segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Rabelais, carnavalização e o homem imenso


O vigário e médico François Rabelais (nascido provavelmente em 1494) mudou os rumos da cultura ocidental. Helenista convicto numa época em que os franciscanos execravam a cultura grega, nasceu, cresceu e desenvolveu um espírito de contradição poucas vezes vistos na história das artes. Proibido de estudar a língua e cultura da antiguidade clássica, Rabelais dedicará algumas páginas de sua obra para desqualificar os capuchinhos opressores. Volta a estudar com a ajuda do bispo Geoffroy d`Estissac e em 1532, depois de ingressar na faculdade de Medicina, inspirado numa crônica popular da época sobre um certo gigante Gargantua , decide contar as peripécias do filho do personagem já famoso – baseado numa sotia do século anterior - e publica: Pantagruel Roy dês Dipsodes, restitué à son naturel avec sés faicts et prouesses espoventables, compozés par feu M. Alcofribas, absctracteur de Quinte essence. A história, que também apresenta Panurge, principal coadjuvante dos livros, foi um sucesso imediato e também imediatamente condenada pelas faculdades de teologia. Um ano depois, o autor parodia as profecias de Nostradamus no Pantagrueline Prognostiction pour l`na 1533, e em 1534 lança um romance focalizando a história do folclórico Gargantua.
Pai e filho crescem e exaltam a criação humanista, satirizando o sistema convencional do medievo. As características mais marcantes de sua escrita já estão consolidadas nestes dois volumes: lirismo de sabor inusitado, oralidade e inventividade sintática - que transforma a língua francesa para sempre, num momento em que o latim era a língua da erudição. O capítulo VI, do primeiro livro é um verdadeiro manifesto disto, quando o gigante encontra um homem de Limoges, que desfigura a língua francesa com seu “latinório”. Ainda a respeito de suas inovações, André Breton iria aproximar a liberdade discursiva de Pantagruel ao automatismo psíquico, cláusula essencial de seu movimento surrealista. Rabelais anarquiza o significado costumeiro das palavras e desestrutura sua posição nos enunciados. Além disso, as histórias de Pantagrel e Gargantua colocam-se na mediação transformadora entre a grande épica, Luciano e o romance moderno – ao lado de Bocaccio, Chaucer e Cervantes.
Após ter perdido alguns de seus maiores aliados e de ver os teólogos da Sorbonne, ofendidos com seus livros, condenarem seus dois heróis, Rabelais publica O terceiro Livro dos Fatos e ditos heróicos do Bom pantagruel, texto que nos interessa aqui. O périplo do gigante e seus companheiros gerou ainda um quarto livro em 1548, parodiando os relatos de viagem e com a célebre passagem das “palavras geladas”. Ainda há um quinto livro, mas sua autoria neste é dada como parcial.
No terceiro e, principalmente, no quarto volume começa a defesa do humanismo proposta por Rabelais, o pantagruelismo, que consistia em usufruir da plenitude da existência de todas as maneiras possíveis. Panurge, que a partir deste livro passa a representar a desmedida humana, está em dúvida se deve casar ou não; Todo o livro segue o personagem em busca desta resposta, o que o leva a consultar um poeta moribundo, um mago, um doutor, etc.
Há neste texto um momento emblemático da maneira como o autor entende a tradição por trás de si. Trata-se da passagem em que Pantagruel decide junto com Panurge adivinhar a sorte de seu casamento. Para isso, resolve abrir as páginas de Homero e Virgílio, sendo que o trecho aleatoriamente encontrado seria profético do destino do amigo indeciso. Assim é o método de Rabelais. Articular de forma aparentemente caótica a tradição que o precede, mas conseguindo com isso, acesso à consumação de uma nova forma do humano. Sua mistura de referências, anarquicamente articuladas permite que novos sentidos surjam e, a partir disso, possibilita que o ser habite estas novas possibilidades semânticas. Assim, o autor redefine seus predecessores e inventa uma nova dimensão existencial.
A anarquia; o acaso como mote - vide Bridoye, juiz que decide casos nos dados, afastando a ponderação do método da justiça institucional -; a inversão da lógica convencional; tudo isso inspirou um dos grandes teóricos da literatura ocidental, Mikhail Bakhtin, que extrai daqui a base de um de seus mais célebres conceitos: a carnavalização. O termo parte da investigação do sério-cômico na literatura, fundamental para o desenvolvimento do gênero romanesco, apesar da poética ocidental sempre ter privilegiado o primeiro na hierarquia de valores. Para considerar Rabelais na história da literatura, era necessário entender sua vinculação às culturas populares, como a do carnaval. A festa de que se trata aqui está longe de ser aquela conhecida atualmente. A bem da verdade, antes de ser um festejo, o carnaval refere-se a uma forma de existência. Além disso, a visão de Bakhtin sobre o carnaval não é una e muda nos diversos momentos em que o teórico ocupa-se do conceito.
Fico com o livro de maior fôlego, Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Aqui, o carnaval como visão de mundo envolve a necessidade de abertura e incompletude do ser para constituirmos seu valor. Envolve também o escárnio com as atitudes sérias e a inversão alto-baixo. Todas as hierarquias são instáveis, a organização do mundo é uma questão de tempo. Não há divisão entre ator e expectador. A ribalta é o mundo ou vice-versa. Vida às avessas. A razão, o dogmatismo, a univocidade são expulsos da realidade. A vida é exercida no que tem de atual. O enunciado é um eterno presente e não se separa do vivido. O gigantismo de Rabelais é o principal emblema disso. O corpo descomunal do gigante figura a profusão sensorial necessária ao homem. Uma possibilidade imensa de estímulos
A escatologia de Rabelais e a ampla atividade intestinal de seus personagens é decisiva para a natureza da carnavalesca. Insultar as camadas mais altas da sociedade, por exemplo, equivale a fertilizar com esterco, profanar para cultivar a comunidade. O corpo no carnaval se não urina nem defeca, ri, parodia. As referências às aberturas do corpo, com ênfase no ânus e na boca (lembrando que o inusitado também é essencial como o nascimento de Pantagruel pela orelha de sua mãe), são também as imagens carnavalescas da superação do corpo no corpo, que por suas protuberâncias e orifícios se comunica com o mundo. Nada é privado ao sujeito, e por isso também não existe morte, pois o corpo é auto-organizável e no fim sempre resiste enquanto massa modelável.
A palavra carnavalesca também não tem dono. É agitada, grupal, mas o mais impactante é sua característica não-imprimível, análoga aos enunciados da praça pública. Dessa forma, produtor e receptor do discurso se confundem na orgia semântica da rua. Não há risco individual. O peso do verbo é dividido entre as costas nuas.  A palavra carnavalesca é antes uma mediação que uma comunicação. A escatologia mais uma vez serve de imagem explicativa. A palavra-excremento liga o corpo à terra. Sendo a terra de todos, os corpos que a nutre são também uma única coisa. A própria comunicação do homem gigante deturpa a proporção da natureza e sugere que tudo deve ser medido pelo homem. Ele ora é imenso, podendo abrigar reinos em sua boca, ora é menor, principalmente quando convive com os homens. Para se comunicar o corpo também se adapta, pois deve funcionar em comunhão com os demais.
O carnaval é a imagem mais forte do discurso dialógico. Se o enunciado nunca pertence ao homem, mas nasce entre os homens, a festa carnavalesca é seu emblema máximo. Porém, deve-se ter cuidado aqui, pois o discurso carnavalizado pode dar uma volta ao redor de si e tornar-se um monólogo. O monólogo do deboche destrutivo, da caçoada e do alto erradicado em favor do baixo.
          Como não quero perder o caráter introdutório e sumário deste texto (que, por isso mesmo, se propõe incompleto), resta perceber uma última característica de Rabelais explorada por Bakhtin. O conflito entre o corpo do “ego burguês” e o “corpo coletivo ancestral”, proveniente do folclore. Aqui há uma carga compensatória, pouco discutida, e que é central para a valorização do segundo em detrimento do primeiro. O corpo isolado e doente pode almejar o triunfo atemporal da festa popular. A reprodução indiscriminada e nunca interrompida do diálogo garante sua imortalidade. Tal postura abre uma brecha para que se infira que é bom erradicar o individual em prol da utópica festa comunitária. Mas o riso não muda a matéria em si, no máximo transforma a maneira como se percebe o mundo material, o que é fundamental, já que a moral cristã foi paulatinamente estabelecendo uma maneira unilateral e autoritária de se relacionar com a história. Introduz-se o destemor para dele alargar as potencialidades do homem.
          Assim como Dostoiévski, Rabelais foi o meio fundamental para que Bakhtin conseguisse expressar suas ideias, que, se vistas em integridade, podem formar uma filosofia orientada para o ato e suas responsabilidades e que muito deve a dupla grotesca de gigantes que ainda escandalizam os mais impressionáveis.

Para os patos interessados: Ler primeiro o quarto capítulo de Problemas da poética de Dostoiévski, partir para “O cronótopo de Rabelais”, de Questões de literatura e de estética e, por fim, Cultura popular na Idade média, todos de Mikhail Bakhtin.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2008.
__________. Questões de literatura e estética. São Paulo. UNESP, 1998.
__________. Cultura popular na Idade média. São Paulo. HUCITEC, 2010.
RABALAIS, François. O terceiro livro dos fatos e ditos heróicos do bom Pantagruel. Ateliê Editorial. São Paulo, 2007.



Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

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