segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Pato Fáustico - O sentido de um fim, de Julian Barnes

O romance "O sentido de um fim", de Julian Barnes, vencedor do "Man Booker Prize" de 2011 é o assunto do videocast de hoje. Um velho memorialista perdido entre dois tempos é o herói desta história de mágoas e nostalgia. Confiram!!!!!

Entre a inquietude e a acumulação: O sentido de um fim, de Julian Barnes



“A que propósito evolucionário a nostalgia poderia servir?” pergunta Tony Webster, narrador memorialista sexagenário do romance O sentido de um fim, de Julian Barnes. O questionamento torna-se crítico quando pensamos no transtornado percurso de um herói que busca se (re) descobrir lembrando a vida que teve, na esteira do filão de livros rememorativos sempre tão populares, não importando a época. O principal diferencial de O sentido de um fim é o peso dado a não-confiabilidade do narrador, que torna o processo de leitura muito mais acidentado e escorregadio.
O romance se divide em duas partes. Na primeira - que já começa com significativa indicação dos limites da memória, em que a lembrança ocorre de forma “aleatória” – o narrador lembra o grupo de três amigos que o acompanharam quando era um estudante, com especial atenção para o genial colega Adrian Finn, o rápido namoro com a misteriosa Veronica (acrescido do tratamento desdenhoso que a família dela lhe oferece) e, por fim, a entrada no mundo adulto, ao casar-se com Margaret, de quem se divorcia anos depois.
Até este ponto do romance, a ênfase recai na admiração/inveja que o narrador sente pela inteligência do amigo Adrian, sua mágoa quando este começa a sair com Veronica e sua surpresa quando ele se suicida aos 22 anos. Quando consegue esquecer o velho colega, a história parece perder a razão de ser e salta no tempo, resumindo décadas da história do narrador: “Então conheci Margaret; nos casamos e três anos depois nasceu Susie. Nós compramos uma pequena casa com uma grande hipoteca; eu viajava para Londres todo dia. Meu estágio se transformou numa longa carreira. A vida foi passando. Algum inglês disse que o casamento é uma refeição comprida e sem graça onde servem o pudim primeiro. [...] Depois de doze anos, Margaret foi viver com um cara que gerenciava um restaurante.” (p. 62)
O que parecia ser mais uma história de “A vida que podia ter sido e que não foi” se torna algo muito mais enigmático a partir da segunda parte do livro, em que o narrador recebe da mãe de Veronica o testamento do amigo, envolvendo uma quantia de dinheiro (prontamente recebida) e o diário de Adrian, ainda em posse de Veronica. Além disso, esta etapa do romance insere o imaginário contemporâneo nos limites da obra e acompanhamos as incessantes mensagens de e-mail do narrador para seus conhecidos, em busca de recuperar o diário e entender questões abertas desde o passado.
Por esta via, a narrativa trabalha a inscrição de dois tempos diegéticos em destaque, o do século passado, anos sessenta, e os presentes anos dois mil. Dois recortes de tempo muito específicos que são subseqüentes na narrativa sem a oportuna observação dos momentos que lhe foram intermediários. Este tratamento anômalo do tempo alia-se à capacidade seletiva da memória que controla a sintaxe narrativa. O próprio personagem recorre a uma imagem interessante para tentar explicar isso: “Mais tarde, a memória vira uma coisa feita de retalhos e remendos. É um pouco como a caixa preta que os aviões carregam para registrar o que acontece num desastre. Se nada der errado, a fita se apaga sozinha. Então, se você se arrebenta, o motivo se torna óbvio; se você não se arrebenta, então o registro da sua viagem é muito menos claro.” (p. 113)
Quem conhece a obra-prima de Proust sabe que lá o autor explora dois aspectos da retenção representativa operada pela memória. Refiro-me à percepção e à rememoração (cujo ápice ocorre na discussão da retenção da percepção estética de O tempo redescoberto). Na primeira experiência, o foco está na presentificação do objeto enquanto sentido, efeito extremamente particularizado. Já na outra relação com os fenômenos, trata-se de uma espécie de resumo lógico empreendido pela memória, e que geralmente tende a retirar as particularidades pessoais da experiência passada para incorporá-las à cadeia genérica da narrativa de uma vida. Ora, o narrador de O sentido de um fim está a todo o momento partindo do segundo tipo de experiência para o primeiro. Prova disso é uma das cenas mais impressionantes do livro em que o narrador ao ler uma carta enviada por si mesmo no passado percebe o quanto pode ser cruel. A percepção de um objeto que vivia na memória como reminiscência, pode redefinir a identidade do sujeito e interferir na sua relação com o mundo e com seu interlocutor (afinal, há um receptor implícito textualizado em muitos momentos do texto).
A ambigüidade da identidade do protagonista surge em uma série de textos em que o narrador se contradiz ou relativiza, no momento da enunciação, o conteúdo do enunciado. Um dos momentos mais explícitos acontece quando o narrador revela: “Mais uma vez, devo enfatizar que esta é a minha leitura atual do que aconteceu na época. Ou melhor, minha lembrança atual da leitura que fiz então do que estava acontecendo na época.” (p. 49); ou quando se põe sumariamente em dúvida “Os Ford eram mais elegantes do que os Webster naquela época, e eles iam continuar sendo para sempre. Ou isso era mera paranóia da minha parte?” (p. 81)
Todo este tratamento ambíguo está relacionado com uma percepção do tempo também na sua perspectiva histórica. Em determinado momento, Tony atesta que “a maioria das pessoas nos anos 1960 ainda estava experimentando os anos 1950 – ou, no meu caso, pedaços de cada década lado a lado. O que tornava as coisas um tanto confusas” (p. 47). Desta forma, a história, assim como o indivíduo, também é feita de percepções que envolvem anacronias necessárias para o desenvolvimento da compreensão do que se viveu. A disritmia (nostálgica ou não) torna-se sim um motor da evolução narrativa (e de sua interpretação), por intermédio da pré-seleção e interpretação dos eventos.
Também por isso a linguagem da obra investe na errância de motivos, que, de um momento para o outro, podem perder todo o sentido ou ganhar novos. O deslizamento de interpretações cria um tipo de obra memorialista, como em clássicos do tipo de Tristan Shandy, em que se oferece a imagem de um embate, do homem e sua capacidade dinâmica de narrar com as relações petrificadas que estabelece no mundo e aquelas que a própria memória cria.
A palavra passa a admitir que “não foi bem assim”, desde o momento de sua enunciação. O autor do monólogo interior, que, geralmente, é dono de um gesto preciso, ao não se distanciar esteticamente do que conta, está fadado a experimentar o julgamento da interlocução. A sociedade, por sua vez, neste tipo de romance, se resume a poucas relações motivadas pelas situações que se firmaram no passado, inscrevendo a trama no terreno da (re) apresentação do mundo (basta reparar como o narrador não consegue mais se relacionar com ninguém no presente). Nesse sentido, quando o narrador, ao fim do romance, descobre que uma personagem é na realidade outra bem mais nova do que a primeira que ele supora, podemos finalmente perceber melhor o teatro trágico da vida de Tony preso à outra temporalidade.
Assim, o sentido de um fim torna-se o sentido do próprio tempo. Descontínuo, o tempo, por sua vez, é uma matéria ineficaz. Como última menção, basta notar como os personagens são desenhados em rápidas pinceladas pelo narrador, que nunca oferece uma imagem definida e concentrada dos coadjuvantes. Desta forma, o tempo interno do eu constrói uma narração que não tenta a fixação de identidades externas a si, ainda que a verdade resida também ali. Por isso, o sentido do fim é ainda um sentido de acumulação e inquietude, numa paráfrase do lamento final de Tony: “Existe acumulação. Existe responsabilidade. E além de tudo isso, existe inquietude. Existe grande inquietude.” (p. 159)

BARNES, Julian. O sentido de um fim. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.


Autor: Daniel Baz

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O Pato Fáustico - Habibi, de Craig Thompson e Cosmópolis, de Don DeLillo

Habibi, a nova obra de Craig Thompson e Cosmópolis, de Don DeLillo, formam a dupla quadrinhos e literatura do programa de hoje. Confiram!!!!!!!


O valor do supérfluo em Cosmópolis




A capacidade de absorver em sua estrutura narrativa as características da sociedade de massa contemporânea é um dos diferenciais das ficções pós-modernas. No mínimo desde a década de 50,  estas  ficções tornaram-se capazes de alegorizar sua própria situação, ao mesmo tempo em que representam o mundo que as contextualizam. Neste processo, Don DeLillo nunca foi autor de pouca importância e seu romance Cosmópolis, que agora recebe uma nova interpretação – cinematográfica – nas mãos de David Cronenberg, é uma obra emblemática de relevo.
Eric Parker, 28 anos, gênio da especulação financeira, o que o torna bilionário, decide cortar o cabelo. O fato de o presidente estar na cidade, seguido da morte de uma expoente astro do rap, transformam a cidade em um caos, tornando a banal decisão do protagonista o início de uma epopéia pelas ruas engarrafadas e hostis da cidade. Boa parte do romance se passa na limusine de Parker, espaço artificial que permite o movimento do personagem enquanto este garante sua estaticidade, o que converte o automóvel no símbolo da pós-industrialização e da lógica mínimo esforço/máximo de resultados – além de ser índice explícito da alienação que o fará cair antes do fim da história.
Durante o dia, Eric irá se envolver em uma série de diálogos reveladores do absurdo de sua existência, como o médico que constata que sua próstrata é assimétrica ou a excitação sexual atingida sem contato físico e com a participação de uma garrafa de plástico. Para piorar sua situação, alguém está decidido a matá-lo, crise que o torna ainda mais paranóico e ajuda na reflexão do seu modo de existência. Consciente disso, o autor estabelece dois tipos de narração, uma em terceira pessoa - que acompanha Eric - e outra em primeira pessoa – usada para seguir o raciocínio de seu assassino. Dessa forma, a única consciência a que temos acesso é a do antagonista do herói, o que também enfraquece a mundivivência de Parker .
DeLillo, assim, explora o absurdo dos acontecimentos para erigir uma alegoria precisa de certas características, para as quais ele lança um olhar cáustico, do mundo atual, na velha tradição de Jonathan Swift. O interessante de Cosmópolis é que o absurdo atinge até mesmo os menores organismos do discurso, começando pelas comparações artificialmente alusivas em que um carro é grande como metástase (p. 18) e deve ser “prousteado” (alongado) (p. 73). A impertinência semântica é visível ainda em certas frases que não se ligam com qualquer informação precedente, o que é ilustrado pelo momento em que o narrador diz do protagonista “Ele gostava de manter o volume baixo, ou tirar o som” (p. 41).
O auge deste tipo de procedimento é atingido em passagens que sinalizam para a discrepância entre os atos e suas causas, criando sintagmas em que as ações se alienam de suas motivações: “Ela mergulhou o dedo no drink depois esqueceu de lambê-lo” (p. 111). Para finalizar, certas informações não acrescentam absolutamente nada ao que foi dito anteriormente e garantem o lugar de elementos sintáticos que já não tem nenhuma função, mas que nem por isso são descartados: “O que faz as pessoas espirrarem? Um reflexo protetor das mucosas nasais, para expelir material estranho.”
O que torna todos estes exemplos citados eficazes é a maneira como eles se articulam com a atividade responsável pela situação de Parker, ou seja, a especulação financeira. A ideia principal deste tipo de atividade é justamente consistir em um trabalho sem ato, feito em um tempo indissociado das ações humanas. Por isso, este tipo de atividade econômica, característica dos tempos atuais, estipula uma nova dimensão humana do tempo, em que as ações presentes estão desvinculadas de suas conseqüências imediatas. Por outro lado, a especulação deposita valor temporal humano em um futuro ainda não vivido, mas que já está cheio de ações transcorridas em um tempo ainda inexistente. Assim, o futuro, carregado de responsabilidade, se torna urgente e algo precisa acontecer para compensar a disritmia. A narrativa é uma forma de ressincronizar o tempo ao presente. Sendo assim, a lógica do novo capitalismo flutuante insemina o discurso também com sua qualidade gratuita e disfuncional.
Em determinado momento, uma personagem menciona a perda da qualidade narrativa do dinheiro, o que faz pensarmos em como a relação humana com este objeto tão presente no romance, no mínimo desde o século XIX, e na mudança de sua função na estrutura romanesca. Em autores do tipo de Balzac, por exemplo, o dinheiro é o grande motor da ação e os conflitos e reviravoltas da narrativa transcorrem ao seu redor. Em Cosmópolis o dinheiro ainda é fundamental, mas não surge concatenado a uma série de ações. Muito pelo contrário. Pode aparecer em grande escala ou sumir em um Deus ex machina importando a sua lógica na sociedade atual para dentro da narrativa. DeLillo faz seus personagens mencionarem a afinidade entre movimentos do mercado e mundo natural (p. 87). Não podemos deixar de notar uma analogia imposta entre o mercado e este tipo de mundo ficcional, onde o supérfluo é o padrão de mesura e a existência dos objetos precedem sua função.


DELILLO, Don. Cosmópolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


Autor: Daniel Baz

Habibi, de Craig Thompson, e a descoberta das coisas que ainda não vi




Craig Thompson está vivendo o que provavelmente é seu auge criativo. Depois de conquistar a cena dos quadrinhos mundiais (e os prêmios!!!) com Retalhos, em 2003, o autor volta com o aguardadíssimo novo álbum Habibi, e não decepciona. A trama do novo trabalho apresenta Dodola, menina vendida pelo seu pai para se casar com um escriba. Quando seu marido é morto, a personagem começa a se prostituir para sobreviver. Durante sua trajetória, salva o menino negro Zam de ser escravo e passa a cuidar dele, assumindo o papel de mãe e irmã mais velha. A trama segue a vida de ambos, após se separarem e vivenciarem duas surpreendentes histórias que seguem paralelas até o reencontro ao fim.
Também em paralelo, é construído um repertório de histórias míticas, extraídas do Corão, e que estabelecem dois estratos narrativos, um vivido pelos heróis, e outro povoado pelos mitos e lendas que dão sentido à sua existência. Os dois personagens vão reinscrever o espaço mítico no seu percurso, reatualizando em vários momentos as histórias ancestrais presentes nas escrituras sagradas. Isso empresta um caráter transcendental à narrativa, em que nada tem apenas um sentido, mas possui várias camadas de interpretação e produz inúmeros universos semânticos.
Assim, a narrativa associa a história de Dodola à de Buraq - criatura que, de acordo com o islamismo, transportou Muhammad – Maomé – de Meca para Jerusalém (p. 233 e p. 245), para ficar em um exemplo mais relevante. Em outras oportunidades, ainda mais interessantes, o autor explora uma série de efeitos gráficos relacionados à transcendência do mundo material, a exemplo da maleabilidade dos quadros que acompanham os movimentos dos heróis e parecem se amoldar à sua vontade em certas passagens (p. 214-215 e p. 314). Em determinado momento, romper as águas para nadar é também mover os contornos do quadro (p. 445). Os trechos citados lidam com uma ética assumida pelas escolhas discursivas que se comovem com as dificuldades vividas pelos heróis, o que ajuda no nosso próprio envolvimento.
Certos quadros exploram com mais perseverança os elementos transcendentais que compõe a obra, o que fica visível na formatação de alguns recursos. Característico disso são os balões feitos da fumaça do narguilé (196, 203, 239), uso emblemático, já que, como  disse Eisner certa vez, o balão é um recurso extremo que nasce do esforço de reter algo etéreo, o som, e, por isso, já é naturalmente uma tentativa do material sígnico em transcender os próprios limites. Aqui, o recurso ganha mais força ao notarmos que até mesmo a maneira como as letras são escritas interferem no sentido, ao possibilitar diversas entonações aos atos de fala diegéticos. Em Habibi, esta é uma dimensão essencial da interpretação. As letras revelam muito  por intermédio de sua dimensão imagética que capta camadas tênues de sentido, a partir da espessura, ondulação, posição na página, etc.
A diagramação do livro é cheia de preciosismos que dispersam nossa atenção. Procedimento que atesta o caráter efêmero da condição dos personagens já que na borda dos acontecimentos, isto é, nos detalhes, sabe-se que há tanta carga valorativa quanto no centro icônico dos episódios. Nesse sentido, alternar muitos planos em uma mesma cena também combina com a ênfase nos estratos mais obscuros da existência, como o religioso e espiritual. Sendo assim, é nas coisas que ainda não vimos (nós e os personagens) que pode estar o valor mais essencial do mundo.
Ao fim da narrativa, duas frases ditas pelos personagens podem ajudar na difícil tarefa de sintetizar seu efeito maior no leitor:

“Minha oração, como toda oração, é um desejo de deixar este mundo.” (p.598)

“Como terei acesso a seu ponto de vista, Alá? Você é UNO. Eu estou partido em pedaços.” (p.602)

Craig Thompson, a partir dos recursos gráficos que o notabilizaram, tenta a épica tarefa de achar unidade estética em um mundo estratificado. Como resultado disso, Habibi é um espaço narrativo em que o desejo de superar/deixar este mundo é também a necessidade de reverenciar sua solene complexidade.

THOMPSON, Craig. Habibi. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Autor: Daniel Baz