sábado, 27 de julho de 2013

O Pato Fáustico - Laços, dos irmãos Cafaggi; Trash e Sweet Tooth

O Pato Fáustico de hoje fala de uma das grandes publicações em quadrinhos do ano: Laços, de Vitor e Lu Cafaggi. Trash, de Andy Mulligan, nossa segunda atração, também aborda um grupo de crianças como heróis. Neste caso, meninos do lixão. Finalizamos o programa com uma indicação: Sweet tooth, de Jeff Lemire. Aproveitem !!!!


Crianças passando, adultos pirando: Laços, de Vitor e Lu Cafaggi



É difícil analisar Laços. Os irmãos Cafaggi o produziram covardemente. Produto de uma nova etapa no projeto (ainda impecável e já um marco) Graphic MSP, em que autores relêem os personagens clássicos de Maurício de Souza, a exemplo do Astronauta no primeiro volume, esta história é uma dos melhores trabalhos feitos com a turma da Mônica (e não julgo quem considerá-lo “O” melhor). Mas é covarde. Quem leu a versão feita por Vitor de Chico Bento, uma das melhores histórias do projeto MSP 50 (embrião da Graphic MSP), na qual o famoso caipira conhece Rosinha, já sabia que podia esperar um trabalho incrível como este. Contudo, covarde.
Covarde porque todas as suas escolhas linguísticas prezam por uma das faces da função discursiva, a emotividade. Covarde porque esta emoção vem não só de forma nostálgica, mas aliada a sentimentos confortáveis demais para serem contrariados. As cores, o traço, o enredo evocam candura, delicadeza, meiguice. Dessa forma, das cinco dimensões componentes do processo de leitura (neurofisiológica, cognitiva, afetiva, argumentativa e simbólica), é a afetividade que, num primeiro contato, rege nossa percepção. Sabendo disso, passemos, meio a contra gosto, à análise de Laços, dos (covardes!) irmãos Vitor e Lu Cafaggi.
Após um breve preâmbulo, no qual conhecemos a origem de Floquinho, o álbum introduz uma cena ícone dos quadrinhos nacionais: Cebolinha e Cascão (fantasiados de Peter Pan e Capitão Gancho) fugindo de uma furiosa Mônica e seu centrífugo Sansão. Cebolinha grita, aos que se interpõe em seu caminho, a tônica do álbum: “Crianças passando”. Vitor e Lu, por intermédio do esperto troca-letras, pedem licença para a infância, para o desejo de contar uma história feita pelo viés do olhar inocente da turminha.
A perseguição é funcional para dar uma panorâmica na rua do limoeiro, introduzindo uma série de personagens de Maurício, como Xaveco e sua irmã Xabéu, Titi, Jeremias... Ao fim, fica evidente a ênfase no imaginário infantil explorada pelo álbum, quando Cebolinha termina de contar seu plano absurdo para capturar Sansão e ao fundo vemos o balão que seria usado por ele no intrincado projeto, indício gráfico que legitima a delirante imaginação do personagem (influência das tiras de Calvin e Haroldo, fortemente presentes também em Punny Parker, de Vitor e na primeira parte de Duo.tone). Além disso, a cena carrega duas características que se seguirão ao longo do álbum, o movimento e a fantasia, e serão exploradas a seguir.
Toda a sequência é um show de perspectiva e traço, enfatizando a fluidez dos movimentos dos personagens. Além da leveza dos contornos, isso é transmitido com perfeição pela escolha de retratar a turminha no meio de alguma ação duradoura (corrida, conversa, mastigação). O gerúndio reina nesta primeira cena de laços (interessante que o único quadro que investe na estática é aquele quando Cascão e Cebolinha vêem a deslumbrante irmã de Xaveco, como se sua beleza estagnasse o tempo). O início in media res tem um efeito preciso, caímos de pára-quedas num território já conhecido e que repete em looping as suas ações desde a última vez em que foi visitado. Além disso, como é comum em outros trabalho de Cafaggi e Lu, os ângulos também favorecem a movimentação (veja o último quadro da página 13).
Além destes aspectos, os desenhos (ainda que deslumbrantes) são econômicos e eficazes na condução da história, principalmente na forma como eles figuram os personagens, grande força deste quadrinho. Como diz Paulo Ramos, em A leitura dos quadrinhos, a sobrancelha e a boca são a chave para a expressividade emocional das personagens e isso é explorado largamente pelos Cafaggi, algo que fica mais evidente nas cenas em que as crianças descobrem o sumiço de Floquinho (p. 19) e nas passagens sem balões em que eles procuram pelo cão (p. 25; p. 29).
As onamatopéias são empregadas com elegância, remetendo por um lado ao seu uso nas histórias originais, mas com maior atenção para sua necessidade (a cena do ronco da barriga de Magali é genial, ao dar função narrativa ao som). Em determinada perseguição, que põe em risco todo o percurso dos heróis, o som de choques e de objetos sendo arremessados não é reproduzido, mas apenas sugerido pela imagem, dando concretude gráfica a algo que é abstrato (p. 38). O resultado é (através de uma espécie de silêncio gráfico) a valorização do instante perigoso, e a suspensão da expectativa, já que as onomatopéias poderiam alterar o tom da sequência permitindo conclusões perceptuais diferentes, provocando o humor, por exemplo, ou servindo como linha cinética – o que impediria a ideia de “suspensão” - algo que ocorre em outros trechos do álbum.
Quanto à coloração, assinada por Vitor e Priscilla Tramontano, tem-se, a exemplo do feito em Astronauta: Magnetar, o favorecimento da expressão psíquica e emotiva das personagens. A paleta alegre e viva da perseguição inicial é substituída pelos tons escuros (da noite), assim que se descobre o desaparecimento de Floquinho. Além disso, a saturação dos trechos desenhados por Lu no início e fim da trama formam uma moldura ainda mais nostálgica, devido ao aspecto de foto envelhecida e o tom etéreo da cor. Estes dois momentos (acompanhados de uma homenagem ao Maurício de Souza no meio do álbum) servem também para produzir no interior da obra, o movimento feito pelo seu leitor, ou seja, o salto temporal repleto de relações e memórias entre o passado e o presente.
Outros componentes também são muito bem pensados, como os rabichos dos balões que desenham curvas, voltas, laços entre a expressão verbal e o personagem que fala. Mais uma forma de materializar a conexão entre a turma e a ternura com que seu discurso está circundado. Por fim, o álbum contém inúmeras referências que convidam a diversas releituras: No quarto de cebolinha, há sua versão tocador de pífaro, presente no projeto “História em quadrões”, além disso, esse espaço está cheio de bonecos que marcaram a infância da década de 80. Esta década está presente também nas referências cinematográficas (mais uma vez, seguindo a linha de Astronauta: magnetar): “Conta comigo” e “Os goonies” fitam o clima de toda a história. Em um determinado momento (lindo!) a turma passa de bicicleta na frente de uma enorme lua, remetendo a “E.T.”. A cena mais icônicas de “Warriors” (ou “Os selvagens da noite”) é reencenada. Contudo, há muitas outras referências, como no trecho em que eles encontram um esquilo morto (p. 44), óbvia alusão a uma das tiras mais clássicas de Calvin e Haroldo; e um estranho mendigo que cruza o caminho da turma, lembrando muito aquele aparecido em Duo. Tone de Vitor Cafaggi.
Além disso, os autores revisitam situações clássicas da própria turma: todas as histórias contadas na frente da fogueira (p. 46) - com ênfase no desenho animado em que Mônica sai só de toalha do banheiro e cruza com o menino mais lindo do bairro, Ronaldinho, que a espera na sala; e até mesmo o fato de somente Cebolinha usar sapato é explicado.
Na cena final, o vilão que prendeu Floquinho está disposto a tudo para se livrar do quarteto, ao que um assustado Cebolinha, vestido de emblemático Peter Pan, argumenta “Moço, você não pode... Nós somos clianças”. A infância pede passagem no início do álbum e pede clemência ao final. Ficamos tocados, pois a turma da Mônica, a exemplo de outros clássicos protagonizados por crianças (Os sobrinhos do capitão, Mafalda, Peanuts,...), forma um microcosmo da nossa sociedade, com a diferença de “as crianças dessas narrativas agirem de forma pró-ativa em relação ao meio e às pessoas com quem convivem, funcionando como catalisadores para os anseios e frustrações dos pequenos leitores, muitas vezes socialmente contidos por pais, avós ou professores.” (p. 166), ideia exposta por Waldomiro Vergueiro, no ensaio “Quadrinhos infantis”. Como, na sua maioria, essas histórias permitem uma “dupla leitura”, o adulto também pode fruir o texto, percebendo certa transgressão operada por estas crianças. Na sua pureza e inocência, elas podem criticar tudo com uma consciência maturada, ainda que iconicamente imune aos efeitos dessa maturação (malícia, ironia, imoralidade). Obviamente, nada acontece com cebolinha, mas a face de uma sociedade problemática não deixa de ser entrevista.
Por todos estes componentes, Laços torna-se a segunda parte magistral de um projeto já espetacular. Ao lado de Astronauta: magnetar, pertence ao que de melhor foi publicado no país nos últimos anos. Se aquele escolheu uma característica chave do protagonista e a potencializou (no caso, a solidão do viajante espacial), aqui o elemento eleito é o companheirismo. Tudo conspira para isolar a amizade como motor do ser humano do mundo. Assim, as crianças passam e os adultos se encantam com uma mensagem utópica, ainda que passível de fruição.


Autor: Daniel Baz

Um livro despretensioso e bom: Trash, de Andy Mulligan



A teoria clássica da literatura sempre observou a divisão vertical entre obras que tratassem das camadas populares e menos favorecidas da população e aquelas que observassem as classes sociais mais altas. Desde Aristóteles, inclinou-se a orientar o segundo tipo de trabalho pelo viés do sublime, do trágico e do sério; enquanto ao primeiro cabia o tom do ridículo, do cômico e do riso. Esta divisão chega até nós por outros projetos, como a Anatomia da crítica, de Northrop Frye, no qual a poética ainda se define, entre outros fenômenos, pela escolha dos objetos e dos “tons” apropriados a eles.
A tradição do que seria o “imitativo baixo” é reexplorada pelo romance de estréia do inglês Andy Mulligan, Trash. Desta vez, no entanto, ligado a uma tonalidade incomum: a da história infanto-juvenil. Na trama três crianças, Raphael, Gardo e Rato vivem a vida, sozinhos ou com seus familiares, em Behala, um lixão localizado em algum país do terceiro mundo. Suas vidas são transformadas quando encontram no lixo uma carteira com dinheiro, um mapa e uma chave dourada, pertences logo procurados pela polícia e que os leva a uma intriga de dupla natureza, já que devem fugir dos oficiais da lei ao mesmo tempo em que tentam descobrir o histórico por trás do objeto perdido.
Tendo como base a estrutura típica de um conto aventuresco e policial (herói, vilão, adjuvantes, objetos “mágicos”, pistas), a trama captura o leitor pela movimentação da história e sua imprevisibilidade. A naturalidade da primeira frase, por exemplo, é imprevisível e dá o tom do livro: “Meu nome é Raphael Fernández e sou um garoto do lixão”. Assim, situações nada cotidianas são descritas pelo olhar constatativo das crianças, que, muito aos poucos, conquistam na narrativa um relacionamento mais emotivo com o que lhes cerca. Este talvez seja o maior acerto narrativo do livro, pois consegue produzir uma espécie de humanização ao permitir que seus protagonistas se envolvam com uma trama que foge ao seu cotidiano.
Para isso, é interessante notar como o enfoque policial, em que a ênfase recai na investigação por trás do tesouro encontrado, desloca a ênfase na pobreza e no tratamento da miséria, que aqui é só o cenário da ação. Além disso, diferente das fábulas clássicas, a importância dos episódios não está em simplesmente obter a recompensa, mas em descobrir seu histórico e seu valor real. Assim, Trash se torna um exame de personagem, em que o mais importante é a forma como os seres se relacionam com os objetos e com as instituições que, geralmente, detém o poder sobre eles (e sobre o seu histórico). Aí está a principal expressão política do livro, a inserção de consciências antes excluídas das instâncias legitimadas, por intermédio de uma informação que escapa ao centro. É dentro deste espiral que a aventura avança e é a ela que o final humilde e singelo se refere.
Dentre as técnicas narrativas utilizadas por Andy Mulligan, destacam-se a mudança no tipo de letras, numa tentativa de particularizar cada um dos garotos, o que funciona em conjunto com a narração também individual. Cada um dos meninos (e alguns outros personagens) narram partes distintas do romance, entretanto, não percebemos uma mudança significativa na entonação dada a cada voz, o que anula, em termos, a decisão narrativa. As trocas são tão artificiais que são introduzidas por expressões como “Aqui é o Gardo, vou continuar a história que Raphael estava contando” (p. 32), “Aqui é Raphael de novo” (p. 40) ou “Ainda é a Olivia” (p. 100). Isto é, por um lado, explicado intradiegeticamente pela figura do padre Julliard, quem reuniu os fragmentos da história, entretanto, não deixa de parecer o receio de um autor com medo que os leitores mais jovens se percam no meio das idas e vindas da trama. Contudo, o caráter oral torna-se fundamental quando, mais ao fim da história, o personagem mais desprovido de bens, Rato, adquire direito a escrita e a registro de sua história (p. 119), um movimento consciente das poéticas ocidentais, como explícito na abertura deste texto*. Além disso, ao construir capítulos narrados pelos três ao fim do livro, a narrativa sinaliza novamente para certa despersonalização da história, o que torna sua focalização mais ambivalente do que se espera para um conto desta natureza.
Sendo assim, com muitos pontos positivos e alguns poucos problemas de ritmo e focalização, Trash é uma boa obra para os públicos mais jovens e uma diversão agradável e inteligente para qualquer um. Stephen Daldry já está preparando a adaptação cinematográfica. Que seja como o livro. Despretensioso e bom.


*Interessante também notar que num dos pontos chaves da trama, um dos meninos deve memorizar uma carta para adquirir certas informações, o que é uma forma de valorizar e expressar a função do conhecimento oral da comunidade representada.


MULLIGAN, Andy. Trash. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

Autor: Daniel Baz

O futuro estagnado em Sweet tooth – saindo da mata, de Jeff Lemire



Com o término de algumas obras que marcaram a história recente da Vertigo no Brasil (Y – o último homem e Ex machina) chegaram neste ano às bancas duas novas publicações: O inescrito e Sweet tooth. Falarei hoje desta última. Seu primeiro volume, Sweet tooth – depois do Apocalipse, demonstra que há potencial na nova série, ainda que somente o futuro possa dizer se alcançará a notoriedade de seus predecessores.
Escrita e desenhada por Jeff Lemire (canadense lançado ao mundo por este trabalho e que, em seguida, encabeçou títulos na DC como Liga da Justiça Dark e Homem-animal), a narrativa explora um universo pós-apocalíptico em que parte da humanidade foi dizimada por um tipo de epidemia nomeada “flagelo”, surgida na forma de um incêndio.  Em paralelo a isso, surgem crianças híbridas (humano com animal) imunes à praga e, provavelmente, provocadas por ela. Neste estado de coisas, Gus, um garoto híbrido, e seu pai vivem isolados em uma floresta. O velho homem morre, não sem antes fazer o filho prometer que não deixará jamais a cabana em que vivem. Promessa que deve ser quebrada ainda na primeira edição, quando caçadores descobrem o local. Gus só não é pego, devido à ajuda de Jepperd, um homem velho e truculento que o acompanhará durante os próximos números até uma reserva onde residem crianças híbridas. A partir daí a narrativa seguirá o tradicional modelo “de provas”, com os personagens se deparando com uma série de obstáculos a serem superados, um mais chocante que o outro, até o desfecho, no qual a relação de ambos terá seu caráter totalmente transformado.
Contudo, se a base é a mesma de tantas outras histórias (há referências explícitas a Bambi, por exemplo), os meios encontrados para contá-la prezam pela inovação. O que primeiro chama a atenção neste sentido são os traços de Jeff Lemire. A proposta do autor é desobedecer a anatomia, abusar do expressionismo dos cenários e na simplicidade dos espaços (o fundo às vezes se resume a uma cor como em boa parte da sequência na casa das prostitutas). As deformações num primeiro momento causam um estranhamento condizente com o clima do universo explorado. Entretanto, após estarmos acostumados com elas, tais distorções passam a ser o objeto figurativo de um mundo em que as referências estão totalmente diluídas (o que se comprova na virada final da trama).
A disposição dos quadros, os planos e a angulação seguem na mesma vertente modernista do desenho. O autor abusa do uso de primeiros planos e closes, que representam, neste início de história, a claustrofobia que envolve Gus, preso à cabana e, depois, dependente de Jepperd. A perspectiva, também serve para ressaltar o absurdo das coisas deste mundo. Um exemplo emblemático é o momento quando Gus vê um veado morto (p. 26), se esconde e, na página seguinte, os caçadores se encontram no exato lugar em que o menino estava. Tudo isso é visto de um ângulo do chão tendo em primeiro plano o olho aberto do animal morto. A página dupla em que Gus enfrenta dois inimigos e sofre um sério ferimento (p. 50-51) também é exemplar da experimentação da perspectiva, principalmente, pois vem aliada à posição absurda ocupada pelos personagens no quadro, num movimento nada natural.
Quanto à disposição dos quadros, gostaria de ressaltar uma estratégia usada pontualmente pelo autor e que revelam muito da concepção de mundo que ele expressa por meio das escolhas técnicas de sua trama. Sabe-se que a ideia de narrativa seqüencial (termo de Will Eisner) por quadros é a base de uma teoria atualizada dos quadrinhos e em seus fundamentos (mais uma vez em Eisner, junto de Mccloud, Cirne – com ressalvas – etc...) está o andamento do tempo diegético a partir dos “cortes” de um quadro a outro e sua relação. São eles que definem o “timing” narrativo, ou seja, um aspecto significante ao tempo. A linha que emoldura uma determinada representação e forma o quadro é uma maneira de apreender o tempo e, supostamente, o espaço lacunar entre um destes quadros e o próximo, a sarjeta, envolve uma mudança espaço-temporal. Sendo assim, no dizer de Scot McCloud “cada painel mostra um momento de tempo” (p. 94). Esta é a gramática básica da narrativa em quadrinhos e mexer nela é buscar sentidos novos para os conteúdos temporais. O que Lemire faz com brilhantismo.
Refiro-me principalmente a um recurso empregado por ele na parte quatro deste volume, quando os dois protagonistas encontram uma casa de prostitutas, ou seja, após já estarem calejados da distopia em que vivem. Em um momento de alta tensão, as mulheres ameaçam atirar em Gus e Jepperd negocia a devolução do garoto. Seu rosto impassível é representado em dois quadros horizontais diferentes, mas que juntos montam a face do homem (p. 86). O tempo representado é basicamente o mesmo (somente os balões revelam que se passaram poucos segundos). Tudo poderia tranquilamente vir exposto por apenas um quadro, mas Lemire opta por não fazê-lo. Antes de interpretar o sentido disso, é importante dizer que, quando Jepperd decide atacar um inimigo momentos adiante (p. 94), temos uma página cheia em que o personagem desfere o ataque, mas o golpe em si é representado por diversos quadros menores que descrevem seu trajeto. Mais uma vez o espaço lacunar da sarjeta não está presente, tudo é engolido pela estática*.
Por fim, e esse momento é decisivo, na parte seguinte, enquanto Jepperd ataca um conjunto de inimigos, vemos o rosto de Gus ser representado de forma semelhante ao nosso primeiro exemplo. Dezenove quadros dando closes em partes de seu rosto estão unidos para formar a inteireza de sua cabeça ferida. Mais uma vez as sarjetas não nos transportam para outro momento temporal e, de uma vez por todas, entendemos o tratamento dado por Lemire ao seu mundo. Sua intenção é expressar com efetividade a ideia de “futuro estagnado” presente em narrativas distópicas e pós-apocalípticas. Os quadros não nos levam ao futuro próximo, mas estagnam na mesma cena, como se temessem o que o tempo vindouro tem para oferecer. Eles não fragmentam tempos diferentes, nem se relacionam de forma consequencial com os anteriores, mas formam uma imagem instantânea em que os quadros menores estão sem passado nem futuro – não há narrativa entre eles. A estática torna-se o emblema de uma angústia que se forma no tempo, ou melhor, na passagem dele. Sendo assim, o autor canadense consegue dar forma linguística ao sentimento de seus heróis e produz uma empatia que só o bom uso da forma pode oferecer.


*Vale dizer que estas técnicas marcam a obra do autor e retornam com invenção na sua série do Homem animal, constante da reformulação mais recente da DC, os Novos 52. A série também é uma boa resposta aqueles que acusam o autor de desconhecer a anatomia.

Autor: Daniel Baz

sábado, 13 de julho de 2013

O Pato Fáustico - Herta Müller, Vertigo e Juiz Dredd

Neste programa, comentamos duas obras de Herta Müller, escritora romena ganhadora do Nobel. Além disso, trazemos indicações de quadrinhos para vocês. Aproveitem!!!

Herta Müller e sua ferocidade libertária



O homem é um grande faisão no mundo e Fera D`alma, de Herta Müller - publicados recentemente no Brasil pela Companhia das Letras e pela Globo, respectivamente – provam duas coisas: que a autora romena não deixa por menos o Nobel que recebeu em 2009; e que ainda temos autores em quem confiar o território frio e, às vezes, inóspito de nossas cabeceiras.
O primeiro título é de 1986 e explora a situação da Família Windisch (mãe, pai e, coitada, filha). De origem alemã, os três aguardam liberação para sair de um país deformado pela ditadura de Nicolae Ceausescu. Aqui começam as relações biográficas, já que o regime totalitário (1967-1989) foi responsável pela migração da família de Müller, pertencente à minoria alemã vítima da violência cada vez mais constante das autoridades. Com maior carga autobiográfica, Fera D`alma (199?) aposta na visão de um grupo de jovens a respeito do mesmo regime.
Mas, se o caminho do espelhamento do tipo “tal vida, qual obra” é tentador, principalmente neste último romance, no qual as situações biográficas são mais explícitas e facilmente rastreáveis, prefiro abordar em panorâmicas linhas as características da prosa da premiada escritora e do imaginário por ela explorado. Esta se caracteriza pelo viés combativo e denunciador, ainda que não panfletário. Aliás, longe de organizar seu discurso pela facilitação do mecanismo transmissor (característica comum em obras com o intuito moralizador ou simplesmente didático) e evitando entender o processo sócio-histórico pela perspectiva coletiva, a autora opta pela construção de um mundo refratado pela experiência subjetiva, no qual todas as referências são motivadas por uma consciência dotada de uma sensibilidade muito particular.
Contudo, a técnica compositiva de cada uma das obras é bastante diferente. Em O homem é um grande faisão no mundo temos o conflito central vivido pela filha da família, cujo corpo é negociado pelos pais para a aquisição de um documento, uma certidão de batismo, necessária para a migração. O papel é simbólico: a perda do direito ao próprio corpo vem acompanhada da legitimação de sua existência. Para certificar a nascença, o sujeito precisa primeiro subordiná-la ao poder. Além disso, os direitos humanos são conseguidos por meio da degradação do homem, esta sendo a maior metáfora do regime opressor. O próprio título O homem é um grande faisão no mundo vem de um provérbio romeno que associa a maneira desajustada do faisão voar com os atos humanos sobre a terra, remetendo à desastrada forma como o homem gerencia sua existência.
O livro é composto de frases curtas e secas, organizadas em vinhetas, capítulos também curtos. Esta orientação dos sintagmas é extremamente importante para o efeito da obra, já que a linguagem parece não se permitir a liberdade da frase longa, isto é, do texto solto e fluido, livre (como se o policiamento começasse no discurso) - além de produzir a secura própria do terreno miserável em que vivem os personagens. Contudo, se a sintaxe está presa à concisão, as escolhas metafóricas permitem que o imaginário do livro alce vôos mais ambiciosos, por vezes lembrando o automotismo psíquico dos surrealistas (a seguir, explicaremos porque não julgamos “surrealista” um termo apropriado para descrever a linguagem da autora, como alguns intérpretes vêm fazendo).
Vê-se esse proceder bem no início do livro, na genial associação que molda a relação entre o pai e a mãe da família Windisch. Quando este surpreende a mulher se masturbando, registra o narrador: “Por trás da porta do quarto Windisch ouviu a respiração persistente e ritmada da mulher. Parecia uma máquina de costura.” (p. 20). O procedimento fica ainda mais realçado, quando utilizado para “situar” o leitor no espaço e na ação:

“Windisch senta-se diante da xícara de chá. O vapor devora sua cara. O vapor de hortelã- pimenta evola pela cozinha. Windisch contempla seu olho no chá. O açúcar escorrega da colher para o olho. A colher está no chá.” (p. 60)
Em certas cenas, a autora oferece duas explicações aos fenômenos, uma realista e outra insólita, como que contrastando ambas as abordagens e demonstrando as vantagens, em sua poética, desta: “As mãos estão atadas por cordões brancos para que não deslizem. Para que rezem quando ela chegar lá no alto, às portas do céu.” (p. 64)
Nota-se que as imagens são relacionais e seja uma coruja, uma sopa vomitada dentro da própria sopa, ou um chupão no pescoço mais vermelho que um vestido vermelho, nenhuma delas se perde na aleatoriedade do discurso e ganham mais força se relacionadas ao todo que lhes dá sentido. O impacto deste recurso, ao fim do romance, é eficaz. Tratar itens comumente desassociados em sintagmas (metafóricos, metonímicos, comparativos) únicos, permite a revelação de um mundo que também se desarticula, eticamente, politicamente, moralmente:

“O policial beija os ombros de Amalie. O crucifixo de prata vem-lhe à boca. O padre acaricia as coxas de Amalie. Tire a combinação, diz.
Pela porta aberta Amalie vê o altar. Em meio às rosas vê-se um telefone preto.” (p. 125)

Outra imagem desta natureza, por exemplo, explora outro conceito central no romance, o de tempo:

“O tempo está dependurado ao lado da estufa. Windisch fecha os olhos. ‘O tempo acabou’, pensa Windisch. Ouve o tique-taque da mancha branca deixada pelo relógio de parede e vê o mostrador do relógio feito de manchas pretas. O tempo está sem ponteiros.” (p. 22)

Todo o romance irá expressar uma ideia de tempo que foge à sua materialidade, apostando na representação psicológica e metafísica dele. Algo que a relação livre entre os capítulos (que montam uma narrativa cronológica, sim, mas não teológica, visto que a estrutura de suas relações pode dizer mais sobre a significação de sua sequência do que a sucessão de episódios). Ao fim, a ideia que prevalecerá é a de ciclo, o tempo estagnou no pequeno vilarejo (p.128). A claustrofobia do regime não é apenas espacial, mas temporal, logo, pode ser compreendida de forma histórica. Contudo, evitando ser desesperançoso, o romance narra o aparecimento de uma jovem coruja na sua última página. Caprichos de uma autora que se recusa a tratar o mundo unilateralmente.
O homem é um grande faisão no mundo pode ainda ser relacionado com Bola de sebo, de Maupassant, já que a família vende a filha em troca de favores na mesma medida em que a despreza por ela o aceitar, algo que é sentido pelo pai, antes mesmo do acontecido: “Amalie ainda vai nos envergonhar” (p. 46). A ironia presente no clássico francês retorna como um olhar ácido a respeito da sociedade que, vítima da ditadura, produz vítimas arbitrárias de dentro de si, portanto, não sendo melhores que o ditador. A hipocrisia, não por acaso, é escolhida como tônica da última imagem do romance: os Windisch indo à comunhão, sem terem se confessado (p. 128).
Fera d`alma, por sua vez, apresenta a história de quatro jovens tentando escapar da ditadura romena. Nos anos 80, a personagem narradora, tradutora romena de livros técnicos, proveniente da minoria alemã (tal qual Herta Müller), conhece três jovens, Edgar, Kurt e Georg, com os quais passa boa parte de seu tempo descrevendo a realidade do regime em poemas combativos e vivendo a rotina de vigia e punição próprias de uma ditadura, enquanto seus amigos se sustentam trabalhando em fábricas.
O primeiro acerto do livro é começar contando a história da jovem Lola, colega da tradutora que vai para a cidade grande estudar russo e nutre o desejo de retornar acompanhada de um marido rico e respeitado. Nas primeiras páginas, nada pode garantir que não será Lola a protagonista do romance até que ela, sufocada pelas condições do regime (repetindo a perda de liberdade que caracterizou a filha dos Windisch em O homem é um grande faisão no mundo), se suicida (ainda que pairem dúvidas a respeito de sua morte ter sido mesmo auto-estimulada). A personagem morre logo no início do romance e isso serve para simbolizar a inconstância de um regime em que todos podem desaparecer, além de nos manter receosos com relação ao nosso apego pelos personagens.
Como em O homem é um grande faisão no mundo, a prosa de Müller opta pelo registro antinatural. A força das passagens não está na busca da fidelidade referencial, mas na antinaturalização da violência e da situação dos que a ela sucumbem. Novamente, isso levou alguns a aproximarem seu estilo ao surrealismo, ainda que a base do método artístico desta vanguarda – o automotismo psíquico – esteja longe de suas extremamente motivadas analogias, metáforas e comparações. As relações são bem pensadas, ancinhos são usados para verduras e túmulos (p. 148), o céu pode ser careca (p. 176), e as associações são responsáveis pela construção da realidade e sua experiência. Basta notar trechos emblemáticos como:

“Então o pai morreu. Por causa da bebedeira, o fígado está tão grande quanto o de um ganso obrigado a comer, disse o médico. Ao lado de seu rosto, no armário de vidro, havia pinças e tesouras. Eu falei: O fígado está tão grande quanto as canções para o Führer. O médico colocou o indicador sobre os lábios. Ele pensou nas canções para o ditador, mas eu estava me referindo ao Führer. Com o dedo na boca, ele disse: Um caso perdido. Ele estava se referindo ao pai, mas eu pensei no ditador.” (p. 69)

Aqui fica visível o movimento motivado do signo, tentando embaralhar os diferentes níveis da realidade da protagonista, já que, na prática, eles realmente repercutem de forma decisiva uns nos outros.
Em outras passagens, a livre associação dos itens serve para desorientar os valores de um mundo decadente:

“Por causa do atraso do aluguel, a senhora Margit vai fazer carinho na minha cabeça, eu disse para Tereza. Ela se dá o direito. Como não recebe dinheiro pelo quarto, ela exige sentimentos. Se eu conseguir pagar o aluguel rapidamente, suas mãos não vão chegar na minha cabeça.” (p.  186)

Pelas vias do estranhamento, a autora pode também adentrar no cerne dos conceitos com os quais trabalha, veja-se o medo:

“Comíamos juntos à mesa, mas o medo permanecia individualmente na cabeça de cada um, do jeito que o trazíamos quando nos encontrávamos. Ríamos muito para escondê-lo uns dos outros. Mas o medo escapa. Quando conhecemos o seu rosto, ele entra na voz. Quando conseguimos imobilizar o rosto e a voz feito algo que morreu, ele escapa até pelos dedos. Atravessa para fora da pele. Fica solto por aí, enxergamos o medo nos objetos que estão perto.” (p. 81)

Uma das principais preocupações de Müller é mostrar como o ser individual lida com o regime, o que a obriga a mostrar como o sujeito se relaciona com a coletividade que o cerca. É interessante notar, por exemplo, que, inicialmente, a personagem narradora não se distingue das demais, primeiro indício de que a coletividade é um desafio para o ser individual. Contudo, o decisivo aqui é a representação da impossibilidade de um testemunho puro, totalmente identificável, num clima de perseguição e confinamento, mesmo que a cena transgressora observada seja exclusivamente íntima, a exemplo da seguinte passagem

“Lola meteu uma garrafa vazia entre as pernas, ela agitou a cabeça e a barriga. Todas as moças estavam em volta da sua cama. Alguém puxou seus cabelos. Alguém riu alto. Alguém colocou a mão na boca e ficou assistindo. Alguém começou a chorar. Não sei mais qual dessas era eu.” (p. 25)

Ao longo do romance, até mesmo as cartas pessoais devem ser repletas de códigos e planejadas para que revelem sua violação – como sendo enviados com fios de cabelos no interior. Daí surge um dos efeitos do subtexto político e sociológico da prosa de Herta Müller: dele não escapa nem a mais pura intimidade do homem.
Outra forma de lidar com o espaço coletivo é a importância do nativo e do telúrico em muitas das metáforas e imagens do livro “Carregamos no rosto o que levamos de uma terra”, mas acompanhadas de inúmeras técnicas narrativas que desestabilizam o determinismo esquemático (até porque é impossível ser definido por um espaço controlado e alienador), seja na troca de terceira para primeira pessoa, seja no estilo de narração (como já foi visto).
Repleto de cenas impactantes (cito apenas a cena em que capitão Pjele obriga a tradutora a compor e cantar), Fera D`alma forma par com O homem é um grande faisão no mundo no que tem de combativo, libertário e lírico. O melhor emblema para si talvez seja mesmo o que nomeie o primeiro romance, a "fera d`alma", gêmea do "coração selvagem" que Lispector tomou emprestado de Joyce. Trata-se da inquietude da personalidade e a rejeição de uma vida acomodada e passiva, conseqüente de uma literatura também inconformada, plasmada em um signo liberto, como compensando o aprisionamento dos personagens que ele constrói.


MÜLLER, Herta.  O homem é um grande faisão no mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
MÜLLER, Herta. Fera d'alma. São Paulo: Editora Globo, 2013.



Autor do texto: Daniel Baz