sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O mágico de Oz entre o cotidiano e o fantástico




O mágico de Oz foi publicado originalmente em agosto de 1900, com ilustrações de W.W.Denslow, artista com quem Baum passaria a brigar pelos direitos do universo fantástico do livro. A história conquistou o mundo ao relatar uma fábula simples, passível de inúmeras leituras. Dorothy e seu cãozinho Totó são arrancados do Kansas, onde viviam com os tios da menina, e acabam chegando na terra maravilhosa de Oz. Nela, a desterrada garota parte em busca do mágico que dá nome ao local para que ele lhes envie de volta para casa. No caminho, Dorothy conta com três ajudantes improváveis: O espantalho, que deseja que Oz lhe dê um cérebro; o lenhador de lata, que almeja receber um coração do famoso mago; e o leão covarde, ansioso por adquirir coragem do renomado feiticeiro.
Ao final do livro, descobrimos que Oz é um farsante, vindo também do mundo de Dorothy. Por intermédio de sua palavra, aprendemos também que todos os personagens já possuíam, no início de sua trajetória, aquilo que almejavam conquistar durante ela. Aqui, é possível pensar em muitas ironias trabalhadas nas entrelinhas do texto. O embusteiro forasteiro nomeia a terra fantástica, o que sinaliza para a semelhança entre ambos e abre para as interpretações alegóricas. Contudo, há outra característica que mais impressiona na organização do romance.
Ela se sustenta a partir da grande mensagem do livro (certamente irônica também, se pensada de forma estrutural), pois, mesmo tornando o percurso das personagens inúteis (o espantalho sempre fora inteligente; o leão, valente; o lenhador, emotivo; e Dorothy já tinha os meios para voltar para casa), a aventura foi genuína, na medida em que narra a aquisição de três atributos sustentáculos da formação do humano, como é comum neste tipo de literatura, e é isso que vale. A alegoria dessa organização dos dados é forte e supõe que os sujeitos já têm as ferramentas para adquirir o que desejam, independente das figuras de poder que os cercam (não à toa, muitos leem O mágico de Oz por intermédio da associação de Baum ao movimento populista). Isso se torna mais forte ainda, se repararmos que os amigos de Dorothy acreditam em tudo que o mágico lhes dá, mesmo sabendo que ele não passa de um engodo.
Junta-se a este centro nevrálgico do livro, a instigante utilização daquilo que pode ser chamado de “tempo de aventuras” por Baum. A heroína é retirada do tempo da vida cotidiana para adentrar em um mundo onde as aventuras se seguem em cadeia ininterrupta, simulando infinitude e desconectadas de qualquer lógica histórica tradicional, já que nunca existem causas predecessoras para os acontecimentos.  Pelo contrário, as ações são regidas pelo signo da repentinidade, nos moldes da interpretação feita por Bakhtin a respeito do romance aventuresco. O ciclone (p. 15), os encontros com os amigos, os ataques de lobos (p. 125), ou a ajuda da cegonha (p. 81) fazem parte de uma série de encontros fortuitos que valorizam a simultaneidade do tempo e carregam cada instante de valor. Em contrapartida, a duração longa da temporalidade é negligenciada e não há qualquer transformação interior dos personagens.
Apesar disso, o romance está repleto de repetições, situações que estruturalmente são as mesmas e ocupam função exatamente igual na sequência dos elementos narrativos. Os vários encontros com o mago, os vários usos dos macacos alados, as perdas seguidas de companheiros, os retornos subsequentes de cada um deles, as ameaças surgidas e o enfrentamento individual de cada uma delas; tudo isso oferece certa unidade a um mundo imprevisível e desconhecido, além de permitir que o hábito adentre a própria estrutura episódica do enredo, algo natural em uma aventura que tem a moralização entre os objetivos principais.
Também para atingir esta meta, Dorothy é composta como uma personagem mediana, que serve para interligar todos os outros elementos da trama. A personagem sequer se espanta com situações que provavelmente escapariam ao seu cotidiano natural, como atesta o trecho final do primeiro encontro de Dorothy com uma bruxa “Mas Dorothy, sabendo que ela era uma bruxa, já esperava que desaparecesse sem aviso, e não ficou nem um pouco impressionada” (p. 30).
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Esta apresentação rápida do livro original é necessária para interpretarmos a Hq de Eric Shanower e Skottie Young, publicada pela Marvel. Esta segue a rigor a narrativa original, explorando algumas de suas potencialidades, mas adicionando um nível ao espaço tão discretamente imaginado pelo narrador original: a exuberância. A linguagem de Baum, propositalmente, não é exuberante, nem grandiloquente, sendo prática e direta, o que favorece os episódios abruptos que marcam o desenvolvimento da aventura. Contudo, já na obra original, as cores são extremamente importantes. Não apenas a esverdeada cidade esmeralda, mas também a cinzenta terra natal de Dorothy, o azulado território dos Muchkins, o amarelo espaço ocupado pelos Winkies e o vermelho característico dos Quadlings. Paletas que destoam do cinzento Kansas, algo grafado em nossa memória também pela transição genial do filme de Victor Fleming e que retorna aqui.
De fato, a obra original e a adaptação dinamizam dois espaços. A casa onde Dorothy vive é um local paupérrimo e triste, caindo aos pedaços, feito com madeira velha, pois esta fora trazida de muito longe, o que insere o peso dos lugares distantes e desconhecidos na arquitetura cotidiana da menina, ainda antes de sua jornada ter início. A casa é tão prosaica que o narrador faz questão de revelar que não tinha nem sótão nem porão, ou seja, possuía um único e modorrento nível, ausente de qualquer possibilidade de escape ou mistério. O narrador faz questão de ressaltar também que a paisagem ao redor é plana e sem árvores, condizente com este mundo miserável e sem fantasia, longe dos centros e da imprevisibilidade que marcará o percurso da heroína em Oz. Neste lugar em que o sol comera a cor das tintas, os tios da menina também eram tristes e cinzentos, e somente Totó trazia alguma alegria  (por isso é ele que a acompanha até Oz).
Sendo assim, para traduzir em imagens este território, a primeira parte do álbum investe em cores cinzas e terrosas, que vão sendo substituídas aos poucos pelas vibrantes cores do universo fantástico. A diferença de cor é acompanhada por um uso diferenciado também da perspectiva, feita por ângulos deslocados ou postos em lugares provisórios, como se acostumassem nosso olhar para o insólito universo, o que traduz a experiência de Dorothy (p. 16).  Logo, percebemos também que os contornos dos objetos e dos seres são curvos, sinuosos, rebeldes, muitas vezes combinando com um cenário feito a partir de mais de um ponto de fuga, o que reforça a experimentação com a perspectiva (p. 23), algo que a linguagem direta e franca do original não explorava.
A estrada, por exemplo, muitas vezes se curva no meio do caminho e some, reaparecendo em outra direção, criando outro horizonte de medida, indício gráfico do inesperado trajeto a ser percorrido (exemplos: p. 30-34-35); isso se repete em outros espaços como na escada da bruxa (p. 109). As curvilíneas formas se manifestam também em galhos e protuberâncias, o que empresta vitalidade e imprevisibilidade ao mundo. Isso pode ser visto na pelo cenário florestal (p. 40); no pescoço da gaivota que salva espantalho (p. 65); na rocha onde fica bruxa (p. 98); no pescoço do corvo morto pelo Espantalho (102); entre muitos outros exemplos. Todos estes recursos são estratégias de composição que prezam por certo teor expressionista, presente também nas cores do álbum. Sendo assim, na floresta, as árvores parecem ameaçar os protagonistas, se inclinando em um gestual ameaçador (p. 45). Da mesma forma, quando o Leão afugenta os Winkies, a composição do espaço o mantém em posição elevada e ilumina apenas seus poderosos dentes (p. 104);
Todo este repertório expressionista, ou seja, que expressa com signos externos o interior das personagens - a exemplo do trecho no qual o Espantalho fala de seu medo fósforos acesos e as cores do horizonte representam seu temor (p. 30) - combina com o sentido da aventura, ou seja, encontrar o mago que fará brotar atributos humanos de dentro dos seres, mesmo que utilize, para isso, de ferramentas ficcionais, como um coração cheio de serragem, ou colocando pregos e agulhas na cabeça para simular o intelecto.
Para dar uma última palavra a respeito do teor expressionista da coloração é necessário falar da composição cromática da cidade de esmeralda, toda feita em tom esverdeado. A coloração artificial, desde o livro original, funciona de duas maneiras. Primeiro, para mostrar, por intermédio da artificialidade, a farsa presente dentro deste espaço (lembrando que todos usam óculos verdes para vê-la como ela é). Preenchendo tudo de forma antinatural, ela se conjuga com o farsante mago que a habita. Por outra via, os óculos verdes também servem de metáfora para o olhar fantástico e o valor do “faz de conta” que, por vezes, deve ser motivado pelo próprio sujeito. A hiperficção de uma cidade toda verde é muito melhor que a realidade.
Dentre os inúmeros outros acertos da obra, destaca-se o leiaute muito bem organizado, com a oscilação precisa entre quadros horizontais e verticais, visando expressar a sensação de tempo transcorrido (p. 58-61). Outra cena bem construída é aquela quando o Homem de lata mata um determinado gato e os quadros abusam da elipse para representar, sem mostrar, a força do ato violento (p. 68). As onomatopeias, também muito bem pensadas e pontuais, chegam ao seu auge quando servem de linha cinética e representação gráfica de impacto durante um rugido do Leão (p. 132).
Pode-se dizer, antes de encerrarmos, que a principal preocupação desta linda adaptação da Marvel é parecida com a intenção do autor original: trazer para um novo tempo o prazer de ler as fábulas infantis, mas que mantém a carga existencialista da história primeira. Logo que chega à terra estranha, é dito a Dorothy que Oz não é uma terra civilizada (p. 26), talvez por isso seus personagens sejam pura potência de agir, sejam a manifestação acional de seus objetivos. Além disso, a bruxa em certo momento chega a mencionar que nenhum deles presta para trabalhar (p. 125), o que reduz o “eu” dos personagens a suas ações genuínas, desvinculadas de qualquer ação socializada e funcional (no caso, o trabalho).
Dorothy, vindo de fora e detentora de uma conduta que agrega outros ao seu redor, é funcional também nesse aspecto, tanto no livro quanto no quadrinho. Uma cena emblemática disso é aquela na qual, enquanto o Leão e o Espantalho discutem a respeito da importância de corações e cérebros, a menina só pensa e em arrumar pão para se alimentar (p. 58). Entre um princípio de realidade limitador e a pura vontade sem freios de ser, O mágico de Oz é uma história de humanização na qual os seres se tornam o que são no ato mesmo de viver o que se tornarão. A consciência de Dorothy ao fim é um misto do fantástico e do cotidiano, razoavelmente desinteressada, e, por isso, apta a nos oferecer um ideal formativo mais convincente do que simplesmente didático.

Autor: Daniel Baz

Tangolomango decifrado e devorado


 
A família é a expressão de um modo de distribuição, não de produção, como já expressou Ferenc Féher na sua, hoje pouco lida, crítica a Lukács. Para ser inserida na lógica degradada do romance (independente de Lukács, esta é uma característica da romanesca moderna), a família deve também perder seus valores. A qualidade comunitária da família, ilusória da proteção do indivíduo diante do mundo exterior é destruída. Romper com os laços familiares é, portanto, uma forma de emancipação do indivíduo, parafraseando mais uma vez Fehér. 
Todas estas questões parecem pertinentes ao exame de Tangolomago: ritual das paixões deste mundo, do pernambucano Raimundo Carrero, autor que viveu um trauma pessoal recentemente, quando, em outubro de 2010 sofreu um AVC (acidente vascular cerebral). Dois meses antes o romancista havia vencido o Prêmio São Paulo de Literatura pelo romance "A Minha Alma É Irmã de Deus". Em 2011, sai o romance "Seria uma Sombria Noite Secreta", terminado antes do AVC, e agora, com este novo título, podemos finalmente comemorar a recuperação deste notável autor brasileiro. Nele, acompanhamos um dia na vida de Tia Guilhermina que aparecera em Maçã Agreste (1989) e O amor não tem bons sentimentos (2007) e cuja história se insere na saga da família de Ernesto e Dolores, que já conta com mais de meia dúzia de livros. Em pleno carnaval de Recife, a mulher decide extravasar anos de pudismo e de reclusão, “Não dava bom dia, não conversava com ninguém” (p. 28), enquanto se relaciona com o sobrinho Matheus, por quem é apaixonada e que matou e estuprou a mãe e a irmã.
O romance relata, com narração onisciente, o périplo da velha mulher, intercalando trechos de sua história passada, principalmente relacionados a um antigo carnaval. A rotina de caçoadas a qual está sujeita pelos vizinhos é precisamente retratada pelo andamento sintático e repetição vocabular, a exemplo do trecho: “Os meninos gritavam o apelido: puta de anjo! E diziam, e diziam. As moças, as mulheres fechavam os olhos para não ouvir. Fechavam os olhos.” (p. 31) A incoerência perceptiva, de um momento festivo experimentado como tristeza, expressa na passagem será a profissão de fé do fim de seu percurso, como veremos.
Nesse sentido, Luís Agusto Fischer, ao comentar o livro para a Folha de São Paulo, acerta ao falar da mescla de carnaval e melancolia como fator de estranheza, mas não comenta a mudança de perspectiva dada ao senso comum relacionado ao imaginário da festa popular. Aqui, o carnaval não vem como corpo coletivo, mas como violência provocada pela liberação do corpo individual, cujo efeito mais impactante é a alienação:

“Tia Guilhermina parece triunfar com os cabelos brancos e os olhos verdes, e uma estranha sombrinha feito uma bengala, dando breves passos de dança. É recebida com apupos, palmas, e ela, pela primeira vez exposta à multidão, não sabe como se comportar, talvez pudesse ficar ali se tivesse um piano, ou, quem sabe, em companhia de Matheus, para cantar um bolero ou um tango ao violão. Pura exibição desabrigada.” (p. 64)

No trecho acima, a conversão da “sombrinha” em “bengala” e a antitética composição da aparência física de Guilhermina (“cabelos brancos”, “olhos verdes”) são algumas das manifestações carnavalizadas da própria linguagem que subverte o sentido das imagens que ela mesma referencia, corroendo qualquer possibilidade de unilateralidade discursiva. Neste contexto de inversões semânticas é fundamental o trecho no qual, em pleno Carnaval, os crimes da ditadura são representados (p. 72), convertendo a temporalidade icônica da carnavalesca (o eterno presente) nos fragmentos benjaminianos da história a contrapelo.
Seguem-se a isso, as imagens corporais, alçando a carne e sua sensualidade aos redutos mais profundos da semântica da obra, cenas das quais os banhos da tia com Matheus são as mais emblemáticas, tendo o ápice no êxtase exibicionista, quando fica nua diante da multidão.  A paixão carnal chega a alterar a narração, quando a protagonista assume rapidamente a primeira pessoa durante um delírio erótico (p. 39). Contudo, mesmo esta ode às imagens fisiológicas recebe sua contraparte grotesca em trechos como “Assim, ofereceu a tia Guilhermina um velho penico para que possa tomar cerveja, diz. E ela ri, ri com o sorriso que parece carregar sempre naquelas ocasiões. Mas antes de beber, ergue o penico com as duas mãos e se coroa.” (p. 81); ou quando a velha apanha de um grupo de jovens mais ao fim do romance.
O desejo corpóreo também é vivenciado de forma traumática, pois se relaciona com a desestruturação dos laços familiares, o que nos permite voltar ao postulado inicial desta resenha. O romance enquanto gênero tem a consciência pesada por se relacionar intimamente com a ética contemporânea e seus valores. Na sua tradição e relação com a formação do homem moderno, o “romance familiar” foi uma das formas do imaginário que mais o preencheu de fôlego, seja pela sua manutenção (cuja vertente mais célebre é a “educação sentimental”), ou na sua ruptura (Robinson Crusoé, Moll Flanders, etc...). Tangolomango pode ser lido nessa perspectiva, pois usa da desintegração familiar para estabelecer a alienação como valor, cuja lógica corrosiva renega até mesmo o eterno presente carnavalesco. Contudo, o faz pela sensualização da vida familiar, mantendo essa mesma desassociação no terreno do trauma e na inscrição moral da anormalidade, na linha do que fez Flaubert com Bovary e tentou Tosltói com Karênina.
O impacto da obra segue ainda a trajetória de Carrero, ligada ao movimento armorial de Ariano Suassuna, na década de 70, buscando equacionar as manifestações populares da arte com as formas eruditas. Ainda que não seja o ponto alto desta semiestética, o livro ganha interesse também por ter rendido uma discussão entre o escritor e o crítico, também pernambucano, Cristiano Ramos, que teceu severas reservas à obra e recebeu as defesas do responsável no Facebook, num clima que lembra as famosas discussões oitocentistas que marcaram nossa literatura e a ajudaram no seu pensamento autocrítico. Como num dos títulos de Tangolomango seja na sua personagem decadente, seja na sua recepção ora fria, ora positiva, este romance é certamente aquele tipo de obra crítica que devora a si mesmo, decifrando-se.

 Autor: Daniel Baz

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Gustavo Duarte e seu primor espacial




E a Graphic Msp chega ao seu terceiro álbum... Sidney Gusman, editor responsável pela empreitada, não poderia estar mais satisfeito diante do sucesso da série. Para quem está desatualizado com o mercado de quadrinhos brazucas, a Graphic Msp é um projeto no qual artistas nacionais reinterpretam personagens do Maurício de Souza em álbuns de aproximadamente 80 páginas. Já foram publicados Astronauta: Magnetar, escrito por Danilo Beyruth e protagonizado pelo solitário viajante espacial e Turma da Mônica: laços, feita a quatro mãos pelos irmãos Vitor e Lu Cafaggi, apresentando o quarteto da rua do Limoeiro no centro da trama.
Contando já com um quarto trabalho, uma interpretação do Shiko para o Piteco, chega a hora de comentar a realização mais esperada por mim: Pavor espaciar, leitura de Gustavo Duarte a respeito do Chico Bento (semi-inédita, uma vez que o autor já desenhara o roceiro no projeto MSP 50 artistas). É impossível deixar de lê-lo à luz de seu predecessor, principalmente levando-se em conta que sua comparação com Laços é inquietante, já que o trabalho de Gutavo Duarte é em tudo oposto ao feito por Vitor e Lu (com exceção, claro, na qualidade).
Se no trabalho anterior o ponto forte era a carga emocional, a psicologia dos personagens e os diálogos espertos, aqui o traço é limpo, cirúrgico, objetivo e os seres são basicamente físicos, ou seja, boa parte da história não tem diálogos. Isso não é surpresa, visto que Duarte é especialista em enredos mudos, como prova seu álbum anterior Monstros!, seus trabalhos de menor extensão, e os oito HQMix que tem na estante. Todo este aparato diferenciado é usado para contar uma história tipicamente caipira de abdução.
Sim, Chico Bento, Zé Lelé, o porquinho Torresmo e a galinha “Gicerda” devem enfrentar seres de outro planeta que pretendem estudá-los. E este interesse científico é um pouco transposto para a técnica de Duarte, que disseca os protagonistas, examinando suas possibilidades por todos os lados. Além disso, há uma inteligente atualização do personagem, tradicionalmente associado ao típico herói nacional, como Jeca Tatu de Lobato e a mítica criada por Mazaroppi, cuja sabedoria não-oficial pode superar a mente mais civilizada (e tal conexão direta com um ambiente inculto e campesino é representado pela tranquila troca de mentes entre Zé Lelé e um certo animal). Ou seja, esta história do Duarte pode ser lida como uma versão das histórias em que Chico tem de lidar com o mundo de seu primo citadino Zeca, tão ligado às novas tecnologias. Contudo, ao invés de estranhar a nova realidade - o que é feito em histórias famosas, como “Chico no Shopping”, na qual até mesmo uma escada rolante ou uma fonte são objetos de outro planeta - aqui os roceiros rapidamente apreendem a interagir com os enigmas do outro mundo. Sendo assim, de certa forma, a clareza e retidão do cenário reflete a naturalidade com a qual os meninos lidam com a insólita aventura.
Na primeira imagem do álbum, vemos a casa de Chico submersa em um céu repleto de estrelas que domina todo o horizonte. Este onipresente céu anuncia a visita inesperada dos seres intergalácticos e estará presente em muitas das cenas iniciais da obra. No segundo quadro, por exemplo, ele é visto novamente, pela porta aberta da casa, imagem simbólica da desproteção do ambiente e da invasão que será vista a seguir.  O aparecimento dos ETs é feito com intenso suspense, em uma cena que dura duas páginas, vista do mesmo ângulo e cujo andamento é dado pelas mudanças de expressão do porquinho Torresmo, que parece ver algo escondido por trás da porta da geladeira aberta por Chico. Esta ideia da presença de coisas desconhecidas no interior das coisas visíveis será uma das profissões de fé do álbum que, como nos dois trabalhos que lhe precederam, aposta com força nas referências à cultura pop.
Temos, assim, desde referências a personagens do próprio Maurício (Jotalhão, roupa do astronauta), menções ao trabalho do próprio Duarte (até o velho Pinô, de Monstros! dá as caras na página 31), a óbvias relações com a cultura pop, como a aparição de certo cantor no interior da nave alienígena (p. 42), passando por referências mais sutis (algumas mencionadas nos extras do volume), como o uso de aviões e navios conhecidos por terem desaparecido misteriosamente. Além disso, seguindo mais uma vez os trabalhos com Astronauta e com a Turma da Mônica, o roteiro investe em uma série de referências cinematográficas que aproveitam películas diversas, sendo Sinais, de M. Night. Shyamalan (p. 20-21), e Guerra dos mundos, o antigo e o novo (já na capa), os mais evidentes. Até mesmo reler o quadrinho à procura de Gicerda, depois que sabemos como termina a história, se aparenta à revisão de certos filmes do cineasta indiano (repare na dissimulada galinha ao lado da porta bem no início do volume). O único ponto negativo aqui reside no fato de a maioria destas referências serem explícitas demais, diminuindo o gosto da procura. Contudo, isto está em sintonia com o traço claro e limpo do artista.
Duarte possui uma visão geométrica de mundo, o que rende passagens excepcionais e ângulos extremamente criativos (cito a passagem da página 37 a 38 para ficar em um exemplo). Essa geometrização atua em par com a limpeza do traço e a economia dos meios, além de criar surpreendentes níveis de profundidade espacial, como aqueles exigidos no início da fuga de Chico Bento, após sua casa ser invadida (p. 17). Sendo assim, o autor se diverte (algo já feito em Monstros!) em obrigar os personagens a percorrer este universo tão milimetricamente planejado, mas assolado por um mal imprevisível (p. 27-30), estratégia responsável por grande parte do suspense. Mais do que isso, há todo um trabalho de oscilação entre as duas dimensões e a terceira, com um exercício de profundidade que confunde os dois níveis, o mais próximo e o mais distante, recurso que acaba reforçando o conteúdo, ao substituir constantemente uma perspectiva mais superficial por outra.
Além disso, e trabalhando na mesma linha, a escolha dos ângulos regularmente investe na apresentação da pequenês dos personagens diante dos fatos ocorridos, o que pode ser visto em muitas páginas (p. 18, 23, 28, 38, 46, 53, 68). Todas estas cenas demonstram graficamente o sentimento dos meninos e seus acompanhantes, perdidos contra um fenômeno muito maior que eles e cujo entendimento completo é ainda inacessível.
Por estas questões, o espaço é o grande protagonista desta Hq, primoroso na sua concepção. E, quando se resume a uma simples cor (algo muito presente nas histórias originais de Maurício), é ajudado pela qualidade narrativa de Duarte, como na cena em que os quadros caem ao longo da página, simulando a queda dos próprios personagens (p. 44). Ou ainda na cena em que Duarte abdica das linhas que formam o quadro para mostrar a desestabilização de Chico e Torresmo.
Antes de terminar, contudo, proponho um enigma presente neste álbum cheio de detalhes que certamente nos escaparam. Na página 11 e na página 56 há uma inversão na ordem dos quadros aparentemente gratuita. Quando Chico oferece água a Zé Lelé, o quadro da resposta vem antes da pergunta. Da mesma forma, no momento no qual Chico e Torresmo (na realidade Zé Lelé) fogem dentro de um navio, vemos a parte inferior dos quadros, ou seja, suas pernas, antes da superior, tronco e cabeça. O recurso certamente pode ser interpretado como um vislumbre da alteração da ordem no mundo dos caipiras. Ou até mesmo, no caso da perseguição, como uma forma de criar mais suspense, já que a sequencia de quadros não significa avanço temporal da história. De qualquer forma, fica um dos enigmas de mais uma obra-prima de um projeto ainda impecável, atestando que, por mais que falemos dela, a arte sempre estará a um passo a frente de nossa vã compreensão.

Autor: Daniel Baz

O som ao redor: Demolidor, de Mark Waid




O novo arco de histórias do Demolidor, ganhador do Eisner de Melhor Série, roteirizada por Mark Waid (também vencedor do Eisner por este trabalho), com desenhos de Paolo Rivera e Marcos Martin, e cores de Javier Rodriguez e Muntsa Vicente, reinsere o herói no seu lugar de direito: a nata das publicações da casa das ideias. A abordagem de Waid é extremamente inteligente, se contrapondo à paradigmática leitura feita por Frank Miller, que investiu (como de costume na década de 80) na amargura, nas perdas pessoais e crises existenciais causadas por elas como motivos centrais para os enredos do homem sem medo. Aqui, logo no primeiro volume, uma brecha de seu passado surge para ser abandonada quando o herói se mostra determinado em “começar de novo” para não acabar “ficando louco” (p. 14).
Dessa forma, o herói volta a rir, em histórias mais leves e que resgatam duas de suas características mais distintas, a fisicalidade icônica de seu comportamento e sua audição superaguçada. Desde suas primeiras histórias, nas quais o herói era desenhado em poses extravagantes, fruto de movimentos impossíveis que poderiam se ligar em contiguidade com o quadro seguinte, a acrobacia era uma maneira de inovar na dinâmica das cenas, assim como na excentricidade do “heroísmo”, expresso em posições corporais jamais reproduzidas por humanos normais (algo que Todd Macfarlane bem compreendeu na sua fase com o Homem-aranha).
A primeira cena investe nesta reinterpretação ao expor quadros soltos e pequenos, posicionados uns ao lado dos outros, e repletos de recordatórios que relatam a origem de Matt Murdock. A fragmentação do mundo em certas metonímias (olho, balança) terá relação com a forma fragmentada como o sonar do herói capta o mundo. A representação visual do sentido auditivo do Demolidor será só uma das ferramentas de experimentalismo gráfico da obra. Outras virão dos vilões, a exemplo do momento em que o poder do Mancha suga até mesmo os quadros para dentro de si (p. 10-11); ou quando, no segundo volume, surge um obscuro vilão do Quarteto Fantástico e Pantera Negra feito de... ruído.
De fato, são as experimentações com o nível sonoro da trama que se destacam neste encadernado. Principalmente, no trabalho com as Onomatopéias, poucas vezes visto em histórias deste tipo. Na página 57, por exemplo, quando o herói berra e se liberta, seus gestos são desenhados dentro delas, num jogo interessante de material sonoro e ação, que enfatiza a ensurdecedora situação do protagonista, preso pela sua própria habilidade (recurso repetido na página 123). Em outro momento, em que o herói está transtornado em um trânsito convulsivo e quase sendo atropelado, as onomatopéias são grafadas sem o preenchimento que formam as letras, tornando-se apenas contornos recheados de branco, de forma a mostrar a desorientação de Matt. Em outro momento, para marcar o impacto de certo ataque, o som é grafado nos lados de um navio, mais uma vez enfatizando as troca de níveis entre algo imaterial, o som, e sua materialização. Por fim, não se pode ignorar a página dupla (p. 138-139), na qual quadros dentro do quadro maior focalizam o sentido de Matt trabalhando, numa fragmentação relacionada com a forma na qual o álbum é aberto.
O trabalho conta ainda com ótimas escolhas narrativas, a exemplo do traço leve e claro que combina com o novo tom empregado. Além disso, Waid acerta ao mostrar a ambiguidade da ação de Matt na sociedade, já que ele executa os dois lados da lei, denunciando criminosos como advogado e os esmurrando de madrugada enquanto super-herói. Entre outras técnicas de composição certeiras, o final do volume 4 é um primor de suspense ao utilizar uma informação visual que nós temos, mas que Murdock e outro cego que o acompanha não podem ter. Fecha o cardápio a maneira na qual o Demolidor e o Capitão América entram em combate e trocam de armas, numa boa tradução da inversão de valores operada durante a cena. Certamente, muito mais poderia ser dito a respeito desta revitalização do homem sem medo, mas que fique o principal: Waid, Rivera, Martin e os demais responsáveis pelo título trazem uma das melhores versões de um personagem, enfatizando o ônus e bônus da supersensibilidade do herói.

Autor: Daniel Baz