domingo, 26 de fevereiro de 2012

Pataquada: O romance, o testemunho e o padeiro de Graciliano Ramos

          Sim, a literatura é omissa. Como todo discurso, aliás, ela é feita também do que não diz. Entretanto, não é sempre que se tem algo como as conferências proferidas por W.G. Sebald em Zurique, reunidas sobre o título de Guerra aérea e literatura. Nele está expresso um polêmico diagnóstico: apesar do horror dos bombardeios às cidades do antigo Reich, na segunda guerra, não há qualquer relato aceitável feito pela literatura acerca deles. Os poucos que existem são publicações posteriores ( O anjo silencioso, de Heinrich Böll), textos suíços ou de exilados (como Elias Canetti) ou livros que mitificam, alegorizam, deturpam, adornam o evento. 130 cidades bombardeadas, mais de seissentas mil mortes, e a literatura em silêncio. Há uma espécie de ressentimento em debater a morte dos alemães, já que a nação que legitima o discurso literário é responsável pelos fatos (a retórica nazista, por exemplo, é percebida nos livros que abordam a questão). Se retratar como vítima, às portas do holocausto, também forçaria demais a barra da verossimilhança. Quando a cultura, da qual a literatura é suculenta fatia, promove o extermínio de inúmeros, como usá-la para se vitimizar? A sombra maciça de Hitler empalidece a ficção.
          Sebald discute o testemunho como um dos fundamentos do fictício. E cai num impasse. Algo que vem fazendo também nos seus romances, pois equilibra suas histórias nas linhas entre a ficção e a confissão. Austerlitz (cujo dispositivo mais explícito estão nas fotografias utilizadas por todo o volume) e Os anéis de saturno são exemplares disso. O testemunho funde memória individual e história, percepção subjetiva e constatação referencial.  Mistura o "como realmente aconteceram" de Ranke, à relativização dos limites do eu, como o paradigma da ego-história já assumiu. O romance é uma forma burguesa. Por essa razão, está regido pela biografia, mas também, como todo enunciado linguístico, é a memória de uma coletividade e o produto de suas convenções. Logo, se presta a iluminar os limites da atitude testemunhal. Ora, Sebald parece propor a tese de que, em alguns momentos, como na geração de 45 alemã, a literatura não é relevante na construção da consciência pública. Nestes momentos ela não guarda, não ensina, não acessa as experiências coletivas. Quando estas extrapolam o limite do suportável, a literatura não encontra verossimilhança que possibilite a mimese, pois a ficção depende das expectativas, que, neste caso, não esperam tratamento ficcional. Parece que na acusação está a solução do problema. 
    Sabe-se que desde Aristóteles há limites para o representável. Basta lembrar a necessidade de mimetizar homens “elevados”, no trágico, e “inferiores”, no cômico. Um dos problemas de Sebald está justamente em querer impor um tipo de representação mais válida que as demais, algo que é no mínimo um disparate histórico. Se a sociedade alemã não construiu as condições discursivas necessárias para aquilo que se esperaria da literatura, resta entender o porquê. As teses do alemão o fazem, mas não sem certa amargura. E este amargor reside no postulado a priori da função da literatura. Não é incomum o silêncio da arte em frente à catástrofe, o que em certos momentos é uma auto-imposição, como nas vanguardas. O dadaísmo buscou o silêncio (“DADA NÃO SIGNIFICA NADA”, diz Tzara no seu manifesto de 1918). O surrealismo tentou, entre outras coisas, absolver o homem por trás do discurso incontrolável, cheio de possibilidades além da razão. Neste caso, silenciar o homem em busca de uma realidade mais substancial, caótica. A negação como testemunho da crise da sociedade burguesa. A arte no limite da própria função.
          No Brasil, ao menos dois casos são essenciais na mescla de ficção e testemunho. Os sertões, de Euclides da Cunha e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Neste, há uma cena que muito me intriga e que pode ilustrar o impasse de Sebald. No início do capítulo 26, Graciliano Ramos, que não tinha condições de escrever devido à falta de espaço e luminosidade, tem seu sofrimento atenuado por um padeiro que lhe oferece seu camarote, melhorando  muito as parcas condições do alagoano. Entretanto, o narrador está perplexo, pois não consegue restituir a figura do sujeito. “Sei que era um homem baixo, moreno, de mangas arregaçadas. O resto perdeu-se. O indivíduo que me livrou daquele inferno e me facultou algumas horas de silêncio e repouso sumiu-se e poucos traços me deixou no espírito. Esqueci as conversas que tive com ele. Provavelmente não houve conversa alguma. Algumas palavras apenas.”
          Notam-se os reflexivos “perdeu-se”, “sumiu-se”. As ações não são empreendidas por um sujeito. A gramática assegura. O padeiro se perdeu na sua possibilidade de ser narrado. A atitude marca, já a realidade por trás do ato, não. O testemunho das condições em que os prisioneiros acusados de comunismo viviam repousa, nesta cena, numa abstração. O alívio do sofrimento não tem cara, nem corpo. Apenas um par de mangas arregaçadas, que não deixam de ser alegóricas da prestabilidade da personagem. O testemunho está também na mitificação, no adornamento e no esquecimento de certos aspectos da realidade. Quanto a isso nada se pode fazer. Basta averiguar as razões que levam a esses esquecimentos e atentar se os propósitos forem exclusivamente ideológicos. Lutar com palavras ainda é a luta mais vã. Entretanto, há manhãs e manhãs. Umas são omitidas para que as demais possam alvorecer.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro. Record, 2005.
SEBALD, W.G. Guerra aérea e literatura. São Paulo. Companhia das Letras, 2011.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

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