissa. Como todo discurso, aliás, ela é feita também do que não diz. Entretanto, não é sempre que se tem algo como as conferências proferidas por W.G. Sebald em Zurique, reunidas sobre o título de Guerra aérea e literatura. Nele está expresso um polêmico diagnóstico: apesar do horror dos bombardeios às cidades do antigo Reich, na segunda guerra, não há qualquer relato aceitável feito pela literatura acerca deles. Os poucos que existem são publicações posteriores ( O anjo silencioso, de Heinrich Böll), textos suíços ou de exilados (como Elias Canetti) ou livros que mitificam, alegorizam, deturpam, adornam o evento. 130 cidades bombardeadas, mais de seissentas mil mortes, e a literatura em silêncio. Há uma espécie de ressentimento em debater a morte dos alemães, já que a nação que legitima o discurso literário é responsável pelos fatos (a retórica nazista, por exemplo, é percebida nos livros que abordam a questão). Se retratar como vítima, às portas do holocausto, também forçaria demais a barra da verossimilhança. Quando a cultura, da qual a literatura é suculenta fatia, promove o extermínio de inúmeros, como usá-la para se vitimizar? A sombra maciça de Hitler empalidece a ficção.
          Sebald discute o testemunho como um dos fundamentos do fictício. E cai num impasse. Algo que vem fazendo também nos seus romances, pois equilibra suas histórias nas linhas entre a ficção e a confissão. Austerlitz (cujo dispositivo mais explícito estão nas fotografias utilizadas por todo o volume) e Os anéis de saturno são exemplares disso. O testemunho funde memória individual e história, percepção subjetiva e constatação referencial.  Mistura o "como realmente aconteceram" de Ranke, à relativização dos limites do eu, como o paradigma da ego-história já assumiu. O romance é uma forma burguesa. Por essa razão, está regido pela biografia, mas também, como todo enunciado linguístico, é a memória de uma coletividade e o produto de suas convenções. Logo, se presta a iluminar os limites da atitude testemunhal. Ora, Sebald parece propor a tese de que, em alguns momentos, como na geração de 45 alemã, a literatura não é relevante na construção da consciência pública. Nestes momentos ela não guarda, não ensina, não acessa as experiências coletivas. Quando estas extrapolam o limite do suportável, a literatura não encontra verossimilhança que possibilite a mimese, pois a ficção depende das expectativas, que, neste caso, não esperam tratamento ficcional. Parece que na acusação está a solução do problema. 
    Sabe-se que desde Aristóteles há limites para o representável. Basta lembrar a necessidade de mimetizar homens “elevados”, no trágico, e “inferiores”, no cômico. Um dos problemas de Sebald está justamente em querer impor um tipo de representação mais válida que as demais, algo que é no mínimo um disparate histórico. Se a sociedade alemã não construiu as condições discursivas necessárias para aquilo que se esperaria da literatura, resta entender o porquê. As teses do alemão o fazem, mas não sem certa amargura. E este amargor reside no postulado a priori da função da literatura. Não é incomum o silêncio da arte em frente à catástrofe, o que em certos momentos é uma auto-imposição, como nas vanguardas. O dadaísmo buscou o silêncio (“DADA NÃO SIGNIFICA NADA”, diz Tzara no seu manifesto de 1918). O surrealismo tentou, entre outras coisas, absolver o homem por trás do discurso incontrolável, cheio de possibilidades além da razão. Neste caso, silenciar o homem em busca de uma realidade mais substancial, caótica. A negação como testemunho da crise da sociedade burguesa. A arte no limite da própria função.
          No Brasil, ao menos dois casos são essenciais na mescla de ficção e testemunho. Os sertões, de Euclides da Cunha e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Neste, há uma cena que muito me intriga e que pode ilustrar o impasse de Sebald. No início do capítulo 26, Graciliano Ramos, que não tinha condições de escrever devido à falta de espaço e luminosidade, tem seu sofrimento atenuado por um padeiro que lhe oferece seu camarote, melhorando  muito as parcas condições do alagoano. Entretanto, o narrador está perplexo, pois não consegue restituir a figura do sujeito. “Sei que era um homem baixo, moreno, de mangas arregaçadas. O resto perdeu-se. O indivíduo que me livrou daquele inferno e me facultou algumas horas de silêncio e repouso sumiu-se e poucos traços me deixou no espírito. Esqueci as conversas que tive com ele. Provavelmente não houve conversa alguma. Algumas palavras apenas.”
          Notam-se os reflexivos “perdeu-se”, “sumiu-se”. As ações não são empreendidas por um sujeito. A gramática assegura. O padeiro se perdeu na sua possibilidade de ser narrado. A atitude marca, já a realidade por trás do ato, não. O testemunho das condições em que os prisioneiros acusados de comunismo viviam repousa, nesta cena, numa abstração. O alívio do sofrimento não tem cara, nem corpo. Apenas um par de mangas arregaçadas, que não deixam de ser alegóricas da prestabilidade da personagem. O testemunho está também na mitificação, no adornamento e no esquecimento de certos aspectos da realidade. Quanto a isso nada se pode fazer. Basta averiguar as razões que levam a esses esquecimentos e atentar se os propósitos forem exclusivamente ideológicos. Lutar com palavras ainda é a luta mais vã. Entretanto, há manhãs e manhãs. Umas são omitidas para que as demais possam alvorecer.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro. Record, 2005.
SEBALD, W.G. Guerra aérea e literatura. São Paulo. Companhia das Letras, 2011.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

2° videocast do Pato Fáustico - Especial Carnaval 2012!

Olá, foliões! Aproveitem a época propícia e confiram algumas obras que selecionamos para o  carnaval no 2° videocast do Pato. Aí vai a legenda:



  • 00:22 - Apresentação e agradecimentos;
  • 02:00 - Pede, pato! (opatofaustico@gmail.com);
  • 03:30 - 1a parte: François Rabelais;
  • 03:41 - Não é um livro, é uma indecência!;
  • 05:28 - Mais cruel que Cervantes;
  • 06:10 - Corte brusco! rsrsrs;
  • 06:46 - Mudanças na estrutura da língua francesa;
  • 09:00 - Daniel lê trecho do livro!;
  • 10:24 - Quebra da hierarquia sintática;
  • 11:50 - 2a parte: CARNAVALIZAÇÃO;
  • 13:05 - Hierarquia anatômica (observem como a Lu aplica os conceitos no pato!);
  • 16:30 - Cuidado com 120 dias!;
  • 17:20 - 3a parte: Carnaval na Literatura Brasileira: 3 exemplos!;
  • 18:23 - O país do carnaval, de Jorge Amado;
  • 23:07 - Carnaval, de Manuel Bandeira;
  • 26:04 - Restos de carnaval, de Clarice Lispector;
  • 29:20 - Uma promessa para o ano que vem, de Daniel Baz dos Santos;
  • 30:24 - Encerramento;
  • 30:29 - Epílogo, de Manuel Bandeira.



Esperamos que tenham gostado. Adoramos receber comentários, portanto, comentem à vontade, queremos saber a opinião de vocês! Tenham um ótimo carnaval : )

Carnaval e literatura brasileira: três casos ao acaso

O carnaval não é só um dos produtos de exportação mais conhecidos da cultura brasileira. É também um problema da representação de nossa de gente. O carnaval é um uso social do tempo, uma função coletiva para o espaço. É um habitus. Quando Gregório I delibera que seus fiéis abdicariam dos prazeres da vida cotidiana, durante o período que passaria a ser conhecido como quaresma, talvez não soubesse que as pessoas fossem querer descontar as privações. Em 1901, inventa-se a quarta-feira de cinzas que inauguraria o novo período até a páscoa. Por isso, as pessoas adquiriram o hábito de festejar muito antes dos dias de sacrifício. Dias de adeus a carne, ou “carne vale”. Num silogismo fácil: sem quaresma, sem carnaval.
O carnaval na cultura brasileira cresce bicéfalo. De um lado a festa pra inglês não só ver, mas também sambar. Numa imagem que reitera anualmente a concepção de que nosso corpo carrega o germe da festa, da ginga. A outra cabeça do carnaval brasileiro mantém suas raízes seculares e permite a diluição de todas as regras, hierarquias e convenções em rituais populares que não necessariamente ocorrem em fevereiro.
Para a cultura, o carnaval se estabelece como espaço e tempo com vida própria e repertório recorrente. A literatura, como as demais artes, soube aproveitar as possibilidades discursivas da festa e produziu uma série de obras que privilegiem seus temas. Três autores brasileiros, trabalhando em três gêneros distintos (romance, conto e poesia), parecem-me o suficiente para termos uma breve ideia disso.
O primeiro deles é Jorge Amado com seu O país do carnaval, livro inicial de um dos homens mais importantes na construção da imagem do Brasil do século XX, escrito quando o autor tinha de dezoito para dezenove anos. Dentro do grupo de romancistas do nordeste, jovens que agarram o bastião do Brasil a ser descrito, Jorge Amado se destaca pelo mais talentoso inventor de um imaginário propagandístico e, se deturpado, ufanista do Brasil. As mulatas, as festas, a sabedoria dos negros, a religião africana, o malandro, a manha, a sensualidade. Se o baiano não os inventou, ao menos, lhes deu o aspecto que pegou, não apenas por intermédio de sua obra, mas a partir das inúmeras séries, novelas e filmes com inspiração amadiana.
O país do carnaval narra a história de Paulo Rigger, brasileiro educado na França que volta ao Brasil em tempo de carnaval enamorado da prostituta francesa Julie.
Depois de transitar por alguns lugares do país e de ser traído pela amante, depois de se desiludir com a segunda mulher por quem se apaixona, Maria de Lourdes, e perder o amigo Pedro Ticiano, decide viajar novamente para a Europa, em pleno domingo de carnaval.
O início e o fim do livro são um manifesto à parte. O começo é narrado enfatizando o “achamento” da terra, com direito a gritos de “Terra à vista” e tudo. A atmosfera de descobrimento posiciona o texto no início da década de 30, em que uma efervescente campanha intelectual trata de mapear o Brasil não só na ficção, como fora dela, nas pessoas de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado, por exemplo. Por isso, logo na primeira cena, há a representação de uma série de estrangeiros que servem para evocar todo o conjunto de estereótipos sobre o país. Que andam de tangas, que se resume a São Paulo, que é o país do futuro e sua capital é Buenos Aires, por exemplo.
No entanto, na primeira cena em que participa do carnaval, Paulo sente a alma do povo e atinge um raro momento de integridade com o coletivo, vendo as mulatas “cor de canela”, que aparecem pela primeira vez em Jorge Amado. Todos se beijam e se apalpam na representação máxima da carnavalesca onde os indivíduos são iguais e gozam dos mesmo direitos. Rigger inclusive vê “as virtuosas filhas de um moralista exaltado” no carnaval com os seios quase a mostra e entende que a inversão dita as regras.
Mas logo o temperamento do protagonista mudará tudo.
Todo o restante do livro será orientado pela síncrese, confrontação de dois pontos de vista distintos. Isso porque Rigger é um ideólogo e seu temperamento frio, cerebral, cético, demolidor e opositor o faz entrar em confronto com a terra natal, principalmente quando a relação com Julie lhe mostra o quão irracional, selvagem até, seu temperamento pode ser.  Personagens discutem religião, política, literatura, em páginas de qualidade questionável e cujas reflexões geralmente não levam a lugar algum, no pior estilo Graça Aranha. No fim, Paulo contempla a imagem de um país ainda indefinido, cheio de dúvidas e que é o início do projeto amadiano de defini-lo.
O texto também tem o pioneirismo de inaugurar alguns dos procedimentos mais célebres de Jorge Amado. Destaco o uso da cultura popular, mais particularmente do cancioneiro popular, que em muitos dos romances do baiano funcionam como um coro, a definição de um ethos que observa e opina acerca dos acontecimentos narrados. Ao lado das canções, estão também os ditados, como pode ser visto no trecho: “Amorzinho, você está inteiramente brasileiro! Romântico como os seus patrícios de quem você fala tanto. Você só é parisiense na boca... E repetira o ditado que ouvira de uma preta gorda, na porta de um hotel: Quem não te conhece que te compre.”, onde o bordão popular é essencial para expressar a definição da identidade do protagonista.
Paulo começa e termina o livro no carnaval. Decide partir justamente no domingo da festa e esta atravanca a sua saída. Em País do carnaval, a carnavalesca não é ambígua, recebe e despede-se do homem com a mesma cara. O homem é que já não é o mesmo. Expressão máxima do eterno presente que caracteriza o festejo.
Doze anos antes, em 1919, Manuel Bandeira publica Carnaval, seu segundo livro de poemas. O livro sofre os males de sua posição. Feito entre o primeiro livro do mineiro e Ritmo dissoluto, que apontaria para a atmosfera do cultuado Libertinagem, Carnaval não alcançou a popularidade de alguns de seus pares.
Primeiro, aqui está “Os sapos”, terceira peça do livro – depois de “Epígrafe” e “Bacanal” –, decisivo para que Bandeira fosse chamado de “São João Batista do modernismo” por Mário de Andrade. Aqui está também o paradigmático “Sonho de uma terça-feira gorda” em que Bandeira executa os versos livres que marcariam algumas de sua sobras posteriores mais célebres. Mas o que nos interessa é perceber a temática do carnaval como conformadora de uma poética em transição expressa pelo autor. Desde o primeiro texto “Epígrafe”, passando pelo segundo “Bacanal”, “A canção das lágrimas de Pierrot”, “Pierrot branco”, “Arlequinada”, chegando ao penúltimo “Poema de uma quarta-feira de cinzas”, e no último “Epílogo”, o carnaval é recorrência, mas nunca redundância nas estrofes do poeta. E não somente neste livro, mas em toda sua obra.
A escolha do carnaval é de teor modernista na ênfase da temática cotidiana, popular e nacional. A inspiração do lírico pode sim estar na rua. Porém, entre muitas idas e vindas de Arlequins, Pierrots e colombinas, a primeira constatação reside numa incoerência que o poeta enfrenta. Tratar uma festa que preza pela informalidade e espontaneidade a partir do rigor formal (na métrica, ritmo e rimas) exige que Bandeira repense seus procedimentos técnicos. Além disso, não deixa de ser importante que no primeiro livro do autor com lampejos modernistas, a imagem recorrente seja já a da mistura carnavalesca, reiterada depois em “Não sei dançar”, primeiro texto de Libetinagem. Além disso, os inúmeros poemas que apostam no imaginário do carnaval são tratados em muitos padrões rítmicos, métricos e estróficos (ainda que a esmagadora maioria das estrofes sejam quadras populares), o que simula a variedade formal que também marcaria o trajeto do autor.
Passemos a um caso pontual, o derradeiro poema do livro “Epílogo”. Chave de ouro que demonstra a vitória da amargura no pêndulo alegria-tristeza que compõe o carnaval de Bandeira.

Epílogo


Eu quis um dia, como Schumann, compor

Um Carnaval todo subjetivo:
Um Carnaval em que o só motivo 
Fosse o meu próprio ser interior...



Quando o acabei - a diferença que havia!

O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta morta-cor
Da senilidade e da amargura...
O meu Carnaval sem nenhuma alegria!...



 O poema começa por uma referência essencial, o carnaval de Schumann. Temos aqui a intenção expressa de seguir um modelo. Uma tentativa fracassada que ressoa na estrofação. A primeira estrofe leva a crer que teremos um poema em quadras como muitos outros do livro. Entretanto não é o que acontece. A forma desrespeita o planejamento, assim como o empreendimento descrito pelo eu-lírico. A segunda estrofe aposta em outro padrão: a sextilha. A presença da subjetividade impossibilita o seguimento de uma regra e deturpa o plano inicial (expressos no teor antitético do desfecho). A espontaneidade de Bandeira está na amargura. Esse é o seu carnaval, pois aqui está a porta de entrada para a libertação, para a fuga de todas as convenções. A obra de Bandeira provará que o carnaval do modernista é mais complexo. Tomou tristeza, alegria e muitas outras doses indefasáveis.
A melancolia do carnaval compõem também o conto “Restos do Carnaval”, de Clarice Lispector, presente no livro Felicidade clandestina. Sua história começa desestabilizando o clima da carnavalesca. Este é sustentado a partir da ênfase no caráter atemporal, o eterno presente da vida que, aqui, é diluído na memória da protagonista. O carnaval já perdeu seu núcleo essencial. Além disso, a festa é evocada a partir de sua ausência-presença, “Não, não deste último carnaval”, o que subverte sua semântica costumeira. Na verdade o trecho citado é o único em que a estrutura e o conteúdo da frase estão no presente. O carnaval é acionado na evasão de seu próprio espaço e tempo. A protagonista vivencia no restante uma rememoração de outro, marcante no passado.
Este a marcou pois sua mãe estava doente e não havia tempo para festejos. Sua sorte parece que vai mudar quando a mãe de uma amiga sugere preparar-lhe uma fantasia de rosa com as sobras de papel crepom. Mas logo sua mãe piora e a menina tem uma das tantas revelações a que Clarice submete suas personagens. Depois de certa melhora da sua mãe e do encontro com um menino lindo de 12 anos que lhe cobre o cabelo de confetes, a personagem reconhece ser sim uma verdadeira rosa.
Fica claro que o conto narra uma metamorfose. Essa ação evoca o imaginário do carnaval, onde todos podem simular ser outros provisoriamente. Mais uma vez Clarice problematiza o imaginário carnavalesco, pois no caso de sua heroína, a transformação é permanente, centrada no eu. A intimidade enfatiza-se também no fato de a história ser rememorada a partir da narradora escrivã no tempo presente da enunciação. O conflito eu-agora X eu-ontem torna complexas todas as camadas da história. Presente narrativo, fonte do discurso, de um carnaval que não repercute no sujeito em contato com o passado narrado de um carnaval inesquecível. A festa coletiva dilui-se no íntimo do ser e perde todo seu valor comunitário. Mesmo a descoberta da sexualidade (interpretação mais explícita do conto) é pessoal. Sequer há troca de palavras no encontro com o menino ao final, pois a ênfase não está no diálogo, mas no eu. A narradora, como Nogueira do “Missa do galo”machadiano, anda não conseguiu entender a história, mas sua transformação é evidente
Estopim do eu mutável, “Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu queria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma”, Clarice compõe o carnaval “todo subjetivo” de Bandeira.

AMADO, Jorge. O país do carnaval. São Paulo. Companhia das Letras, 2011.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira.  Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2008.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro. Rocco, 1998.
  
Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

Rabelais, carnavalização e o homem imenso


O vigário e médico François Rabelais (nascido provavelmente em 1494) mudou os rumos da cultura ocidental. Helenista convicto numa época em que os franciscanos execravam a cultura grega, nasceu, cresceu e desenvolveu um espírito de contradição poucas vezes vistos na história das artes. Proibido de estudar a língua e cultura da antiguidade clássica, Rabelais dedicará algumas páginas de sua obra para desqualificar os capuchinhos opressores. Volta a estudar com a ajuda do bispo Geoffroy d`Estissac e em 1532, depois de ingressar na faculdade de Medicina, inspirado numa crônica popular da época sobre um certo gigante Gargantua , decide contar as peripécias do filho do personagem já famoso – baseado numa sotia do século anterior - e publica: Pantagruel Roy dês Dipsodes, restitué à son naturel avec sés faicts et prouesses espoventables, compozés par feu M. Alcofribas, absctracteur de Quinte essence. A história, que também apresenta Panurge, principal coadjuvante dos livros, foi um sucesso imediato e também imediatamente condenada pelas faculdades de teologia. Um ano depois, o autor parodia as profecias de Nostradamus no Pantagrueline Prognostiction pour l`na 1533, e em 1534 lança um romance focalizando a história do folclórico Gargantua.
Pai e filho crescem e exaltam a criação humanista, satirizando o sistema convencional do medievo. As características mais marcantes de sua escrita já estão consolidadas nestes dois volumes: lirismo de sabor inusitado, oralidade e inventividade sintática - que transforma a língua francesa para sempre, num momento em que o latim era a língua da erudição. O capítulo VI, do primeiro livro é um verdadeiro manifesto disto, quando o gigante encontra um homem de Limoges, que desfigura a língua francesa com seu “latinório”. Ainda a respeito de suas inovações, André Breton iria aproximar a liberdade discursiva de Pantagruel ao automatismo psíquico, cláusula essencial de seu movimento surrealista. Rabelais anarquiza o significado costumeiro das palavras e desestrutura sua posição nos enunciados. Além disso, as histórias de Pantagrel e Gargantua colocam-se na mediação transformadora entre a grande épica, Luciano e o romance moderno – ao lado de Bocaccio, Chaucer e Cervantes.
Após ter perdido alguns de seus maiores aliados e de ver os teólogos da Sorbonne, ofendidos com seus livros, condenarem seus dois heróis, Rabelais publica O terceiro Livro dos Fatos e ditos heróicos do Bom pantagruel, texto que nos interessa aqui. O périplo do gigante e seus companheiros gerou ainda um quarto livro em 1548, parodiando os relatos de viagem e com a célebre passagem das “palavras geladas”. Ainda há um quinto livro, mas sua autoria neste é dada como parcial.
No terceiro e, principalmente, no quarto volume começa a defesa do humanismo proposta por Rabelais, o pantagruelismo, que consistia em usufruir da plenitude da existência de todas as maneiras possíveis. Panurge, que a partir deste livro passa a representar a desmedida humana, está em dúvida se deve casar ou não; Todo o livro segue o personagem em busca desta resposta, o que o leva a consultar um poeta moribundo, um mago, um doutor, etc.
Há neste texto um momento emblemático da maneira como o autor entende a tradição por trás de si. Trata-se da passagem em que Pantagruel decide junto com Panurge adivinhar a sorte de seu casamento. Para isso, resolve abrir as páginas de Homero e Virgílio, sendo que o trecho aleatoriamente encontrado seria profético do destino do amigo indeciso. Assim é o método de Rabelais. Articular de forma aparentemente caótica a tradição que o precede, mas conseguindo com isso, acesso à consumação de uma nova forma do humano. Sua mistura de referências, anarquicamente articuladas permite que novos sentidos surjam e, a partir disso, possibilita que o ser habite estas novas possibilidades semânticas. Assim, o autor redefine seus predecessores e inventa uma nova dimensão existencial.
A anarquia; o acaso como mote - vide Bridoye, juiz que decide casos nos dados, afastando a ponderação do método da justiça institucional -; a inversão da lógica convencional; tudo isso inspirou um dos grandes teóricos da literatura ocidental, Mikhail Bakhtin, que extrai daqui a base de um de seus mais célebres conceitos: a carnavalização. O termo parte da investigação do sério-cômico na literatura, fundamental para o desenvolvimento do gênero romanesco, apesar da poética ocidental sempre ter privilegiado o primeiro na hierarquia de valores. Para considerar Rabelais na história da literatura, era necessário entender sua vinculação às culturas populares, como a do carnaval. A festa de que se trata aqui está longe de ser aquela conhecida atualmente. A bem da verdade, antes de ser um festejo, o carnaval refere-se a uma forma de existência. Além disso, a visão de Bakhtin sobre o carnaval não é una e muda nos diversos momentos em que o teórico ocupa-se do conceito.
Fico com o livro de maior fôlego, Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Aqui, o carnaval como visão de mundo envolve a necessidade de abertura e incompletude do ser para constituirmos seu valor. Envolve também o escárnio com as atitudes sérias e a inversão alto-baixo. Todas as hierarquias são instáveis, a organização do mundo é uma questão de tempo. Não há divisão entre ator e expectador. A ribalta é o mundo ou vice-versa. Vida às avessas. A razão, o dogmatismo, a univocidade são expulsos da realidade. A vida é exercida no que tem de atual. O enunciado é um eterno presente e não se separa do vivido. O gigantismo de Rabelais é o principal emblema disso. O corpo descomunal do gigante figura a profusão sensorial necessária ao homem. Uma possibilidade imensa de estímulos
A escatologia de Rabelais e a ampla atividade intestinal de seus personagens é decisiva para a natureza da carnavalesca. Insultar as camadas mais altas da sociedade, por exemplo, equivale a fertilizar com esterco, profanar para cultivar a comunidade. O corpo no carnaval se não urina nem defeca, ri, parodia. As referências às aberturas do corpo, com ênfase no ânus e na boca (lembrando que o inusitado também é essencial como o nascimento de Pantagruel pela orelha de sua mãe), são também as imagens carnavalescas da superação do corpo no corpo, que por suas protuberâncias e orifícios se comunica com o mundo. Nada é privado ao sujeito, e por isso também não existe morte, pois o corpo é auto-organizável e no fim sempre resiste enquanto massa modelável.
A palavra carnavalesca também não tem dono. É agitada, grupal, mas o mais impactante é sua característica não-imprimível, análoga aos enunciados da praça pública. Dessa forma, produtor e receptor do discurso se confundem na orgia semântica da rua. Não há risco individual. O peso do verbo é dividido entre as costas nuas.  A palavra carnavalesca é antes uma mediação que uma comunicação. A escatologia mais uma vez serve de imagem explicativa. A palavra-excremento liga o corpo à terra. Sendo a terra de todos, os corpos que a nutre são também uma única coisa. A própria comunicação do homem gigante deturpa a proporção da natureza e sugere que tudo deve ser medido pelo homem. Ele ora é imenso, podendo abrigar reinos em sua boca, ora é menor, principalmente quando convive com os homens. Para se comunicar o corpo também se adapta, pois deve funcionar em comunhão com os demais.
O carnaval é a imagem mais forte do discurso dialógico. Se o enunciado nunca pertence ao homem, mas nasce entre os homens, a festa carnavalesca é seu emblema máximo. Porém, deve-se ter cuidado aqui, pois o discurso carnavalizado pode dar uma volta ao redor de si e tornar-se um monólogo. O monólogo do deboche destrutivo, da caçoada e do alto erradicado em favor do baixo.
          Como não quero perder o caráter introdutório e sumário deste texto (que, por isso mesmo, se propõe incompleto), resta perceber uma última característica de Rabelais explorada por Bakhtin. O conflito entre o corpo do “ego burguês” e o “corpo coletivo ancestral”, proveniente do folclore. Aqui há uma carga compensatória, pouco discutida, e que é central para a valorização do segundo em detrimento do primeiro. O corpo isolado e doente pode almejar o triunfo atemporal da festa popular. A reprodução indiscriminada e nunca interrompida do diálogo garante sua imortalidade. Tal postura abre uma brecha para que se infira que é bom erradicar o individual em prol da utópica festa comunitária. Mas o riso não muda a matéria em si, no máximo transforma a maneira como se percebe o mundo material, o que é fundamental, já que a moral cristã foi paulatinamente estabelecendo uma maneira unilateral e autoritária de se relacionar com a história. Introduz-se o destemor para dele alargar as potencialidades do homem.
          Assim como Dostoiévski, Rabelais foi o meio fundamental para que Bakhtin conseguisse expressar suas ideias, que, se vistas em integridade, podem formar uma filosofia orientada para o ato e suas responsabilidades e que muito deve a dupla grotesca de gigantes que ainda escandalizam os mais impressionáveis.

Para os patos interessados: Ler primeiro o quarto capítulo de Problemas da poética de Dostoiévski, partir para “O cronótopo de Rabelais”, de Questões de literatura e de estética e, por fim, Cultura popular na Idade média, todos de Mikhail Bakhtin.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2008.
__________. Questões de literatura e estética. São Paulo. UNESP, 1998.
__________. Cultura popular na Idade média. São Paulo. HUCITEC, 2010.
RABALAIS, François. O terceiro livro dos fatos e ditos heróicos do bom Pantagruel. Ateliê Editorial. São Paulo, 2007.



Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Pataquada: A verdadeira condenação do habitante irreal


A capa de Habitante irreal, de Paulo Scott, mostra um índio decepado. Felizmente, não se trata de um ser humano, mas de um boneco das coleções Forte apache. A falta deste rosto e o caráter artificial e lacunar da identidade preencherá boa parte do conteúdo do romance. Este conta a história de Paulo, estagiário de advocacia, desiludido com a política petista do final dos anos oitenta, que encontra a índia Maína na beira de uma estrada e se apaixona. A aventura dos dois resultará em Donato, mestiço cuja história toma conta da segunda parte do romance.
A construção da trama garante seu lugar entre as melhores publicações da atualidade e sua importância começa na escolha da temática: o secular contato branco-índio, que, entre outros fenômenos, representa nossa épica e a fundação de um projeto romanesco entre nós, a partir de José de Alencar e seu O Guarani. O encontro dos dois é narrado numa cena extremamente simbólica. Maína, num dia de chuva, “era uma indiazinha segurando uma pilha de jornais e revistas contra o peito. A seu lado, duas sacolas brancas de plástico largadas no chão.” (18) A imagem reencena o encontro de Martim e Iracema, apostando na indefinição do espaço (pouca visibilidade) para explorar os dois elementos visuais de destaque. As revistas e jornais e as sacolas. A índia, como num trabalho de Braque, surge como uma bricolage feita de elementos de ordem distinta. Sua natureza silvícola e abandonada é complemento dos periódicos que carrega. Maína já é mestiça, feita de duas dimensões culturais, e representa, no momento em que Paulo a encontra, um comunicante de dupla orientação. Logo saberemos que ela sabe algumas palavras em português e que lê os jornais, abandonados na estrada, para aprender mais. O bricoleur, improvisador que dos destroços inventa novos usos para as ruínas que o cercam, passará a ser o interlocutor do estagiário.
Paulo decide ajudá-la e essa atitude é política, pois consequente do compromisso em não ser isento de uma geração pós-ditadura. Há no livro a confessa tentativa de representar as três últimas décadas do país e sua geração. A passagem indiscriminada do narrador de uma personagem para outra só reforça a carga coletiva do destino das personagens. Da mesma forma, o caráter de road story, na primeira parte do livro, parece mapear o estado rio-grandense, isto é, o espaço coletivo. Assim, a relação da dupla Paulo/Maína termina por repercutir num hall muito mais amplo de seres, principalmente a partir de Donato. Como Moacyr – o primeiro brasileiro, filho de Iracema e Martin -, ele é fruto de uma relação extra-oficial. O habitante irreal, o pária sem identidade definida que dá unidade ao texto.
Se percebermos que alguns capítulos, entre eles o primeiro, são contados em rodapés referenciados nos títulos e em letra menor, entenderemos que a narração já está contaminada pela presença de Donato. É ele quem justifica a escrita fora de seu espaço tradicional, para simular o deslocamento do próprio conteúdo narrado. O não-lugar do discurso está expresso a partir do seu posicionamento na página. Mesmo o texto reluta em começar, e o faz a partir da condicional “Se tivesse de resumir seus dias de militante político [...]”, num esforço nada natural que sugere um texto forçado e talvez até desnecessário. Engenhosamente, ao fim do romance, Donato, que se arrisca como dramaturgo, constata “Jamais poderei salvar o país ou o mundo, Luisa, as dramaturgias não tem esse poder.”. A desilusão com o ficcional é o último reduto deste novo filho da dor.
A segunda parte do romance traz o lindo nome “ninguém lê direito o súbito” e indica uma leitura interessante. O súbito se manifesta nas principais situações do livro na forma do acaso. Paulo na hora certa cruza com Maína. Na hora certa (ou errada), dois policiais chegam à barraca da índia, onde ele e um amigo estão, e precipitam a separação do casal. Da mesma forma, há o encontro de seu filho com o lar que o adotará (tão ao acaso que a posição da mãe adotiva logo é transformada em outra), e o encontro final dos dois ocorre por intermédio da televisão. Como ler direito estas súbitas transformações, que ocorrem sem preparação causal por parte da narrativa? Paulo Scott parece desenhar o painel do aleatório para desmitificar a semântica decisiva do caráter. O que move o enredo aqui é o acontecimento e as ações diante deles, não a persona. Habitar é se transformar e aceitar a irrealidade do caótico, entender a lógica das contingências. O bonequinho na capa ainda segura a lança e o escudo, mas não pode ver quem o atacou, nem pode olhar para si mesmo. Assim sempre será porque ele não consegue se mover. Esta é sua verdadeira condenação.


SCOTT, Paulo. Habitante irreal. Rio de Janeiro. Objetiva, 2011.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Pataquada: As camisas floridas de George Clooney


Em “Os descendentes”, de Alexander Payne, acompanhamos a trajetória de Matt King, personagem vivido por George Clooney, lidando com uma série de situações ruins: morte da esposa, filhas problemáticas e malcriadas, amigos não muito fiéis, família não tão cortês. Na maior parte do filme, uma coleção de camisetas havaianas, bicolores, cheias de florais e outros símbolos adornam o corpo do ator. O recurso funciona. Por um lado, o vestuário complementa a narração em off do personagem no início do filme, que questiona a imagem paradisíaca do espaço havaiano. Se não estamos realmente no paraíso, sua atmosfera ainda assim se faz presente. Antes de ser irônica, a camisa é um artefato quase mítico, evocando as possibilidades de um tempo imemorial.
Além disso, os florais e tribais em duas cores marcam o caráter ambíguo das situações em que o protagonista se encontra. Na cena em que o ator olha ao lado das filhas e do amigo adolescente de uma delas a extensão de sua terra, o duplo cromático cinza-branco da camisa é expresso até mesmo pelos cabelos do ator, neste filme mais esbranquiçados do que costumamos ver. Sabemos então que tudo tem duas tonalidades, o que o roteiro tragicômico nunca deixa de explorar (vide a corrida cômica do ator após a revelação mais impactante do filme).
Mas não, não estou aqui para fetichisar o figurino do galã cinquentão. Quero usar o recurso simples do filme em paralelo com uma técnica milenar da literatura, que em muitas situações usou o vestuário das personagens em analogia com sua função narrativa, ou mesmo com sua dimensão interior. Lembro-me imediatamente de “O coração das trevas”, de Joseph Conrad, que traz um dos melhores exemplos que conheço sobre o assunto. Aqui, quando Marlowe está prestes a encontrar Kurtz, deve passar por um lugar fronteiriço, habitado por uma criatura emblemática descrita da seguinte forma:
 
Lembrava-me um arlequim. O seu fato fora talhado num tecido vulgar, talvez pano cru, mas estava todo coberto de garridos remendos azuis, vermelhos e amarelos -remendos nas costas, remendos à frente, remendos nos cotovelos, nos joelhos; à volta da blusa trazia um cinto colorido e no fundo das calças dobras escarlates; a luz do sol fazia-o alegre ao máximo e ao mesmo tempo maravilhosamente asseado, porque deixava perceber a cuidadosa aplicação daqueles remendos cosidos.

O personagem é o responsável pela mediação entre Marlowe e a realidade obscura de Kurtz. A roupa de remendos arlequinais é cromática e geometricamente a representação do mestiço. O ser ambíguo, sem caráter. Não à toa, é utilizada por Mário de Andrade na sua poesia como paradigma do homem múltiplo “sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”. A roupa aqui funciona como aquilo que os primeiros teóricos da “ciência literária” – os formalistas russos – chamaram de “máscara”, por intermédio de Tomachevski. Grosso modo: refere-se ao aparato concreto (como gestos e roupas) que constrói o personagem, funcionando análogos à sua conduta/psique. O narrador de Conrad, como a câmera e o roteiro de Payne, não precisa nos contar tudo, pois podemos ativamente entender a semântica da vestimenta. Vejam que Coppola, na adaptação ciematográfica do clássico inglês, Apocalypse Now, substitui a roupa por um conjunto de máquinas fotográficas, o que simula as múltiplas visões que o personagem tem e que podemos ter dele.
Assim também é nas chinelas de Conceição, em “Missa do galo”, de Machado de Assis, ou nas roupas transgressoras de Nina, personagem que desestrutura a família conservadora de “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso (num dos ápices da trama, por exemplo, o patriarca Demétrio ataca as roupas da cunhada). Os hipócritas no sexto fosso do inferno de Dante, com roupas brilhantes, mas que pesam como chumbo, ou a brancura das roupas dos seres no paraíso no canto XXIX, que mostram a importância alegórica que o vestuário pode atingir.  Pároclo, usando a vestimenta de Aquiles e pagando por ter provocado o paradoxo aparência-essência que o mata. Para terminar, Balzac, qualquer Balzac. E em muitos outros exemplos que não cabem numa seção de teor vinheteiro como esta.
Resta lembrar que o recurso pode ser radicalizado e virar o centro da obra. Como em “O capote”, de Gogol, “A manta do soldado”, de Lídia Jorge, ou em “O espelho”, conto de Machado de Assis. Textos em que a vestimenta é depositária dos conflitos do eu e motivação essencial das histórias. Mesmo o cinema tem um ancestral mudo de peso: “A última gargalhada” de Murnau, em que um porteiro velho, demitido, decide voltar para buscar seu antigo uniforme, símbolo do tempo-espaço perdido. Igualzinho as camisas de Clooney. Não ignore as roupas de seu personagem predileto. As aparências às vezes não enganam.


Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Pataquada: Um momento estático, indeciso

Quem folheia Alguma poesia, de Drummond, corre o sério risco de ler isso:

Cota zero

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?


Pior, corre o risco mais grave de fingir que não leu. São apenas oito palavras num livro tão cheio de clássicos. Não falarei aqui do que já foi dito. Da relação do texto com o futurismo de Marinetti, que a essa altura já havia misturado Walt Whitman com Mallarmé e Stirner e tinha “Lês vieux marins” recitado por Sarah Bernhardt. Pelo contrário, quero propor uma alternativa mestiça. Dos três ingredientes básicos articulados pelo fundador do futurismo italiano – maquinismo, anarquia e verso livre -, “Cota zero” problematiza o último, e, a partir deste, todos os demais.
O primeiro verso contém uma única sílaba poética, que a partir da tônica aberta e da articulação fônica de duas oclusivas (“t” e “p”), simula não só a freada brusca do carro, mas também a suspensão manifesta do ritmo. O automotismo (presente também no radical “auto”, a seguir), desnaturaliza a leitura. Porém, faz isso através de um recurso extremamente naturalista: a semelhança entre a mecânica do signo (som) e seu significado.
Se atentarmos para a leitura dos dois versos seguintes, temos o oposto, isto é, a ênfase na metrificação, com intuito de criar um padrão natural. Temos duas redondilhas menores (versos de cinco sílabas) acentuadas na 2ª e na 5ª sílaba. Pois, se o último verso pode ser lido como um hexassílabo (ou – foi – o – au- to – mó), a leitura fluída naturalmente junta “o-au”, numa sílaba só. Podemos desta maneira, obter duas redondilhas. Assim, a musicalidade está presente, mas deve ser conquistada à força. Depois do primeiro verso, tão desfamiliarizador, por qual métrica optar? Drummond não nos dá escolha.
Não se pode ignorar que o ritmo estancado do primeiro verso parece querer retomar uma continuidade padronizada. Estamos, por isso, diante de uma poética. A dubitação expressa na conjunção disjuntiva “ou” é a responsável por coordenar, não só sintática como semanticamente, os dois lados da intranquila moeda vanguardista. Seremos orgânicos ou artificiais? Carregaremos o estandarte da técnica ou do homem? Enunciaremos uma ruptura ou comunicaremos uma convenção?
Drummond oscila entre as duas possibilidades e sua obra é o corolário de uma tentativa de síntese. No limite da vanguarda, o eu-lírico sai no zero a zero. Cota zero. A única certeza, expressa na única frase afirmativa a que o poema se permite, é a da estática. Um momento de reflexão, de indecisão entre dois caminhos. Muito melhor que no radicalismo de Marinetti, há aqui o automóvel, mas também um horizonte limpo para a Vitória de Samotrácia.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. Rio de Janeiro. BestBolso, 2009.


Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Pataquada: A separação

O filme A separação (Jodaeiye Nader az Simin), de Asghar Farhadi, me deu uma aula de literatura. A cada cena, não conseguia tirar da cabeça os lugares em que um narrador pode se colocar ao contar uma história e como isso pode arruinar ou salvar a trama exposta. Começamos num ângulo audacioso. O ângulo que Kafka sempre evitou, o do juiz. E percebemos que este é o pior lugar possível para se estar. Se em Kafka este ângulo não surgia, pois poderia atenuar a angústia, aqui, é angustiante saber que, de saída, não há sentido latente nas relações. O diretor, ao escolher a câmera subjetiva da primeira cena, a associa ao ponto de vista de alguém, isto é, a uma visão de mundo específica. Sabemos que cada lugar da câmera suporta uma consciência neste filme. Somos testados então a habitar a perspectiva de crianças, adultos e idosos. Cada um apresenta uma peça, que em alguns casos pertencem a quebra-cabeças diferentes. Obviamente, a câmera no último plano está afastada. O filme não acabou e um vidro fatia o universo. Os créditos sobem, mas ainda vemos os atores por detrás. O filme não acabou e os créditos nos orientam. Estamos definitivamente do lado de cá da história. Aquela não é uma câmera objetiva, como podemos pensar apressados, mas importa nossa subjetividade para a tela (ver os créditos é uma posição essencialmente extra-diegética). Só essa posição nos é dada. Sentimos um exercício multifocal comparável às narrações literárias de várias perspectivas. Chaucer, Faulkner, Huxley, Lúcio Cardoso, Erico Veríssimo, Choderlos de Laclos. Como é bom pensar tanto em vocês e aproveitar o filme. Obrigado, literatura.


Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

Pataquada

Daí, a gente pensa: onde nos meteremos. Por que literatura? Quando? Pra quê? Fulano se acidentou. A passagem subiu. Que estrada esburacada. Onde meterei minha cabeça cheia de livros? Cheia de citações. Se mal me safo na vida, que faço com os labirintos de Borges? Com os ideogramas de Pound? Com o calhamaço de Proust? Onde enfio tudo isso. Não pense bobagem, pense sério. Não pense sozinho. Pensemos juntos. A seção “Pataquada”, de O pato fáustico, está aqui para discutir literatura e tudo, pois é possível e somos capazes.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

1° Videocast Pato Fáustico - Jonathan Franzen e João das fábulas

Esse é o primeiríssimo videocast do Pato Fáustico. O primeiro debate é acerca do Livro Liberdade, de Jonathan Franzen, e da HQ João das fábulas. Aí embaixo vai uma pequena legenda sobre algumas questões abordadas durante o programa:
  • Abertura;
  • 00:22 - Apresentação;
  • 01:13 - 1° bloco: Daniel fala sobre Liberdade, de Jonathan Franzen;
  • 04:45 - Autobiografia;
  • 05:36 - O romance superestimado;
  • 06:30 - "Entre Tolstói e Gógol, prefiro comparar com Gógol, ou até, em alguns casos, Dostoiévski!"- diz Daniel;
  • 06:54 - Problemas de tradução;
  • 07:16 - A Pior metáfora do século;
  • 07:45 - O pato é decepado;
  • 08:47 - MUITO CUIDADO - revelações sobre o enredo e leitura de trecho;
  • 12:16 - 2° bloco: Lucilene e Daniel falam sobre João das Fábulas;
  • 12:37 - Mais uma história de paródia de velhas fábulas;
  • 13:10 - ATENÇÃO - Daqui em diante, há inúmeras revelações sobre o enredo e algumas páginas são mostradas.
  • 16:58 - O desenho não é nada revolucionário, mas...;
  • 19:32 - As crianças jogam a bruxa no forno;
  • 20:15 - Vale a pena ser lido.
Divirtam-se! Logo após, comentem! : )


As correções – de Jonathan Franzen



O terceiro romance de Jonathan Franzen, As correções (2001), infelizmente paira ao redor da aura bem sucedida que Liberdade (2010), última ficção do autor norte-americano, alcançou. Se pensarmos que o título predecessor apresenta todas as características de seu mais aclamado par, percebemos o que há de marketing e o que há de verdade na explosão de popularidade de Franzen.
As principais características compositivas de Liberdade estão já aqui amadurecidas, e em alguns casos melhor utilizadas. A saga familiar como alegoria da sociedade norte-americana dos últimos tempos; os conflitos de gerações; mais do que isso, os conflitos familiares; as cenas constrangedoras (patéticas, até); enfim, tudo já está neste volume.
Particularmente, o livro narra a história dos Lamberts. Alfred, idoso cheio de manias que sofre de todos os males da velhice, dos quais o mais grave é o Parkinson recém diagnosticado; sua esposa Enid, obcecada com a reunião da família para o próximo natal; e seus três filhos. Chip, roteirista mal sucedido que vai a Lituânia para ilegalmente ajudar um amigo lituano a “enganar investidores ocidentais” (suas palavras); Denise, caçula, chefe de cozinha que perde o emprego devido a uma inapropriada escolha de parceiro sexual; e, por fim, Gary, banqueiro, mais velho dos três e responsável pela roupa suja lavada no fim.
Mais uma vez o espaço íntimo da família é um show a parte de Franzen na maioria dos momentos. O narrador numa linhagem romanesca que remete ao Asno de ouro, de Apuleio, tem acesso a todos os segredos da família. As pequenas maldades feitas pelo casal de velhos, as pequenas chantagens possibilitadas pelas confidências entre os familiares; as obsessões e desejos, tudo é foco de atenção. Como diz o narrador, assumindo a perspectiva de Alfred: “Fechou e trancou a porta do laboratório, porque no final das contas era tudo uma questão de privacidade, não era? Sem privacidade, ser um indivíduo não fazia sentido” (p. 479).
            Através da intimidade dos protagonistas explora-se tudo que precisa ser corrigido, remetendo a mais um título direto e apropriadamente escolhido (com ênfase desta vez na capa da Companhia das letras, cuja foto engloba, de um plano aberto e superior, uma série de casas parecidas do meio-oeste americano, sugerindo a arbitrária escolha do narrador, assim, ampliando a alegoria família-país).
Como pouco falamos do tempo, na análise de Liberdade, fique aqui uma primeira ressalva. A composição temporal é muito particular nestes dois romances de Franzen. Não se trata do tempo subjetivo, pois o narrador heterodiegético jamais se confunde com nenhuma das personagens. Nem objetivo, afinal não só a organização na ordem dos eventos, mas a dilatação ou contração da percepção deles, segue a experiência de cada consciência representada. Essa escolha favorece o conflito de gerações forte durante todo o livro, já que a carga dos efeitos temporais não se sustenta nem na expressão individual, nem na substância cronológica coletiva. É na síntese entre estes dois tempos, ou seja, no tempo da intriga, que se confere a semântica dos atos.
Isso também só é atingido, a partir de um dos principais esforços de Franzen. Refiro-me ao trabalho com as personalidades. O romancista estadunidense aprendeu com o romance realista do século XIX que não há grande acontecimento sem grandes personagens. Pelo contrário, até a busca por um capote pode ser motivo de interesse, se o caráter representado for bem escolhido. Além disso, o autor trabalha para diminuir a distância entre o ato individual e os acontecimentos com relevância global. Qualquer personagem prosaico como Walter, em Liberdade, ou Chip, aqui, pode mudar o rumo do coletivo. Mais do que isso, os atos podem adquirir maior amplitude semântica a partir da escolha do personagem certo. Um exemplo disso é o final do capítulo “O generator”, em que a conversa fútil de duas adolescentes, Cheryl e Tiffany - nunca mais mencionadas no livro, e que conversam sobre glúteos malhados – serve de palco para o encerramento do arco na Lituânia. Outro exemplo: usar a perspectiva de Enid para narrar a queda de certo personagem no cruzeiro.
A ênfase nos detalhes, também está aqui com força. Franzen se preocupa em descrever situações e elementos cênicos que preenchidos de valor podem ser a chave semântica de certas situações. Como aquela em que Gary evita o fio sujo na camisa de linho (p. 239). Trechos que servem como aparato discursivo das próprias personagens, já que permite que elas se posicionem diante do mundo (e nós diante delas), por estratégias mais refinadas.
Falando em estratégias refinadas, estão de volta aqui as cenas constrangedoras. A do salmão no início do livro e praticamente todas as cenas envolvendo o velho Alfred são as mais óbvias. De fato, Franzen nutre uma fixação tipicamente norte-americana pela figura do Loser, personagem cultural, mas que na literatura americana muitas vezes assume a posição de herói trágico, ou como aqui, tragicômico. Afinal são sujeitos não necessariamente ruins, mas com inaptidão para o sucesso. Criados na tradição do self made man, eles nunca cessam de agir, e sempre o fazem da maneira errada. São muitos os personagens da fauna de Franzen que preenchem esta categoria. Mais uma vez a forte carga do personalismo assume a dianteira. Esta carga também reside na secular técnica de elencar personagens secundários que contem suas histórias. Oferecendo um painel social do tipo de Cervantes, Boccaccio ou Chaucer. Recurso fundamental em passagens como a do cruzeiro em que Silvia Roth, que teve a filha estuprada e morta por um negro, conta sua história (314-315)
O autor se permite ousar em certas cenas de teor mais experimental. Há, por exemplo, o diálogo entre um homem e um cagalhão (não desastroso, pois acerta ao carregar no tom pantagruélico, repleto de trocadilhos infames e termos vulgares). Em outro momento, o narrador assume o estranho ponto de vista de um feto em formação (p. 286). O resultado é no mínimo afetado. Mas é na habilidade metafórica que Jonathan Franzen revela sua pior faceta. “Uma almofada tenebrosamente triste ocupava o cérebro de Gary.” (p. 194).“Aquele camelo de decepção empacou diante do buraco da agulha, diante da vontade de Enid em fazê-lo passar.” (p. 485). “O vento estava cheio de dentes, e mordeu-o através de sua jaqueta de couro.” (p. 499). “Engrenagens interligadas de orgulho e amor estavam girando por trás dos olhos de Robin” (p. 523). “A morte, aquela parenta longínqua, aquela emigrante de mau hálito, aparecera de repente nas proximidades.” (p. 549). Estes são apenas alguns exemplos da inabilidade analógica do autor. Felizmente, não só de falhas vivem suas substituições imagéticas. O que prova o trecho: “Sorriso de Hibbard era como uma mordida recente numa fruta macia” acerca do médico simpático que quer indicar um medicamento fortíssimo a Enid (p. 327).
Importante, no mínimo por preceder em tudo o “livro do século” (notem as aspas) Liberdade, o romance As correções merece leitura. Um livro que, apesar dos defeitos, consegue com que nos importemos com seus seres. Consegue com que nos distraiamos no seu mundo. Consegue que ignoremos, ao menos temporariamente, todas aquelas correções que escaparam em sua versão final.

FRANZEN, Jonathan. As correções. São Paulo: Companhia das letras, 2002.


Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

João das Fábulas


João das Fábulas parte de um argumento instigante: João (Jack, no original), o matador de gigantes e de outras histórias, acaba de perder sua vida bem sucedida de magnata do cinema em que contava as próprias histórias. Isso ocorre justamente porque não é permitido por certa organização, liderada pelo “Revisor”, que as histórias das fábulas sejam disseminadas entre o grande público. Os personagens das fábulas estão entre nós, mas há uma equipe secreta de controle que espera que um dia elas sejam esquecidas pelas pessoas. João é preso no asilo “galhadas douradas” junto com outros personagens como Alice, Cachinhos dourados, Humty Dumpty, Doroty e seus aliados de “O mágico de Oz”, entre outros. A mini-série em quatro edições dedica os dois primeiros volumes para tratar da fuga organizada por João. Os outros dois, não tão interessantes, narram suas desventuras por Las Vegas.
Bem... Paródias de personagens da literatura clássica infantil não são mais novidade. No mínimo desde Shrek, as gerações mais recentes já se acostumaram a ver o conteúdo das obras de La Fountaine, Irmãos Grimm e Disney, serem objeto de revisão e atualização - nem sempre coincidindo com o alargamento de seu potencial simbólico ou estético. Após a anti-fábula do Ogro esverdeado, filmes grotescos como Deu a louca na chapeuzinho, ou as reinvenções da Princesa e o sapo, e de Rapunzel, em Enrolados, contribuíram para o desgaste do que ainda poderia ser inovador na série da Dream Works. Mesmo o conto de João e o pé de feijão está sendo repaginado para os cinemas em Jack the giant killer, com estréia prevista para 15 de julho deste ano. Mas vamos ao que interessa...
Os desenhos dos quatro volumes estão corretos. Com ênfase no tratamento do herói, que surge em vários momentos em poses afetadas, repletas de maneirismos (como na cena de página dupla da explosão, no primeiro volume). Isso reforça a personalidade adaptável, cheia de subterfúgios e manhas do protagonista. Aposta-se também no teor erótico das personagens femininas em curvas e posições sensuais (vide Cachinhos dourados), e que, além de enfatizar a necessidade galanteadora (canalha, pode-se dizer) do herói, liga-se à origem dos contos de fada, também repletos de sexualização. Aliás, a violência e a forte carga sexual antes de servir como inversão de valores, serve como recuperação do valor original das fábulas. O “Revisor” as persegue e aprisiona justamente para atenuar paulatinamente as mensagens violentas e sexuais de contos como “Chapeuzinho vermelho” e “João e Maria” (pra quem não lembra, aquela é comida pelo lobo e estes torram a bruxa no fogo). Assim, o caráter paródico da aventura também é ambíguo, já que investe na recuperação de temáticas mais tradicionais. Em contrapartida, apesar do teor anti-heróico das ações de João, certos recurso mantém o clima infantil, como estrelinhas que surgem ao alguém ser atingido e o caráter farsesco, de cartum, dos ferimentos do herói
Outro artifício relevante utilizado é a metalinguagem. A começar pelos títulos seguidos de legendas que contam tudo que acontecerá nos capítulos, a exemplo de romances como Dom Quixote e Pantagruel. A ênfase logicamente está no “como” não no “que”. Além disso, João sabe que é um personagem de ficção e usa isso a seu favor. Pede, por exemplo, para o leitor ler de novo o início da HQ enquanto se recupera de uma noitada de sexo; anuncia sua boa ventura, justificando ser o herói da história. Mas o ponto alto está mesmo quando perde uma de suas amantes e explica que, numa página oportunamente retirada da versão final, ela lhe pedira que ele seguisse sua vida da mesma forma que antes de conhecê-la, o que significa todas as liberdades de bon vivant. A página é prometida para a versão encadernada de sua história. Alguns personagens como o “revisor” interrompem a história principal para desacreditar a lógica das fábulas e uma das vilãs abandona tal função narrativa para explicar certos fatos que não são diegeticamente explicados, ainda que sejam informações laterais.
As fábulas mais atuais também não estão de fora. Assim, os atos finais de João das fábulas investem na apropriação de contos modernos como os casamentos relâmpago de Las Vegas; o destino dos sortudos nos Casinos, o gorducho nerd que consegue uma verdadeira boneca sexual e a citação precisa de novos clássicos como Dirty Harry e Frodo.
Certas escolhas narrativas também são precisas. A quadrinização dá o ritmo certo à narrativa, encurtando quadrinhos quando preciso (na cena em que João irrita-se com o advogado da senhorita Wagner, o espaço em que coube apenas um quadro é ampliado para quatro). Os ângulos também são na maioria certeiros. A começar pelos dispositivos mais básicos, como retratar João de baixo para cima no início da história em que ele ainda é o maioral, ou no tratamento convexo justamente no quadro em que sua sorte mudará, pois acaba de conhecer a senhorita Wagner.
Terminando com uma narração em off, a partir do blog de um jovem nerd (no resto da história é João, apropriadamente, quem narra) e retornando à situação inicial do protagonista, com gosto de conto popular em que o mundo permanece igual após a subtração dos problemas, João das Fábulas é leitura indicada pra quem gosta de histórias divertidas e bem feitas. Recomendação máxima também para os colegas professores que não sabem como abordar literatura de maneiras variadas na escola. A nova fábula de João pode ser no mínimo o petisco antes do prato principal.

João das fábulas
Roteiro/criação: Bill Willingham & Matthew Sturges
Arte: Tony akins
Arte-final: Andrew Pepoy
Cores: Daniel Vozzo
Editora-assistente original: Angela Rufino
Editora original: Shelly Bond


Autores do texto: Lucilene Canilha Ribeiro e Daniel Baz dos Santos

Então, gostaram do João das fábulas? Sua opinião diverge da proposta aqui? Quem não conhece ficou curioso? Quem já leu, no que a HQ chama mais atenção? Fiquem à vontade para comentar.
Abração a todos!

Um romance superestimado


          O cara é capa da time. A Oprah Winfrey leu e indicou. Todo mundo em 2011 quis ser Jonathan Franzen, autor do já aclamado livro Liberdade. O romance, considerado o melhor do ano passado e do século pelo The guardian - o que a companhia das Letras não pode deixar de estampar na capa de sua edição -, narra a história do casal Berglund, Walter e Patty e do “melhor amigo” de ambos, o músico Richard Katz. A trajetória do trio traça um panorama das últimas gerações norte-americanas e seus traumas, muitos deles frutos da busca de todos os tipos de “Liberdade”. Liberdade sexual, cujo ponto principal ainda na primeira parte do livro envolve o “pseudo-estupro” sofrido por Patty. A liberdade pop, traduzida, entre outros fenômenos, na letra da Dave Matthews band (p. 161). A mensagem gravada pela turma de 1920 a expressa no aforismo: “USA BEM TUA LIBERDADE” (p. 201). Liberdade política, associada ao Partido Republicano por Richard (p. 220). E claro, liberdade para os países árabes (p. 275).
             Palavra utilizada muitas vezes durante o livro, a liberdade aparece fundamentalmente enquanto ironia. O triângulo amoroso formado pelo trio combate a vida inteira contra determinadas condições que suprem suas possibilidades individuais. Patty não pôde ser esportista nem gozar do prazer sexual ao lado de Richard; Richard não pôde – entre outras aspirações - permanecer jovem e torna-se um roqueiro do tipo escroto, mas irresistível; Walter pouco pôde. Como contraponto sádico, o narrador do livro se permite todas as formas de liberdade. Consegue narrar os acontecimentos a partir de todas as perspectivas e domina o espaço e o tempo em todos os seus níveis. Mas sua força está mais presente no conflito entre a intimidade das personagens e o contexto social que dá sentido a muitas de suas aspirações.
             Dramas de família como alegoria dos tempos não é algo novo na literatura estadunidense. Está lá em As vinhas da ira, de John Steinbeck. E claro, no protótipo da família moderna, os Compsons de O som e a fúria, de William Faulkner. Tais projetos precisam que a narrativa tenha fôlego para abarcar o cosmos coletivo e pessoal que envolve a consumação da instituição familiar. Não à toa, Liberdade começa com um pequeno prelúdio em que temos acesso à opinião dos vizinhos acerca dos Berglunds, que são descritos e apresentados por múltiplas perspectivas, e que em alguns casos retornarão a partir de outros pontos de vista (como é o caso da saída do filho Joey para viver com a vizinha e namorada). Dos vizinhos, se destacam os Paulsen - que como Cora e Vernon de Enquanto agonizo – servem como doxa, a opinião pública tentando desbravar a intimidade dos vizinhos. Esta estratégia inicia e também irá encerrar o livro, com a visão da comunidade acerca da vida do já envelhecido Walter Berglund.
          Nós leitores, mais afortunados que os Palsen, temos irrestrito acesso a suas experiências mais particulares, e um dos pontos mais emblemáticos do acesso ao íntimo está na autobiografia escrita por Patty, denominada “Todo mundo erra” a qual conhecemos já na página 37. A biografia até o fim do livro será conhecida pelos dois pares da personagem e está na raiz da resolução de seus problemas. O acesso à intimidade aqui pode ser metade do diagnóstico. A patologia está presente na motivação do livro. Patty o escreve por recomendação do analista, um esforço de descobrimento psíquico que tem pares mais interessantes em Lolita, de Nabokov, Complexo de Portnoy, de Philip Roth e Memórias de Adriano, de Margueritte Yourcenar. Um sério ponto fraco desta parte do livro está na voz narrativa que não destoa do narrador geral do livro.
             Comparado por alguns a Guerra e paz – e não de forma gratuita, pois Patty lê e se identifica com os personagens do clássico de Tolstói (p. 192) – Liberdade é um romance superestimado. Alguns diálogos são bons, mas muitos são artificiais e enfadonhos. Existem certas inverossimilhanças, como a relação do pai com Joey que não se resolve de forma orgânica. Bem construído e com cenas já antológicas – como a de Joey procurando a aliança - o livro de Jonathan Franzen se defende bem. Mas o hype é marketing. Livro do século? Acho que o século merece mais.

FRANZEN, Jonathan. Liberdade. São Paulo: Companhia das letras, 2011.


Autor do texto: Daniel Baz dos Santos




Fiquem à vontade para discordar. E obrigada pela leitura :)

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O Pato faústico: o nome, de onde vem, e do que se alimenta

       Um projeto para discutir literatura e outras coisas que a cercam, tendo como ponto de partida os livros e evitando ao máximo a perecividade da resenha. Os meios: a boa e velha ferramenta da análise textual + a boa e nova ferramenta do videocast. Um pacto como o de Fausto em busca do conhecimento, servido por um trocadilho infame com gosto de anedota ruim e gíria popular. O pato somos nós que ainda não entendemos a piada.
     Começam agora nossas atividades. O formato é dinâmico. Tudo é móvel e se moverá pelo bem do diálogo. Contamos com o apoio de todos os que gostam de literatura, quadrinhos, cinema, etc., com reclamações, dúvidas, ideias e outras contribuições. Que nosso pacto fique cada vez mais forte, pois sempre haverá algo que ainda não sabemos. Sejamos o pato. Sem Mefistófeles, nem contratos de sangue (Talvez), fecha-se aqui o contrato. Selado.