domingo, 30 de março de 2014

A solução da América Latina é a abdução (mas nos contentamos com o insulto)



“A coincidência é prima-irmã da confusão,
essas duas safadas se beneficiam
do caos, do bendito caos.”

Já falamos aqui no Pato Fáustico do romance anterior de Juan Pablo Villalobos. Sua estreia como romancista ocorre em Festa no covil, livro que conta a história do filho de um narcotraficante que interage com um mundo tão absurdo quanto sua singular condição. Dessa vez, em Se vivêssemos em um lugar normal, livro segundo de uma trilogia iniciada na obra anterior, o autor decide contar sua história por intermédio da primeira pessoa do adolescente Orestes, segundo filho de uma família pobre (mas, segundo a mãe, de classe-média) com nove bocas para alimentar (sete filhos, pai e mãe). A perspectiva escolhida traz ecos da obra anterior, uma vez que os mais jovens têm, novamente, que amadurecer precocemente para lidar com a realidade: “As crianças já estão grandes e conseguem saber o que é errado.” (p. 21), diz o pai para a mãe, após ensinar os filhos que a polícia serve “para matar todo mundo”(p. 22)


A vida familiar contextualiza todos os acontecimentos da obra e, logo no início do livro, após perder dois irmãos em um mercado, alegoria para a selvageria do consumo que também acompanha toda a trama, Orestes chega à conclusão de que, quanto menos familiares, melhor a situação econômica dos parentes. Estes insights político-econômicos, surgidos de carências pessoais e não de consciência ideológica adquirida, são o subtexto mais forte relacionado aos absurdos vividos pelo protagonista, que podem incluir um controle remoto mágico e naves alienígenas. Estas pílulas fragmentadas de consciência social são reveladas, geralmente, a partir do humor e ironia que percorrem toda a narrativa. Em certo ponto, por exemplo, o narrador revela, após a diminuição dos alimentos nas refeições: “Entramos em uma fase de racionamento das quesadillas que terminou por radicalizar as posturas políticas de todos os membros da família.” (p. 15). Em outro momento, o herói diz:

“Minhas visitas à casa de Jarek foram um poço sem fundo de preocupações para minha mãe, que temia que eu executasse estragos como em casa, o que nos endividaria com os vizinhos em proporção similar à da dívida externa do país” (p. 53)

Esta comicidade corrosiva é, primeiramente, uma forma de lidar com a História, mas também permite o olhar distanciado de um personagem cuja postura subversiva, desde a primeira frase do romance, se comunica por intermédio do choque e do insulto: “ – Vai tomar no cu duma vez seu filho da puta! Vai à merda.” (. 9)

Durante seu percurso, Orestes se desvincula dos familiares, rompe (mais uma vez, de forma violenta) com o irmão e segue uma jornada pessoal de ida e retorno, adaptando-se, numa tentativa frustrada de melhorar de vida. Nesse sentido, o personagem resgata a tradição “picaresca” em que se atrofia a noção tradicional do último tipo de herói clássico (o arturiano), por intermédio de um anti-herói extremamente individualista, preocupado exclusivamente com seus projetos pessoais. Geralmente, este tipo de “caráter” serve para desmascarar um sistema social bilateral que, ou aliena o herói, ou o condiciona a uma existência nada emancipadora. O motivo mais emblemático desta situação refere-se ao projeto de desalojamento da família de Orestes para a construção do Residencial El Olimpo, fruto do imaginário utópico burguês da pós-modernidade que conjuga conforto com absurdas transações mercadológicas. Além disso, é evidente a paródia da tradição clássica helênica, já explícita no nome do protagonista.


A revolta do herói se converterá justamente na recusa do discurso medido e equilibrado, o que provoca sua oratória agressiva. A retórica epidítica, repleta de censura a seres e instituições, é a mobilização do caráter de Orestes e de seus pares. Como ele mesmo explica no início do romance, após a primeira frase já citada aqui:

“Sei que não é uma maneira adequada de começar mas a minha história e a história da minha família estão cheias de insultos” (p. 9). Ora, o modelo familiar de Orestes é projetado em tudo que o circunda. Mesmo as comunidades nômades que ele encontra ao fugir de casa e romper com o irmão continuam este modelo:

“Em cada cidade, sempre no segundo dia um contingente de esfarrapados me examinava. Eles ficavam me observando sem eu perceber, e nisso levavam vantagem, conheciam as ruas e os becos de cor, e percebiam qualquer anomalia com muita rapidez. O líder sempre era o mais velho, a rua reproduzia o modelo familiar.” (p. 81).

O silogismo é fácil: a família é um microcosmo de todos os espaços, ou seja, é a pátria. Contudo, o insulto e as grosserias vulgares não são simplesmente uma forma de lidar com/representar as injustiças sociais e as mazelas da terra, mas são elas mesmas a lógica de uma sociedade em permanente crise. E, de forma ainda mais cruel, podem se converter à representação das práticas de violência cometidas pelo estado contra as populações, manifestada plenamente por uma linguagem na defensiva, simulando réplicas de uma ofensa original sofrida no fiat lux da cultura periférica.
Quando Orestes percebe que é o irmão mais velho em casa, a sua atitude é emblemática de uma alma subordinada, acuada e sedenta de poder, já que seu lema contra os irmãos se torna: “Vocês não sabem de nada, seus idiotas” (p. 98). Ainda que clichê, o exercício de domínio se estabelece pela afirmação da ignorância dos dominados. Felizmente, fugindo das soluções fáceis, o livro abandona um pouco o excesso de referenciais sociais e históricos para promover um interessante “desacato à realidade” que envolve os OVNIs citados anteriormente. A ficção faz sua curva característica (a coincidência do caos, como dito na epígrafe) ao fim do romance e se sustenta mais pelo estranhamento do que por paradigmas prévios estabelecidos, o que favorece seu ideal semianárquico e subversivo, seguindo a linha de Festa no Covil. Agora, se a solução para o subdesenvolvimento é a abdução, fica difícil afirmar. Por enquanto, nos contentamos com a força responsiva do insulto.
Autor: Daniel Baz