“A coincidência é
prima-irmã da confusão,
essas duas safadas se
beneficiam
do caos, do bendito
caos.”
Já falamos aqui no Pato
Fáustico do romance anterior de Juan Pablo Villalobos. Sua estreia como
romancista ocorre em Festa no covil,
livro que conta a história do filho de um narcotraficante que interage com um
mundo tão absurdo quanto sua singular condição. Dessa vez, em Se vivêssemos em um lugar normal, livro
segundo de uma trilogia iniciada na obra anterior, o autor decide contar sua
história por intermédio da primeira pessoa do adolescente Orestes, segundo
filho de uma família pobre (mas, segundo a mãe, de classe-média) com nove bocas
para alimentar (sete filhos, pai e mãe). A perspectiva escolhida traz ecos da
obra anterior, uma vez que os mais jovens têm, novamente, que amadurecer
precocemente para lidar com a realidade: “As crianças já estão grandes e
conseguem saber o que é errado.” (p. 21), diz o pai para a mãe, após ensinar os
filhos que a polícia serve “para matar todo mundo”(p. 22)
A vida familiar contextualiza
todos os acontecimentos da obra e, logo no início do livro, após perder dois
irmãos em um mercado, alegoria para a selvageria do consumo que também
acompanha toda a trama, Orestes chega à conclusão de que, quanto menos familiares,
melhor a situação econômica dos parentes. Estes insights político-econômicos, surgidos de carências pessoais e não
de consciência ideológica adquirida, são o subtexto mais forte relacionado aos absurdos
vividos pelo protagonista, que podem incluir um controle remoto mágico e naves
alienígenas. Estas pílulas fragmentadas de consciência social são reveladas, geralmente,
a partir do humor e ironia que percorrem toda a narrativa. Em certo ponto, por
exemplo, o narrador revela, após a diminuição dos alimentos nas refeições:
“Entramos em uma fase de racionamento das quesadillas
que terminou por radicalizar as posturas políticas de todos os membros da
família.” (p. 15). Em outro momento, o herói diz:
“Minhas visitas à casa de Jarek
foram um poço sem fundo de preocupações para minha mãe, que temia que eu
executasse estragos como em casa, o que nos endividaria com os vizinhos em
proporção similar à da dívida externa do país” (p. 53)
Esta comicidade corrosiva é,
primeiramente, uma forma de lidar com a História, mas também permite o olhar
distanciado de um personagem cuja postura subversiva, desde a primeira frase do
romance, se comunica por intermédio do choque e do insulto: “ – Vai tomar no cu
duma vez seu filho da puta! Vai à merda.” (. 9)
Durante seu percurso, Orestes
se desvincula dos familiares, rompe (mais uma vez, de forma violenta) com o
irmão e segue uma jornada pessoal de ida e retorno, adaptando-se, numa tentativa
frustrada de melhorar de vida. Nesse sentido, o personagem resgata a tradição
“picaresca” em que se atrofia a noção tradicional do último tipo de herói clássico
(o arturiano), por intermédio de um anti-herói extremamente individualista,
preocupado exclusivamente com seus projetos pessoais. Geralmente, este tipo de
“caráter” serve para desmascarar um sistema social bilateral que, ou aliena o
herói, ou o condiciona a uma existência nada emancipadora. O motivo mais
emblemático desta situação refere-se ao projeto de desalojamento da família de
Orestes para a construção do Residencial El Olimpo, fruto do imaginário utópico
burguês da pós-modernidade que conjuga conforto com absurdas transações
mercadológicas. Além disso, é evidente a paródia da tradição clássica helênica, já explícita no nome do protagonista.
A revolta do herói se
converterá justamente na recusa do discurso medido e equilibrado, o que provoca sua oratória agressiva. A retórica epidítica, repleta
de censura a seres e instituições, é a mobilização do caráter de Orestes e de seus
pares. Como ele mesmo explica no início do romance, após a primeira frase já
citada aqui:
“Sei que não é uma maneira
adequada de começar mas a minha história e a história da minha família estão
cheias de insultos” (p. 9). Ora, o modelo familiar de Orestes é projetado em
tudo que o circunda. Mesmo as comunidades nômades que ele encontra ao fugir de casa
e romper com o irmão continuam este modelo:
“Em cada cidade, sempre no
segundo dia um contingente de esfarrapados me examinava. Eles ficavam me
observando sem eu perceber, e nisso levavam vantagem, conheciam as ruas e os
becos de cor, e percebiam qualquer anomalia com muita rapidez. O líder sempre
era o mais velho, a rua reproduzia o modelo familiar.” (p. 81).
O silogismo é fácil: a família
é um microcosmo de todos os espaços, ou seja, é a pátria. Contudo, o insulto e as grosserias vulgares não são simplesmente uma forma de lidar com/representar as injustiças sociais e as
mazelas da terra, mas são elas mesmas a lógica de uma sociedade em permanente
crise. E, de forma ainda mais cruel, podem se converter à representação das
práticas de violência cometidas pelo estado contra as populações, manifestada
plenamente por uma linguagem na defensiva, simulando réplicas de uma ofensa
original sofrida no fiat lux da
cultura periférica.
Quando Orestes percebe que é o
irmão mais velho em casa, a sua atitude é emblemática de uma alma subordinada,
acuada e sedenta de poder, já que seu lema contra os irmãos se torna: “Vocês
não sabem de nada, seus idiotas” (p. 98). Ainda que clichê, o exercício de
domínio se estabelece pela afirmação da ignorância dos dominados. Felizmente,
fugindo das soluções fáceis, o livro abandona um pouco o excesso de
referenciais sociais e históricos para promover um interessante “desacato à
realidade” que envolve os OVNIs citados anteriormente. A ficção faz sua curva
característica (a coincidência do caos, como dito na epígrafe) ao fim do
romance e se sustenta mais pelo estranhamento do que por paradigmas prévios
estabelecidos, o que favorece seu ideal semianárquico e subversivo, seguindo a
linha de Festa no Covil. Agora, se a
solução para o subdesenvolvimento é a abdução, fica difícil afirmar. Por
enquanto, nos contentamos com a força responsiva do insulto.
Autor: Daniel Baz