sábado, 1 de dezembro de 2012

O Pato Fáustico - Dany Laferrièrre e Chester Brown

Libido, sexualidade e polêmica no Pato Fáustico de hoje com "Como fazer amor com um negro sem se cansar", de Dany Laferrièrre e "Pagando por sexo", de Chester Brown. Para finalizar, indicação de mangá. Aproveitem!!!



O cru, o nu e o pulp





“Já que a história não cuidou bem de nós, ela ao menos nos serve de afrodisíaco”
Dany Laferrièrre

Como fazer amor com um negro sem se cansar (1985), o didático primeiro título da “autobiografia americana”, planejada pelo escritor haitiano Dany Laferrière, pôs seu autor em evidencia na crítica literária internacional. O livro chegou ao Brasil pela Editora 34, aliado à vinda do autor para a Festa literária de Paraty, o que ajudou a popularizar seu romance entre nós. A trama acompanha dois negros, o narrador, em primeira pessoa (chamado de “Velho”), e seu amigo Buba, vivendo na sociedade branca de Montreal na década de 70. Em meio a sessões de Jazz e muitas ideias impertinentes, a relação sexual do narrador com várias brancas, geralmente universitárias da McGill, pontua as principais motivações do enredo.
Este investe em uma série de situações que exploram a crise entre o choque de raças, ainda que de uma perspectiva pouco usual. O narrador esforça-se em revisitar a imagem do negro na sociedade, geralmente a partir dos estereótipos sexuais criados na sua relação com o branco. Seja relacionando-o a qualidades econômicas: “Se pelo menos o Negro ejaculasse petróleo. O ouro negro. Pena, o esperma do Negro é branco. Por outro lado, o valor do amarelo sobe. É limpo, o Japonês, não ocupa muito espaço e conhece o Kama Sutra como conhece a sua primeira Nikon.” (p. 17); seja como compensação histórica: “‘Então, é sempre a mesma coisa, os colonialistas realizaram as suas fantasias de dominação fálica esmagando os outros, e, na hora de pagar a conta, esse safado propõe simplesmente que os Negros comam as nossas mulheres.’” (p. 50); é evidente a eficácia do narrador em subverter algumas convenções figurativas/imagéticas/sentimentais que povoam as relações entre negros e brancos.
Neste mesmo esforço são revitalizadas uma série de imagens de invasão que permearão as zonas de contato étnicos expostas pelo romance. A mais superficial delas mesclará a violação irresponsável do ato sexual ao processo colonizatório (envolvendo a tentativa de “trepar com o inconsciente” das mulheres branca, escolha lexical que sequer tenta esconder a carga traumática da relação entre as duas culturas). Mas há outras passagens mais interessantes, como as invasões subseqüentes por parte do narrador a espaços habitados por mulheres brancas, figurando de forma reinscindente o que seria uma revanche, uma subversão do esquema invasor/invadido.
Essas invasões são geralmente acompanhadas de descrições enumerativas e assépticas, familiares ao estilo do livro, composto de frases curtas e pontuação assídua. Sincopado como um bom jazz. Em alguns momentos, como nas cenas anteriores, pode investir em uma composição espacial estática, desvirtuando a ética branca pela banalidade de uma enumeração constatativa e nominal que a envolve como, por exemplo: “Escuto claramente a água correndo. Água íntima. Corpo molhado. Estar ali, assim nessa doce intimidade anglo-saxã. Casa grande de tijolos vermelhos cobertos de hera. Gramado inglês. Calma vitoriana. Poltronas profundas. Daguerreótipos antigos. Objetos em pátina. Piano preto de laca. Gravuras de época. Retrato de grupo com um Cocker. Banqueiros (queixo duplo e monóculo) jogando críquete. Retrato de meninas de rosto longo, fino e doentio. Diplomata de chapéu colonial em seu posto de Nova Délhi. Perfume de Calcutá.” (p. 90)
Além disso, o narrador não esconde a natureza tipificada de suas coadjuvantes tratando-as sempre por alcunhas redutoras e debochadas como Miz Literatura Miz Suicida, Miz Mystic, Miz Alfafa, Miz cigarro, entre outras.
O romance tem 28 capítulos, alguns manifestos como “O ocidente não se interessa mais por sexo, por isso tenta denegri-lo” e o último “A gente não nasce negro, a gente se torna um”, mas a maioria sinaliza para o descaramento irônico “Como uma flor na ponta do meu pau negro” e “O negro é do reino vegetal” são alguns dos melhores. Realmente, a análise lingüística de Como fazer amor com um negro sem se cansar não pode partir de outro tropo que não o irônico, visto que a ironia é a grande chave retórica do livro de Dany Laferrièrre. Forma lingüística de correção da realidade e revisão da linguagem posta, pois sinaliza sempre para o oposto do que é dito, na ironia, a linguagem assume sua identidade e sua diferença ao simular uma relidade assertiva, ao mesmo tempo em que a contradiz. A negação, no livro de Laferrièrre só é expressa a partir de uma dimensão contextual implícita e que sinaliza e permite o irônico.  A ironia é um tipo de racionalidade multiforme. Como a ironia refrata um conteúdo aparentemente inteligível, quando usada como ataque ela, Nietzsche já o disse, despontencia o intelecto do alvo. Ela sempre usa de um trunfo semântico, pois se apropria da réplica em seu interior. Efeito atingido pela assimilação do discurso dos outros no interior do discurso do eu.
Além disso, o irônico é um efeito de distanciamento, algo que o próprio narrador demonstra necessário para construir seu discurso, em certos momentos: “Como Negro, não tenho o distanciamento necessário em relação ao Negro. Será o Negro esse porco sensual? O Branco esse porco transparente? O Amarelo, esse porco refinado? O Vermelho, esse porco sangrento? Somente o porco é porco?” (p. 44). No irônico, reside a tentativa de resolver a situação dual que marca a personalidade do protagonista. Acontece que, se encaminhando para o fim do romance, o narrador passa a falar a respeito da própria escrita (já que também é um escritor que acabou de publicar um livro de estréia que, em última análise segue as situações que estamos lendo). Em determinado ponto, o personagem diz:

“Escrevo: Banheiro.
  Vejo: duas toalhas sujas, três sabões, um after shave, duas fitas adesivas, duas escovas de dente, um desodorante (English Leather), dois tubos de pasta de dente Colgate, uma cartela de pastilhas digestivas Alka Seltzer, um barbeador elétrico (presente de Miz Literatura) [...]
Escrevo: Geladeira.
Vejo: uma garrafa d`´agua, uma caixa pela metade de massa de tomate, um pote de picles quase vazio, um queijo engordorado tipo oka, duas garrafas de cerveja e um pacote de cenouras.
Escrevo: Janela.
Vejo essa droga de Cruz pela janela.” (p. 96)

O narrador atesta o conflito entre a escrita e realidade, sinalizando para a inoperância do discurso, o que de certa forma contradiz a própria ironia, criando dois níveis de funções da linguagem sendo utilizados ao mesmo tempo. Talvez por isso, uma série de referências literárias textualizadas -Miller, Cendrars, Bukowski (p. 94)- evocam autores que também trabalham entre a crueza e o duplo sentido do próprio ato de escrever. Entre a máquina de escrever de Hemingway e a de Chester Himes, o narrador preferiu a do segundo (p. 52). Seco, mas filiado a ideologia do negro, do Jazz, da realidade crua, nua e pulp, Dany Laferrièrre erra entre as funções da literatura, múltiplo como seu primeiro e definitivo herói romanesco.


LAFERRIÈRRE, Dany. Como fazer amor com um negro sem se cansar. São Paulo: Editora 34, 2012.

Autor: Daniel Baz

Chester Brown e um manifesto quadrinizado




“Embora tenha relatado os incidentes e conversas que compõem esta graphic novel de maneira razoavelmente fiel à minha memória, você deve ter em mente que a memória não é exata” – Chester Brown (p. X)

“Então, a experiência de pagar por sexo não é vazia quando a gente paga à pessoa certa” – Chester Brown (p. 227)



As histórias de caráter autobiográfico já chegaram aos quadrinhos faz algum tempo. Somente nos últimos anos, no Brasil, foram lançados trabalhos como Adeus, tristeza, de Belle Yang, Retalhos, de Craig Thompson, e Persépolis, de Marjane Satrapi para ficar com os exemplos mais populares. De todos estes, nenhum aborda com tanta naturalidade um assunto tão polêmico como Pagando por sexo, último lançamento de Chester Brown. Nas palavras do próprio autor, no prefácio da edição: “Neste livro, registro todas as vezes que paguei por sexo até o final de 2003 e todas as prostitutas com quem tive relações depois disso.” (p. IX). Sendo assim, acompanharemos durante mais de duzentas páginas a descoberta de um mundo fascinante e sensível que se esconde por trás de preconceitos e zonas de generalização difusas, em um percurso que aborda uma série de posturas morais, das quais a mais importante questiona a validade do amor romântico na sociedade atual (proveniente do conflito brilhantemente resumido: “querer transar, não querer namorar”).
Tudo isso é contado em uma técnica narrativa muito precisa. A começar pelo ritmo visual imposto pelo quadrinista, num padrão de dois quadros por linha, quatro linhas por quadro, totalizando um esquema de oito quadros por página. O esforço de criar uma norma rítmica tem duas funções básicas em Pagando por sexo. A primeira delas, como já foi percebido em outros quadrinhos aqui no Pato Fáustico, cria uma zona de familiarização com o leitor, na mesma medida em que trata de conteúdos com os quais ele provavelmente não está familiarizado. A forma, assim, é a primeira garantia de previsibilidade, facilitando a inteligibilidade de uma temática aguda. Mas, mais do que isso, a repetição da estrutura da página também ajuda a erigir o clima de rotina e de naturalidade que permeia todas as relações durante toda a história, numa quebra de estereótipos que anseiam por tramas envolvendo perversão e violência (algo discutido pelos personagens), e que nunca acontece.
Entretanto, nem tudo é previsibilidade em Pagando por sexo. De forma muito engenhosa, Chester Brown varia certas sutilezas compositivas, com destaque para o tamanho diferenciado dos capítulos, realçando o caráter particular de cada programa vivido pelo protagonista, o que impede que se banalize o ritmo do relato. Outros recursos icônicos são também muito bem utilizados. Ainda no primeiro capítulo, intitulado “Minha última namorada” as principais escolhas lingüísticas são estabelecidas. As imagens dos seres geralmente se mantêm estáticas com poucas transformações nas longas cenas de diálogos (principalmente entre o protagonista e seus amigos). Isto, aliado à ausência de expressões fortes no rosto de Chester, ajudam a compor seu caráter decidido e compenetrado (e não temos surpresa quando ele contabiliza, na página 60, quanto gastaria com uma namorada para ter menos sexo do que com as, mais econômicas, prostitutas). A mesma decisão narrativa que enfatiza o enorme número de pensamentos emitidos pelo protagonista e que circundam sempre suas ações. Assim, algo que poderia ser esteriotipadamente corporal, torna-se um fenômeno essencialmente psíquico. Além disso, as personagens das prostitutas nunca tem seus rostos revelados, o que aumenta ainda mais a importância dos monólogos interiores de Chester e sugere que suas amantes são uma construção tão pessoal e reflexiva que escapa à figuração. Pontos para o autor.
Com relação aos desenhos, o ponto de maior interesse é o traço genérico utilizado para realçar mais a abstração dos seres do que seu realismo. Estamos diante de um tipo de arte que usa a simplicidade para falar de temas adultos. O que é sempre um tributo ao movimento underground dos quadrinhos pós Harvey Kurtzman. O autor se concentra nos traços específicos, isto é, usa padrões gerais para definir um sujeito que participa de situações nada gerais. Assim, a facilitação a partir da identificação com o personagem equilibra o afastamento sentido pela situação que ele vivencia. Além disso, a pouca informação visual serve também para ressaltar o discurso dos envolvidos.
Ao fim do volume, páginas e mais páginas de anexo revelam as opiniões do autor acerca dos assuntos abordados em sua obra. No paratexto, Chester Brown se sente à vontade para ser ainda mais explícito e responder aos argumentos de quem condena sua escolha de vida. Sem medo de ser planfetário, o quadrinista exige uma função de sua arte ainda que fora da dimensão estética. Seria um uso redutor e condenável não fosse a qualidade narrativa da história de Pagando por sexo.


BROWN, Chester. Pagando por sexo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

Autor: Daniel Baz