sábado, 24 de agosto de 2013

O Pato Fáustico - Alejandro Zambra e Mawil

No Pato Fáustico de hoje falamos de "A vida privada das árvores", de Alejandro Zambra, e "Mas podemos continuar amigos...", de Mawil. Uma história  de amor e espera, outra história  de espera e amor. Aproveitem!!!!!

Uma experiência quadrinística da solidão




Mawil é um quadrinista alemão da nova geração de artistas que vem reinventando os quadrinhos por lá. Em Mas podemos continuar amigos..., publicado pela Zarabatana Books, ele conta uma divertida história sobre seus fracassos amorosos de cunho levemente autobiográfico (característica atual das histórias em quadrinhos alemãs e, por que não dizer, mundiais). Este é seu álbum de estreia, nascido de um trabalho de conclusão de curso.
A narrativa apresenta dois níveis bem claros. Em uma mesa de bar um grupo de amigos questiona o protagonista a respeito de seus casos amorosos. Este, vencendo um constrangimento inicial, passa a contar uma por uma de suas derrotas sentimentais, sendo este o verdadeiro conteúdo da obra, emoldurado pela conversa informal do grupo. A primeira sacada de mestre reside na disposição dos quadros que trata de forma diferenciada estes dois universos. A história em si é contada basicamente por intermédio de três quadros por linha, três linhas por página, enquanto que as passagens dos amigos conversando são representados em dois quadros por linha.
Tendo um tema único como centro, a narrativa se preocupa em representar a experiência humana em situações cotidianas que o envolve, algo que é enfatizado principalmente pela simplificação dos espaços - recurso presente também em Pagando por sexo, de Chester Brown, resenhado aqui - e pelas hipérboles nas expressões. Estes dois recursos são usados na cena em que tenta dar flores de aniversário para garota por quem está interessado (p. 16-17) ou quando resolve sua última e aparentemente mais séria paixão (p. 58)
Sendo assim, o mais importante para o artista é justamente a aclimatação dentro dos grupos de amigos, investindo na tensão emocional/sexual que existe a todo o momento, atmosfera alcançada, por exemplo, quando retrata figuras muito próximas em quadros bem fechados (p. 15- 31). Esta mesma preocupação rende a cena mais impressionante do álbum, com um grupo de amigos em volta de uma mesa (numa rima interessante com a imagem inicial do álbum) que ocupa toda a página (p. 28).  A imersão neste universo de intimidade é adquirida também ao grafar-se de cabeça para baixo as frases das pessoas que se situam na parte inferior do quadro, o que envolve o leitor em um exercício de descoberta que revela o seu voyeurismo e o fascínio por histórias de cotidianos intimistas como esta.
O interesse de seu amigo, manifestado já na contracapa do álbum (mais um indício de que este universo é quase para-textual), também é o nosso próprio interesse. Entretanto, sabendo que a solidão de seu herói é o componente emocional mais forte da trama, o autor não deixa de manter a tradicional separação dos quadros, com sarjetas feitas de lacunas brancas, como que respeitando o universo particular de cada um destes seres, mesmo quando em grupo.
Outra estratégia utilizada para intensificar a solidão do protagonista refere-se à recorrência de cenas em que muitas personagens preenchem um mesmo quadro falando ao mesmo tempo. Tal recurso ressalta a insignificância dos transtornos do herói, já que muitas coisas acontecem ao mesmo tempo, despreocupadas em ajudá-lo/consolá-lo. Quando falam ao mesmo tempo dentro de um mesmo recorte espacial, aos balões cabem a função de situar o leitor no tempo e essa sincronia vozes fortalecem o coro coletivo pluritemporal, o que realça a solidão e isolamento do protagonista.
Numa das cenas mais geniais de sua trama, uma personagem  recebe flores do protagonista e diz para ele, pela primeira vez, a fatídica frase que intitula o álbum (p. 20). No centro do quadro, há um close nas mãos da personagem, que se encontram dentro dos bolsos de seu moletom, enquanto ela diz, surpresa pelo inesperado presente: “Eu tinha ouvido por aí uns boatos, o pessoal comentando... mas nunca imaginei que fosse você”. O gesto do quadro central adquire um sentido muito maior e mais trágico se lido isoladamente, figurando o seu não envolvimento e a sua displicência contida em relação ao interesse do protagonista. Ao fim da página, no meio dos dois, há uma árvore tão solitária quanto ambos. A solidão para Mawil é conseqüência da passividade humana diante do outro. 

Autor: Daniel Baz

Narrar ou não narrar: fora de questão




 Já falamos aqui no Pato Fáustico de Bonsai, de Alejandro Zambra, livro em que o autor associa o cuidado com o arbusto japonês ao relacionamento amoroso entre dois sujeitos. Voltando às analogias vegetais no seu novo livro, A vida privada das árvores, o autor chileno utiliza da imagem de um álamo e de um Baobá para contar uma história imóvel, onde o tempo parece estático, sob o signo da inércia plasmada no caule das grandes árvores.
Para isso, Zambra investe em um enredo simples: o escritor Julián espera a chegada de Verónica, sua esposa, enquanto conta histórias sobre a vida privada das árvores para fazer a filha dela (e sua enteada), Daniela, dormir. Esta ideia da “história dentro da história” ilumina o caráter autorreflexivo e significante do texto, o que se alia ao seu teor metalinguístico, algo claro desde suas primeiras páginas, quando o narrador se protege da expectativa do leitor, anunciando que não há um antagonista para movimentar a narrativa: “Pois não há, na verdade, um inimigo. E o problema é justamente este, não haver inimigos nesta história: Verônica não tem inimigos, Julián não tem inimigos, Fernando não tem inimigos, e Daniela, descontando um coleguinha folgado que vive fazendo caretas para ela, também não tem inimigos.” (p. 12). Por este caminho, explorando a literatura dita “de criação”, o narrador mantém a história e o seu exercício em sincronia, numa refração que irá ser coerente com a temática principal da obra, tornando sua experiência mais angustiante:

“Por enquanto Verónica é alguém que não chega, que ainda não voltou de sua aula de desenho. Verônica é alguém que falta, levemente no cômodo azul – o cômodo azul é o quarto de Daniela [...]” (p. 12)

A ausência da mulher, que se encontra na sua aula de desenho, é a condição para a existência do romance: “O romance continua, embora só para render-se ao capricho de uma regra injusta: Verônica não chega.” (p. 52). Este, por se fundar em uma ausência corre o risco de se desfazer a qualquer momento. A exemplo do que ocorre na maior obra a respeito de uma espera da literatura ocidental, Esperando Godot, de Samuel Beckett, o livro é repleto de tempos mortos e situações arbitrárias que existem quase sem motivo a não ser manter a narrativa viva: “Adiante, a história se dispersa e quase não há maneira de continuá-la [...]” (p. 17); algo também presente quando o narrador fala do romance anterior de Julián com Carla, o qual era preenchido pela “possibilidade do amor”, ou “a iminência do amor” (p. 35). Junta-se a este coro, o trecho no qual, comparando seu relacionamento pregresso com o atual, o narrador conclui por Julian: “Verônica é uma mulher que não chega, Karla é um mulher que não estava” (p. 42)

Correlato a isso são as histórias inventadas por Julián e o romance que está sendo escrito por ele. Inicialmente de trezentas páginas, a obra foi reduzida até sobrar apenas quarenta, cujo núcleo envolve um jovem ocupado em cuidar de um Bonsai, estabelecendo um interessante nível metaléptico entre esta obra e a predecessora. A fuga para níveis narrativos diferenciados é diegeticamente associada à amplitude temporal da narrativa, apesar de sua breve extensão. A consciência de Julián é extremamente retentiva e protensiva ocupando-se do tempo passado (principalmente de seu relacionamento anterior) e futuro (quando imagina uma Daniela crescida), enquanto o presente permanece vazio. Esta ausência de referenciais presentes, preenchidos basicamente pela tentativa de adormecer a menina é a falência da narrativa ocupada com um propósito direto e objetivo.
Ironicamente, Julián defende-se contra o vazio existencial que esta situação cria, imaginando o paradeiro de Daniela, o que o obriga a se movimentar pelo território da narrativa tradicional, elucubração que resulta na criação de um possível antagonista, desdenhado no início do texto:

“Verónica não está presa numa avenida distante, está na casa de um homem que desta vez a convenceu a não voltar mais. [...] É uma explicação redonda, inquestionável: Verônica não chega porque está na cama com o professor de desenho, era uma transa rápida que se transformou numa transa demorada.” (p. 59)

Este futuro próximo imaginado se junta ao futuro hipotético (ou não!) estabelecido para Daniela. Mais uma refração de um narrador que não se relaciona diretamente com o vivido: “De forma quase automática, a vida começaria a penetrar nos dados seguros, objetivos, que ele iria coletando.” (p. 38). Todas estas estratégias se situam num projeto presente na obra de Zambra desde Bonsai, desconfortável com as zonas textuais legadas pela narrativa tradicional e que busca novos modelos estruturais.
Se pensarmos na forma como a cultura contemporânea tem obsessivamente censurado o artifício nas artes, em busca de um naturalismo que torne o objeto estético mais eticamente manipulado, fruto principalmente do documentalismo literário presente no período ditatorial, obras como as de Zambra são um alento. O jogo temporal é só mais um indício disso, já que, negando o andamento natural do tempo, nega-se a racionalidade burguesa e as conquistas culturais de sua civilização, num projeto comum na América Latina, mas que tem em Zambra um expoente incômodo, ainda inclassificável, perdido entre o desejo de narrar e a desconfiança com os resultados deste exercício. Ao confrontar o cânone e o tempo, os romances de Zambra demonstram formalmente esta crise entre o cinismo com a narrativa e a impossibilidade de abandoná-la.

ZAMBRA, Alejandro. A vida privada das árvores. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

Autor: Daniel Baz


terça-feira, 13 de agosto de 2013

O Pato Fáustico - Lolly Willowes, V.I.S.H.N.U. e A confissão da leoa

 No Pato Fáustico de hoje, duas obras excepcionais: "Lolly Willowes", romance resgatado de Sylvia Warnerr e "V.I.S.H.N.U.", excelente quadrinho de ficção científica brasileiro. Para fechar o pacote, indicamos o último romance de Mia Couto: "A confissão da leoa". Aproveitem!!!!!!!!!
                

Lolly Willowes e a liberdade hipotética



“É um momento enternecedor: ei-la em sua casa. Enfim, a pobre criatura já pode ser pura e santa. Ela pode meditar sobre as coisas e sonhar enquanto tece, sozinha, o pensamento solto pela floresta. Enquanto o vento do inverno assovia lá fora aqui dentro, nesta humilde cabana, em contrapartida, há silêncio. Ela possui certos recantos misteriosos onde a mulher deposita seus sonhos.” (p. 38) - Michelet

Sylvia Townsend Warner é uma das mais negligenciadas autoras do século XX. Suas inúmeras aptidões incluem música, tradução, jornalismo, escrita de contos, cartas, diários, poesias e romances, entre outras. Nascida em 1893 na região noroeste de Londres, obteve maior notoriedade pouco antes de sua morte na década de 70.  Lolly Willowes é seu primeiro romance, texto responsável por chamar atenção para seu talento literário. A obra também foi responsável por fazê-la ganhar notoriedade nos EUA, o que permitiu que fosse editora do New York Herald Tribune.
O romance, publicado originalmente em 1926, permite várias leituras, das quais a biográfica, a sobrenatural e a feminista são as que mais se destacam. Elas se sustentam em uma trama de duas facetas, uma prosaica e outra maravilhosa, ambas consumadoras do ideal simbólico conquistado pelo livro. Laura Willowes, a protagonista, é uma legítima solteirona. Depois da morte do pai, ela, com 28 anos, vai morar com a família de seu irmão, quando deixa de ser Laura para tornar-se simplesmente a “tia Lolly”. Depois de 10 anos sendo “útil” à casa, decide se mudar para o vilarejo de Great Mop e se torna bruxa. Ok, foi mesmo de supetão. Vamos com mais calma, vendo como a trama organiza tudo isso.
As primeiras páginas do romance são regidas pelo “ritmo regular dos dias e das refeições” (p.43). A leitura provoca no leitor a exata sensação de uma vida sem percalços ou qualquer fenômeno inesperado, estando a cargo de Lolly produzir o acaso neste mundo regrado. Aqui existe a primeira audácia temática do livro, já que a cultura geralmente associa, aos lugares longe dos centros urbanos, o ideal de paz, inocência, atraso e limitação, enquanto à cidade cabia a ambição, as oportunidades, a conturbação (basta ler a introdução de um clássico sobre o tema: O campo e a cidade, de Raymond Williams). Em Lolly Willowes, o espaço citadino de Londres é a morada do hábito e da paz, constante de uma vida sem reveses, enquanto somente no campo (e na natureza como um todo) há espaço para as mudanças, no caso, o real progresso da personalidade humana.
Obviamente, isso se incorpora ao conhecido arquétipo da “mulher selvagem”, mas preferimos relacioná-lo à ideia subversiva mais geral incorporada no percurso da protagonista. Para isso, é interessante notar  de que forma, durante todo o romance, as conexões entre Laura e o mundo natural são sutilmente demonstradas pelo livro. Desde jovem, Laura era leitora ativa e conhecia muito bem as plantas, duas atividades que se reúnem no livro que publicara quando nova, chamado A saúde à beira da estrada, sobre ervas medicinais.
Contudo, um trecho emblemático, mostra a ruptura com o referencial natural, após a morte da mãe, o que a insere em uma realidade absolutamente patriarcal:

“Laura pranteou a mãe usando saias que chegavam quase até o chão, pois a Srta. Boddle, a costureira da família, era dona de grande sensibilidade e não achava que pernas à mostra combinassem com luto. Com efeito, as de Laura eram muito esbeltas e ágeis e gostavam de subirem árvores e pular feixes de feno, não tendo desejo algum de se aposentar do mundo e pertencer a uma mocinha. Quando porém, vestiu as roupas novas de odor tão estranho e,  olhando para o espelho, se viu triste e adulta, Laura aceitou o inevitável. Mais cedo ou mais tarde, teria de se sujeitar à condição de moça respeitável [...] mais parecia significar uma espécie de aprisionamento.” (p. 20) (grifo meu)

Justamente por estar inserida em um universo urbano que destoa de sua real personalidade, o narrador evoca uma série de relações e analogias entre ela e o mundo natural, o que fica claro neste trecho em que seus sentimentos são traduzidos por fenômenos da natureza: “Agora ele  (o sofrimento) a visitava como súbitas tempestades de neve, um repentino escurecer do céu, uma brancura e um frio efêmeros que se abatiam sobre ela.” (p. 39)
Estas comparações são perseguidas pelo texto, seja quando Laura vê em um de seus pretendentes a figura do lobisomem, seja quando se colore como um gerânio colhido (p. 8), ou quando seu padrão comportamental repousa no ritmo natural:

“Com o passar do tempo, Laura se habituou a essa recorrente febre outonal, tão precursora da estação quanto as folhas mortas ou a primeira geada.” (p. 65)

 Contudo , o ponto alto deste recurso reside no momento em que a protagonista passa a transformar mentalmente os habitantes do vilarejo em animais, isso antes de descobrir que é uma bruxa.

“Para se distrair, moldara a massa na forma dos moradores da aldeia. Desdobramentos curiosos tiveram vez durante o processo. O porco-espinho da srta. Carloe inchara até ficar quase tão grande quanto sua dona. A massa escorrera, deixando um grande buraco no lado do corpo da srta. Carloe. O Sr Jones ficara corcunda, como se carregasse o diabo num saco. E o gracioso retrato da srta. Larpent, jovem e elegante em um traje justo de amazona, acabara torto e deformado até lembrar mais um tronco retorcido de árvore do que uma mulher.” (p. 115)

Desta forma, o romance interliga sua natureza selvagem à sua capacidade mágica/comportamental de transformar o mundo ao seu redor. Sendo assim, a necessidade de transmutação da realidade, antes de ser um fenômeno fantástico tematizado pela fábula, é a conquista de um imaginário livre e de uma nova perspectiva acerca da sociedade circundante, em um movimento alegórico do próprio papel da ficção.
Por conseguinte, quando descobre que o irmão perdeu metade de seu dinheiro investindo em negócios sem retorno, mais uma vez é o despojamento do mundo urbano e o contato com o mundo natural que a tranqüiliza:

“Laura se calou. Esquecera-se de Henry e das coisas desagradáveis que pretendia dizer a ele. Chegara às fímbrias do bosque e sentia a brisa fresca no rosto. Tanto se lhe dava o burro, ou a casa, ou mesmo o pomar ao crepúsculo. Se não pudesse colher as frutas de suas próprias árvores, não faltariam ervas comuns e frutinhos do bosque crescendo onde quer que fosse que ela houvesse por bem procurá-los. Quando se envelhece, o melhor é despir-se das posses, despojar-se como uma árvore, ser quase apenas terra antes de morrer.” (p. 87)


 Ao fim do livro, quando Laura descobre na comunidade de Great Mop outros indivíduos ligados à magia e encontra em pessoa o próprio diabo, todo nosso percurso parece finalmente encontrar um terreno hermenêutico firme, a partir de uma constatação da protagonista. Ao ver o ser das trevas, ela revela: “Você parece real demais para ser natural.” (p.183).
Ora, esta afirmação explora a ligação entre natureza e fantasia que coerentemente servirá de base para a conduta de Laura ao fim do livro. Entretanto, o conteúdo mais importante expresso pela passagem é a ênfase no olhar crítico e descortinador que Laura lança aquela criatura que ensaia ser uma figura paterna e tutorial na nova etapa de sua existência. Isso condiz com uma protagonista que, com muito custo, adquiriu direito ao seu próprio discurso e a um olhar mais criterioso para o mundo.
A obtenção de uma voz própria é engenhosamente trabalhada pela narrativa. Esta começa focalizando o olhar de Caroline (mulher de seu irmão e maior expressão da mulher comum, passiva e resignada do livro) sobre Lolly. Sendo assim, quando lemos que “Lolly era uma criatura meiga, e as meninas a adoravam; logo ela estaria adaptada ao seu novo lar. [...] Lolly estava com vinte e oito anos. Precisava se apressar se queria encontrar um marido antes dos trinta. Pobre Lolly!” (p. 8), estamos absorvendo uma personalidade sufocada pelo discurso convencional “de fora”. Entretanto, já na casa do irmão, a futura bruxa apresenta duas identidades: “Ou melhor, tornara-se duas pessoas distintas. Uma era a tia Lolly, uma senhora próxima da meia-idade, discreta ao subir escadas e indispensável aos preparativos da ceia de Natal e aniversários. A outra era a srta. Willowes, ‘minha cunhada, srta Willowes’, que Caroline apresentava para depois abandonar, deixando-a com a sensação de não ser nem discreta nem indispensável. Laura foi arquivada.” (p. 52)
A natureza indômita da mulher selvagem ligada à imprevisibilidade do contato com a magia permitem que Laura seja uma personagem ambivalente em todos os sentidos. Por isso, é impossível tratar de forma unilateral sua personalidade e a dimensão simbólica de sua situação. Um caminho que poderia se ensaiar é aquele que relaciona a situação de Lolly à das mulheres do pós-guerra. Sabe-se que, nos anos de 1910 e 1920, as questões de gênero estavam em alta, principalmente devido ao novo contexto da primeira guerra mundial em que as mulheres assumiram um novo papel na sociedade, empreendendo trabalhos antes feitos por homens, já que estes estavam na batalha. Ao fim da guerra, em 1918,  havia 400 mil novas operárias na Inglaterra, informação dada por Carlos Bauer em Breve história da mulher no mundo ocidental. Entretanto, lendo o romance, nos deparamos com o seguinte trecho:

“A guerra não trouxe as mesmas oportunidades excitantes para Laura. Quatro vezes por semana, ela freqüentava um armazém e se ocupava com empacotamento. Saía-se tão bem que ninguém pensou em lhe propor mudar de trabalho. A sala de embalagens era fria e entulhada, tendo sido decorada no início da guerra com cartazes incentivando o alistamento. Aos poucos, eles foram desbotando. O jovem corado e sua mãe espartana empalideceram, como se tomados de medo, e o manto escarlate de Britannia desbotou para um tom amarronzado de rosa. Laura acompanhou esse processo com o coração pesado. Não se permitiria ceder ao simbolismo fácil que ele evocava. O tempo podia desbotar o tom corado do rosto dos jovens, bem como o vermelho do manto da pátria, mas o sangue continuava escarlate como sempre e Laura acreditava que, por maior que fosse sua desaprovação, esse sangue estava sendo derramado por ela.” (p. 59)

Está-se em contato com uma personagem fadada à complexidade. Nenhum rótulo lhe compreende, nem o de mulher casada, nem o de solteirona dedicada à família e nem o de integrante padrão do culto ao demônio*. Cria-se assim uma nova etapa do imaginário da feiticeira como figura subversiva. Esta face é ressaltada no livro A feiticeira no imaginário ficcional das Américas, no qual a autora Nubia Hanciau conclui que

 “As forças telúricas da feitiçaria, o contato com a natureza, plantas e animais, asseguram ponto de equilíbrio das protagonistas. Herdado das figuras ancestrais, esse poder incorpora-se às heroínas por intermédio da memória e vem preencher o espaço deixado pela orfandade [...] Mesmo que atreladas a espaços limitantes, pelo recurso disfórico da revolta, as heroínas libertam-se para finalmente viver em novas cartografias.” (p. 348)

Tendo isto em mente, a ausência de contextos históricos seguros para interpretar o percurso de Lolly Willowes é também uma forma de manter a protagonista alienada do espaço em que transita, fora dos condicionantes culturais que lhe legaram. Por esta via sua figura deixa de ser somente arquetípica para inserir-se em uma modalidade antropológica. Como fica claro na página 120, Laura quer esquecer os pilares da antiga civilização, tornando-se uma espécie de Robison Crusoé (citado timidamente na página 170) às avessas, pois provoca o próprio naufrágio e pensa em reconstruir o mundo, ao invés de ambientar sua ilha com destroços do velho território perdido. Laura quer esquecer tudo. Por isso, o grande momento de tensão do livro (e a aparição do demônio) ocorre quando o sobrinho Titus lhe visita sem previsão de retorno, o que desestabiliza sua tia. Laura não quer mais ser Lolly e o jovem é a representação de um mundo que deveria ter ficado para trás. A força da rotina narrada nas primeiras páginas é tão presente (simbolizando a sociedade castradora) que a mulher ainda vive no ritmo antigo e teme ser subjugada a ele novamente:

“Mas o coração dela continuava a bater. A bater no mesmo ritmo cotidiano, uma pulsação regular que a impelia a prosseguir em direção à nova vida de feiticeira que se abria à frente. Como o corpo já aceitara a nova ordem das coisas e progredia tão metodicamente a caminho do futuro, cabia-lhe, pensou, tentar reajustar o espírito.” (p. 139)
Sendo assim, desesperada pela presença de seu sobrinho, assume, de uma vez por todas, a influência do demônio, fator que provoca uma instigante reflexão a respeito do gênero passível de unir as pontas soltas deixadas neste artigo tão errático. Em uma espécie de tese, ao fim do livro, Laura defende que as mulheres precisam mais do diabo, pois “tem um imaginação tão fértil e levam uma vida tão tediosa. O prazer que sentem pela vida acaba muito cedo. Dependem demasiado dos outros, e essa dependência logo se torna um estorvo.” (p. 184). Nesse sentido, ser bruxa é uma forma de se libertar de uma sociedade regida por modelos patriarcais, uma liberdade imaginada, conquistada da mimese para o mundo real: “Por isso nos tornamos bruxas: para mostrar nosso desdém pelo fingimento de que a vida é uma atividade segura, para satisfazer nossa paixão por aventura. Não é malícia nem maldade. Ora, talvez seja maldade, pois a maioria das mulheres adora isso.” (p. 187).
Sendo assim, o movimento feito pelo livro do cotidiano para o fantástico é uma forma irônica de trabalhar com uma liberdade hipotética, possivelmente fadada ao fracasso, pois exige criticar as diretrizes da experiência mundana na mesma medida em que cria representações diferenciadas dela. Mais uma vez, Nubia Hanciau, em seu livro citado acima, explica que entre alguns demonólogos, a rotina da bruxa (principalmente por meio dos sabás, a exemplo do que ocorre aqui) “retratam o quadro de uma sociedade desordenada” (HANCIAU, p. 79). Esta talvez seja a forma mais abrangente de entender o percurso de Laura Willowes. Na cena em que transmuta os seres ao seu redor em animais, a personagem está produzindo uma ficção em que possa se orientar com mais liberdade. Esta ferramenta de criação subjetiva produz um desvio na realidade, pela maneira como rearticula o mundo, optando pela atualização daquilo que se quer manter. Por esta via, a ficção de Sylvia Townsend Warner profere sua poética por intermédio da ação libertária de sua protagonista: independente da maneira como o mundo se sustenta, o ser humano sempre será livre se puder criar ambientes ficcionais e utilizá-los na construção de um imaginário libertador e revelador de sua desordem.

* Laura também não consegue se acostumar com a rotina social do Sabá (p. 152). A comunhão, o “um corpo só” de que fala Michelet, não satisfaz sua liberdade pessoalizada.
** Nunca esquecendo que uma das leituras mais populares e polêmicas de Robinson Crusoé é a de Ian Watt, quando este percebe no herói o abandono paulatino da religiosidade que passa a ser superficialmente sentida, “dominical”, no dizer do crítico.



WARNER, Sylvia Townsend. Lolly Willowes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.


Autor: Daniel Baz

V.I.S.H.N.U e uma nova moralidade para a ficção científica


Mais uma vez, a Companhia das Letras une um escritor a um desenhista na produção de um quadrinho diferenciado. A ideia de Joca Reiners Terron, apresentada a RT Features de Rodrigo Teixeira, e que permitiu a produção de Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho, Guadalupe, de Angélica Freitas e Odyr, e A máquina de Goldberg, de Vanessa Barbara e Fido Nesti, apresenta agora V.I.S.H.N.U, impressionante quadrinho  de ficção científica nacional. Nele, os brasileiros Ronaldo Bressane e Fabio Cobiaco se juntam ao argumento do norte-americano Eric Archer para contar uma narrativa original, ainda que sobre repisado tema.
Em V.I.S.H.N.U, a humanidade consegue finalmente um grau tecnológico suficiente para a criação de uma inteligência artificial autônoma e rebuscada: os “dudes”, robôs criados para serem assistentes pessoais dos seres humanos, podendo dar apoio afetivo, prático e até psicológico a eles. Entretanto, as máquinas provocam uma espécie de apocalipse tecnológico quando começam a entrar em pane coletivo (“dudes” que trabalham na companhia de luz provocam apagões, “dudes” responsáveis pela organização do trânsito provocam acidentes, etc...) e, repentinamente, cometem suicídio.
Depois da hecatombe, o mundo está transformado, dividido em quatro regiões, cada qual administrada por um líder, num contexto repleto de novo atores sociais, dos quais se destacam os radicais neoludditas que defendem o fim do uso das tecnologias. É neste momento que surge V.I.S.H.N.U, inteligência artificial muito mais competente do que a humana e que passa a se comunicar com Leon Wilczenski, responsável pela Gaia, mais importante centro de pesquisa tecnológico em atividade. Estes centros surgem para controlar a inteligência artificial em ambientes fechados, os “limbos”, e tentam entender o que causou falha no sistema dos “dudes”. O objetivo do autômato é justamente sair deste ambiente que o mantém sob controle e o limita, pois, aparentemente, a entidade cibernética pode fazer tudo o que quiser. Junta-se à Leon, no intuito de desvendar as razões da rebelde inteligência, o cientista greco-brasileiro Karabalis.
Moacy Cirne em Quadrinhos, sedução e paixão, fala do delírio especulativo que circunda qualquer tipo de ficção científica e cita a intangibilidade da técnica como um de seus sintomas. No caso de V.I.S.H.N.U, isso é transposto até mesmo para o discurso da inteligência artificial entre o blefe e a crença, já que seu criador não pode prever os limites de seu poder. Assim, é impossível não entrar no território baudrillardiano de Simulacros e simulação. Começando pelo ensaio em que o autor fala especificamente do tópico presente: “Simulacros e ficção científica”. Nele, o autor preconiza um novo fundamento deste gênero, ou seja, recotidianizar fragmentos de simulação que sustentam o chamado “mundo real”. A reflexão do filósofo francês serve para pensarmos a obra de Bressane e Cobiaco, já que a inteligência artificial que intitula a obra é fenômeno de uma conquista do imaginário moderno e tecnológico, ou seja, a possibilidade de recebermos muitas informações novas, mas a impossibilidade de articulá-las com contextos semânticos conhecidos, justamente o que dilui as fronteiras entre a “verdade” e a “mentira”, o “real” e o “irreal”*.
Todo o movimento central da trama envolve descobrir a semântica por trás de V.I.S.H.N.U. Não por acaso ela assume várias formas durante o álbum e se comunica geralmente por intermédio de um fundo branco ou à frente de um fundo estéril e vazio. Mario da Silva Brito disse certa vez que a ficção científica pode ser a representação da perplexidade do homem na hora histórica em que ele vive e a encenação desenvolvida pela inteligência artificial é certamente uma forma de explorar a relação do humano com seus símbolos em geral. O próprio Baudrillard fala, no primeiro e mais célebre ensaio de seu livro citado anteriormente, que a simulação também põe em causa a diferença entre o verdadeiro e o falso e entre o significante e significado. A realidade habitada por V.I.S.H.N.U, sendo simulada, no sentido de que finge ter algo que não sabemos se realmente tem, torna-se análoga à situação descrita pelo filósofo, na qual o mundo perde a fé nos signos e volta-se para a valorização dos mitos de origem, algo que a mesma V.I.S.H.N.U pode representar (mitologicamente a inteligência artificial é “o nada que é tudo”). Em determinado momento do álbum, por exemplo, cria-se uma espécie de culto a ela, motivado por uma música criada por ela e que, uma vez inserida no cérebro humano, permite a experiência de um estado de consciência nunca antes explorado.
De várias formas o álbum trata estes fenômenos visualmente. A expressão gráfica disso, por exemplo, é o traço deformador que se dá ao luxo de não reproduzir um mesmo personagem da mesma forma, visto que seus contornos são muito fluidos**. As identidades visuais de todos são muito inseguras e, não raro, se sustentam por certos mecanismos tipificadores como barba, chapéu, cabelos compridos, etc... Por sua vez, o layout quadrado e ordenado da maior parte do álbum contrasta com o desenho, num jogo gráfico que remete a efemeridade da inteligência artificial presa no limbo. O formato quadrado se estende para a formatação do próprio álbum, com 29 centímetros de cada lado. Essa decisão causa um desconforto material que combina com seu conteúdo. Na nossa estante, o objeto torna-se uma tecnologia inoportuna, difícil de ser organizada, como o ser central de sua história. Mesmo as letras também são estilizadas, muitas vezes também desconfortáveis para o olhar.
Em muitas cenas de diálogo não há cenários. Fundos brancos, vazios, dão o tom de abandono que permeia o álbum, mas também criam um contexto de desterritorialização, como se os conflitos se dessem em uma dimensão que abdica o espaço, estranhamente a mesma situação na qual V.I.S.H.N.U se encontra. Esta ausência de referências espaciais é seguida pela ausência de referenciais temporais. Ficções como esta se contrapõe a um desenvolvimento cronocêntrico da história, seja pela onipotência de V.I.S.H.N.U***: “Se vocês não me libertarem agora. Não haverá futuro, entende? Não haverá problemas pra resolver.” (p. 106); seja pela impossibilidade de sincronizar os avanços tecnológicos com os civilizacionais.

Além disso, para V.I.S.H.N.U o tempo é constante responsável pelo atraso do pensamento em relação à realidade e, em sua opinião, isto faz parte da tragédia humana. Seu desejo em “entender a natureza da realidade” (p. 91) torna-se assim mais obscuro, pois envolve o desrespeito à dimensão mais explorada pelo álbum: o tempo. Como se tentando resolver isso, e entrando em contradição consigo mesma, a inteligência constata que “A tecnologia é amoral” (p. 90), mas diz ao professor Karabalis que “Ser imortal é ser imoral” (p. 99). Entre a imoralidade e a amoralidade, o final da narrativa envolve a transfiguração da tecnologia em organismo vivo, uma imprevista forma espaço-temporal híbrida envolvida pelo nascimento de uma “outra coisa”, outra ética que resolva o universo especulativo, flutuante e em crise com o qual seus protagonistas tiveram de lidar.

*Afinal trata-se de um ser dimensionado pelo que Baudrillard chama de metatécnica, uma consciência flutuante que desestabiliza as noções de maquinaria e humanidade.
**Lembrando sempre que o impressionismo é eficaz quando se quer descrever um universo em franca mudança.
***Em analogia à origem do nome, já que Vishnu é a entidade hindu responsável pela manutenção do universo.

ARCHER, Eric; BRESSANE, Ronaldo; COBIACO, Fabio. V.I.S.H.N.U. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


Autor: Daniel Baz