terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O Pato Fáustico - Barba ensopada de sangue, de Galera, e Astronauta - Magnetar, de Beyruth

Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera, e Astronauta - Magnetar, de Danilo Beyruth, formam o Pato Faústico de hoje, que comemora um ano de vídeos. Confira conosco um dos melhores romances nacionais dos últimos tempos e um lançamento de peso dos quadrinhos brasileiros. Aproveitem!!!!!!!

Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera: uma obra-prima contemporânea



“Ninguém escolhe nada e mesmo assim
a responsabilidade é nossa.”


O protagonista de Barba ensopada de sangue, novo romance de Daniel Galera, possui um raro distúrbio neurológico que o impede de memorizar a aparência das pessoas. A primeira ironia desta condição reside no fato de o herói ser professor de natação, o que insere, na sua responsabilidade de agente da ação, uma competência incomum acerca dos limites de seu corpo e dos demais personagens que lhe cercam. O não nomeado protagonista, na cena que abre o romance, visita seu pai. Este lhe revela que irá se suicidar e lhe incumbe de uma inusitada missão: matar sua cadela Beta, para que ela não se sinta sozinha após a morte do dono. Contudo, esta é apenas a primeira motivação do livro que vai se sustentar não na esquisita decisão paterna, mas no que é dito no diálogo antes da revelação do suicídio, isto é, a história da morte do avô do narrador em condições misteriosas na pacata cidade de Garopaba, morte essa ainda sem resolução.
Sim, o narrador irá se mudar para Garopaba onde passará a dar aulas de natação e, nas horas vagas, investigar o que houve com seu avô. Entretanto, se descobrimos ao longo do livro (principalmente no derradeiro capítulo) que o herói tinha outras motivações para sua mudança, é também impossível apontar a “investigação” como centro exclusivo do enredo do romance. A relação com a cadela do pai, que o protagonista decide não matar, o passado conturbado com o irmão e sua mulher (que foi sua namorada), a responsabilidade ligada à família, o convívio com a hostilidade da nova cidade (que não gosta das perguntas que ele faz), com os alunos e com mulheres (com ênfase em Jasmin, com quem sai por um tempo), permitem a produção de uma linha dramática cheia de curvas e arestas.
O mistério é só a primeira constante estrutural do romance. O livro está repleto de trechos dissociados da ação principal, o que prova a maturidade de Galera como romancista. São assim todas as cenas envolvendo seus alunos ou o simpático amigo budista Bonobo, por exemplo. A proliferação de experiências, vinculadas às inúmeras veredas narrativas, empresta certa lentidão ao romance, que se detém nos aspectos sensoriais do mundo em todas as situações vividas pelo herói. Esta é uma das formas de lidar com a representação de sua patologia. Nesse sentido, o próprio mistério a ser desvendado enfatiza e se nutre da lentidão de um texto que demora a desvendá-lo.
Outra forma de lidar com o distúrbio do narrador é a importância especial dada às descrições, algo raro na prosa contemporânea. Elas surgem como uma forma viável de mimetizar uma consciência que está sempre se reconstruindo, sempre reaprendendo as aparências - além de render trechos geniais como na cena do concurso da rainha mirim (p. 188). É interessante notar que, às vezes, no intuito de criar este efeito, elas chegam atrasadas, a exemplo da primeira cena com o pai (p. 30). Além disso, elas também funcionam como clama Lukács em seu ensaio “Narrar ou descrever”, isto é, carregadas de valor, nada gratuitas no sentido de amparar e realçar as dominantes psíquicas e até ideológicas das personagens e das cenas relatadas. O detalhamento ajuda a reforçar descrições de tipo valorativo, que criam um sentido para a ação, como em: “Os túmulos são tão próximos uns dos outros que as poucas passagens disponíveis terminam em becos sem saída.” (p. 69), onde a descrição de um espaço limítrofe funciona análogo à crise das personagens. No momento em que Dália revela que se drogou antes de sair com o filho, lê-se: “Não dá nada, diz olhando para ele como se isso fosse óbvio, como se toda pessoa viva já tivesse tomado um ácido e soubesse que não tem problemas, ora bolas. O malabarista comete outro erro, dessa vez com as bolinhas.” (p.145), em que o erro do malabarista enfatiza o julgamento do narrador com respeito à atitude também equivocada de Dália. Na última cena do livro, em que muito é explicado, a partir da conversa do protagonista com Viviane, seu antigo amor e atual esposa do irmão, tem-se o seguinte comentário: “Ele risca quatro fósforos até conseguir acender o fogão” (p.406), em que essa série de tentativas frustradas explicita a condição mental do sujeito no tenso embate com seu passado.
Por isso também, a última forma de lidar com a especificidade do protagonista está na escolha do tempo do romance. Ele é narrado todo em tempo presente, característica de algumas obras contemporâneas, mas que aqui adquire um sentido diferenciado, afinal, os seres vistos pelo herói nunca tem passado, estando conservados no eterno presente da visão e nunca por intermédio referencial do reconhecimento. Assim, a primeira palavra do romance “Vê”, além de sinalizar para a experiência sensorial mais importante do livro, também cria uma ambigüidade interessante entre imperativo e presente neutro. A solução é acertada, visto que, na já mencionada última cena do livro, há o embate filosófico entre livre arbítrio (expresso pelo verbo no presente neutro) e determinismo (atingido se o verbo for lido como imperativo).
O narrador oscila entre ser o agente de suas escolhas ou o fruto de um destino pré-determinado, o que remete ao final da trajetória de seu avô. A barba é o item descritivo essencial aqui, já que é ela que liga, conforme cresce, a imagem do narrador (que começa o romance sem barba) com a de seu avô. O ritmo rotineiro de um enredo sem grandes sobressaltos se torna um trágico embate entre o sujeito e o coletivo nas duas histórias, visto que a cidade (que já sabemos ter sido a autora do suposto assassínio) também agride o herói. O enredo parte de um ritmo prosaico e cotidiano e mostra como ocorre a transmutação de uma ação comum em mítica. Além disso, o conflito simula um tópico da própria teoria da personagem, visto que a liberdade do herói é sempre medida pelos determinantes do autor, como Bakhtin já demonstrou, o que assegura uma espécie de nível metapoético, em um texto tão preocupado com a ausência deste tipo de reflexão (basta mencionar que, entre o irmão escritor e o professor de natação, o romance opta por acompanhar o segundo).
O livro ainda tem grandes sacadas, como a presença de textos de secretárias eletrônicas, chamadas telefônicas, e outros depoimentos em rodapés, geralmente alheios à perspectiva que o herói tem das coisas e, por isso, legadas ao submundo do texto. Contudo, antes de encerrar, ensaio uma proposta de leitura aparentemente ainda não feita a respeito do livro de Galera. Sabe-se que o romance gaúcho oscilou algum tempo entre duas alternativas que, para alguns, pareciam excludentes, a saber, o regionalismo e o urbanismo (ou cosmopolitismo). Ao lidar com um protagonista urbano que se muda para um ambiente mais ligado à natureza e que se sente cada vez mais próximo ao avô - apelidado de Gaudério, representante do gaúcho típico, estrangeiro em terreno catarinense e sempre disposto a puxar a faca para manter seu ponto de vista – o romance está sinalizando para a mescla das duas vertentes, assim como, para a superação sem traumas da necessidade de uma escolha entre elas. Galera herda a narrativa urbana, mas sabe da imensidão dos temas e dos contornos maleáveis da mimese.
É Jasmin a personagem que mimetiza esta preocupação do autor, ao ir a Garopaba com o intuito de descobrir se, em um lugar periférico, os distúrbios psíquicos diferem dos da capital. Ao se referir à divisão centro e periferia, mencionando sua pesquisa de pós-graduação, a personagem sustenta que “O tipo de problema dos pacientes é a mesma coisa que rola em Porto Alegre, em São Paulo, em Manaus, em qualquer lugar. O que existe de especial aqui é a sazonalidade dos distúrbios [...] De resto Garopaba é o mundo” (p.263). Entre o local e o mundo, Galera opta pelo segundo e, ao fazer isso, não permite que nenhuma de suas dimensões seja excluída a priori do terreno da ficção. O resultado da segurança do projeto é uma obra-prima, um provável clássico, um livro para guardar e reler, quando a memória, como no problema do narrador, estiver esfumando suas características de nossa mente tão cheia de romances errados.


GALERA, Daniel. Barba ensopada de sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

 Autor: Daniel Baz




Um sítio intergaláctico: Astronauta Magnetar, de Danilo Beyruth






Sidney Gusman é o nome por trás de uma revitalização da obra de Maurício de Souza, ao idealizar os projetos MSP (50 artistas, mais 50 artistas e novos artistas), que criaram um inóspito terreno de releituras de vários personagens populares do quadrinista brasileiro. Depois do sucesso de público e crítica, o editor idealizou mais um projeto inovador: a Graphic MSP, selo em que autores do quadrinho nacional executam releituras de personagens famosos de Maurício em edições em torno de 68 páginas. Para 2013, estão previstos os trabalhos dos irmãos Cafaggi com a turma da Mônica, de Gustavo Duarte sobre Chico Bento e a releitura de Piteco por Shiko. Em 2012, o selo despontou de forma surpreendente com Astronauta - magnetar. É dele que falarei agora.
A história começa de forma inusitada, sinalizando para a mudança de perspectiva tradicional do herói intergaláctico, ao mostrá-lo jovem, na terra e, o principal, no sítio de seu avô. Se a cena importa por introduzir um aprendizado metafísico e prático que será utilizado adiante pelo herói para escapar de certo obstáculo ao fim do volume, também introduz a diferença do caráter de Astronauta – ávido por aventuras e descobertas – inserindo a temática da “vida e suas transformações” (p. 7), uma das tônicas da narrativa. A seguir, Astronauta parte em uma missão cujo objetivo é coletar dados acerca dos magnetares, estrelas de nêutrons emissoras de altos níveis de raios x e radiação gama, cercados por um anel de asteróides de metal e gelo.
Após uma rocha metálica danificar sua nave, Astronauta deve lidar com a própria solidão, tornando-se uma espécie cósmica de Robinson Crusoé. É preciso notar que a vida à deriva no espaço exige que astronauta estabeleça uma rotina de sobrevivência, o que o obriga a lidar com a ojeriza pelo cotidiano e marasmo expressada pelo herói no início do álbum, quando pensa a respeito da pacata vida do avô. O tópico ensaiado nas primeiras páginas do volume deve agora ser enfrentado pelo protagonista. Para representar esta dinâmica, Beyruth utiliza uma série de técnicas. A começar pelo teor cinematográfio da narrativa, presente em seus trabalhos anteriores, como o excelente Bando de dois e a sua fetichização do cinema italiano de faroeste. Aqui, quadros horizontais (p. 24-25, 66-67, 31, por exemplo), simulam a tela cinematográfica e o andamento em cenas da ação. Além disso, este recurso empresta uma carga contemplativa à narrativa afinada com a passividade do herói.
Além disso, são muitas as referências ao cinema de ficção científica. Para ilustrar, tem-se a enigmática (quase um easter egg) referência a Alien: o oitavo passageiro, de Ridley Scott (na surpreendente página 42), justamente no momento em que Astronauta suspeita não estar mais sozinho na nave, o que o deixa paranóico e transforma a história em uma observação psicológica do isolamento. Além disso, tem-se a linda referência a 2001: uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick, quando Astronauta, na linha de David Bowman, tem visões reveladoras de sua própria identidade.
O ritmo visual do quadrinho é impressionante, alterando as tais tomadas cinematográficas - nos momentos de aventura, principalmente - com páginas inteiras e duplas (em momentos de imensidão ou de forte teor psicológico) e com a experiência ascendente do tédio, culminando na genial cena (p. 38-41) em que temos página após página o aumento de vinhetas dentro do quadro, reproduzindo a mesma sequência de desenhos (astronauta comendo, usando o banheiro, se exercitando, etc.), com o intuito de significar a exaustiva e repetitiva rotina diária do herói. O quadrinho sinaliza para a própria forma, num exercício de captação do tempo poucas vezes visto. A montagem dialética, em tese e antítese, também rende bons momentos, como na transição da cena 45 para 46 em que Astronauta monta uma armadilha para o intruso e cai nela ele mesmo. A cena, por um lado, demonstra a paranóia do personagem que é seu próprio inimigo, mas também revela a inconstância de sua situação mental, cheia de altos e baixos (Astronauta em pé e decidido x Astronauta caído e confuso). Assim, o interior do personagem guia as escolhas técnicas da história.
Por fim, vale falar um pouco das cores feitas por Cris Peter, uma das profissionais mais competentes do quadrinho nacional. São várias as decisões acertadas da colorista: o tom alaranjado da primeira cena, remetendo ao calor mútuo da vida no sítio do avô; o azul do espaço e do gelo, em contraste com o rosa incidental e, aos poucos, cada vez mais presente nos momentos de revelação e de experiência quase extracorpórea que Astronauta vive (reforçada por uma cor tão distante do ambiente representado); a transição do negro - referência ao espaço e a morte iminente do protagonista – para o branco (73-74), culminando na atenuante (talvez até demais) página final.
Enfim, Astronauta Magnetar é mais um quadrinho brasileiro no topo dos últimos lançamentos. Além disso, indo do interior regionalista do país ao espaço sideral, da normalidade do núcleo familiar ao devaneio metafísico mais impressionante, este primeiro álbum da Graphic MSP parece representar os limites do imaginário do romance gráfico brasileiro atual.

BEYRUTH, Danilo. Astronauta – Magnetar. São Paulo: Panini, 2012.


Autor: Daniel Baz