sábado, 18 de fevereiro de 2012

Pataquada: A verdadeira condenação do habitante irreal


A capa de Habitante irreal, de Paulo Scott, mostra um índio decepado. Felizmente, não se trata de um ser humano, mas de um boneco das coleções Forte apache. A falta deste rosto e o caráter artificial e lacunar da identidade preencherá boa parte do conteúdo do romance. Este conta a história de Paulo, estagiário de advocacia, desiludido com a política petista do final dos anos oitenta, que encontra a índia Maína na beira de uma estrada e se apaixona. A aventura dos dois resultará em Donato, mestiço cuja história toma conta da segunda parte do romance.
A construção da trama garante seu lugar entre as melhores publicações da atualidade e sua importância começa na escolha da temática: o secular contato branco-índio, que, entre outros fenômenos, representa nossa épica e a fundação de um projeto romanesco entre nós, a partir de José de Alencar e seu O Guarani. O encontro dos dois é narrado numa cena extremamente simbólica. Maína, num dia de chuva, “era uma indiazinha segurando uma pilha de jornais e revistas contra o peito. A seu lado, duas sacolas brancas de plástico largadas no chão.” (18) A imagem reencena o encontro de Martim e Iracema, apostando na indefinição do espaço (pouca visibilidade) para explorar os dois elementos visuais de destaque. As revistas e jornais e as sacolas. A índia, como num trabalho de Braque, surge como uma bricolage feita de elementos de ordem distinta. Sua natureza silvícola e abandonada é complemento dos periódicos que carrega. Maína já é mestiça, feita de duas dimensões culturais, e representa, no momento em que Paulo a encontra, um comunicante de dupla orientação. Logo saberemos que ela sabe algumas palavras em português e que lê os jornais, abandonados na estrada, para aprender mais. O bricoleur, improvisador que dos destroços inventa novos usos para as ruínas que o cercam, passará a ser o interlocutor do estagiário.
Paulo decide ajudá-la e essa atitude é política, pois consequente do compromisso em não ser isento de uma geração pós-ditadura. Há no livro a confessa tentativa de representar as três últimas décadas do país e sua geração. A passagem indiscriminada do narrador de uma personagem para outra só reforça a carga coletiva do destino das personagens. Da mesma forma, o caráter de road story, na primeira parte do livro, parece mapear o estado rio-grandense, isto é, o espaço coletivo. Assim, a relação da dupla Paulo/Maína termina por repercutir num hall muito mais amplo de seres, principalmente a partir de Donato. Como Moacyr – o primeiro brasileiro, filho de Iracema e Martin -, ele é fruto de uma relação extra-oficial. O habitante irreal, o pária sem identidade definida que dá unidade ao texto.
Se percebermos que alguns capítulos, entre eles o primeiro, são contados em rodapés referenciados nos títulos e em letra menor, entenderemos que a narração já está contaminada pela presença de Donato. É ele quem justifica a escrita fora de seu espaço tradicional, para simular o deslocamento do próprio conteúdo narrado. O não-lugar do discurso está expresso a partir do seu posicionamento na página. Mesmo o texto reluta em começar, e o faz a partir da condicional “Se tivesse de resumir seus dias de militante político [...]”, num esforço nada natural que sugere um texto forçado e talvez até desnecessário. Engenhosamente, ao fim do romance, Donato, que se arrisca como dramaturgo, constata “Jamais poderei salvar o país ou o mundo, Luisa, as dramaturgias não tem esse poder.”. A desilusão com o ficcional é o último reduto deste novo filho da dor.
A segunda parte do romance traz o lindo nome “ninguém lê direito o súbito” e indica uma leitura interessante. O súbito se manifesta nas principais situações do livro na forma do acaso. Paulo na hora certa cruza com Maína. Na hora certa (ou errada), dois policiais chegam à barraca da índia, onde ele e um amigo estão, e precipitam a separação do casal. Da mesma forma, há o encontro de seu filho com o lar que o adotará (tão ao acaso que a posição da mãe adotiva logo é transformada em outra), e o encontro final dos dois ocorre por intermédio da televisão. Como ler direito estas súbitas transformações, que ocorrem sem preparação causal por parte da narrativa? Paulo Scott parece desenhar o painel do aleatório para desmitificar a semântica decisiva do caráter. O que move o enredo aqui é o acontecimento e as ações diante deles, não a persona. Habitar é se transformar e aceitar a irrealidade do caótico, entender a lógica das contingências. O bonequinho na capa ainda segura a lança e o escudo, mas não pode ver quem o atacou, nem pode olhar para si mesmo. Assim sempre será porque ele não consegue se mover. Esta é sua verdadeira condenação.


SCOTT, Paulo. Habitante irreal. Rio de Janeiro. Objetiva, 2011.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

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