terça-feira, 7 de maio de 2013
O Pato Fáustico - Angélica Freitas e Odyr (poesia e quadrinho)
No Pato Fáustico de hoje falamos sobre os dois novos trabalhos de Angélica Freitas: "Um útero é do tamanho de um punho" (poesia) e "Guadalupe" (quadrinho em parceria com o brilhante Odyr). Poesia e quadrinhos na medida certa. Aproveitem!!!!
Úteros, punhos e a explosão que ainda não houve
Em Ópera dos três vinténs, de Bertolt Brecht, somos apresentados à
prostituta Jenny que serve os clientes em uma birosca, enquanto espera a
destruição de sua cidade por um navio de piratas com cinquenta canhões que irá
poupar somente a ela. Imortalizada na canção Die seeraüber Jenny, musicada por Kurt Weill, tornou-se um dos
grandes símbolos femininos do ocidente, gravada por Nina Simone, Marianne
Faithfull e Cida Moreira, para ficarmos em alguns casos. Além disso, inspirou
outras obras de impacto, como Geni e o
Zepelim (e A ópera do malandro), de
Chico Buarque ao lado de Dogville, de Lars Von
Trier.
Pois bem...
Os versos “E um navio de piratas/ com cinqüenta canhões/ aporta no cais” da
canção de Brecht e Weill, reveladores do instante em que Jenny poderá observar seu
momento de glória com a destruição da cidade opressora, serve de epígrafe ao
novo livro de Angélica Freitas, O útero é
do tamanho de um punho. A necessidade de mandar tudo pelos ares serve à
intenção de estabelecer uma radiografia da mulher na contemporaneidade. Contudo,
um conflito essencial se apresenta quando a autora produz a desconstrução dos
muitos discursos, geralmente fundados por estereótipos, que cercam a figura da
mulher pela via da desconstrução da própria natureza da lírica.
Contando com
uma estratégia canonizada desde nossos primeiros modernistas e difundida com
mais força nos poetas chamados marginais, a fala cotidiana, o senso comum, a
oralidade em todas as formas, plasmada por chistes ou pelo uso de ditos populares
e frases feitas ajudam a obra na abordagem da mulher contemporânea pela
descompostura dos modelos sintagmáticos associados geralmente a ela. As rimas,
por sua vez, também buscam mais a desconcertante associação de sons (beirando a
cacofonia) do que a harmonia clássica, evidente no dístico intitulado mulher de respeito:
“diz-me com
que te deitas
angélica
freitas” (p. 39)
Ou em trechos pontuais como:
“todos os amigos tem um amigo gay/que tem uma mulher/ que o chama de fred
Astaire” (p. 46)
As
referências ocasionais ao passado também desorientam, a exemplo da figura de
Amélia (a mulher de verdade), subvertida em novo contexto. No caso, Amélia é
lésbica, foge com a mulher barbada e ao fim não sabemos se foi
“perdoa...promovi...esfaquea...”(p. 27). Este procedimento rende outros trechos
tragicômicos, representativos das relações da mulher com a sociedade em que
vive:
“ já uma mulher estranhamente bonita
pode ganhar flores
e também pode ganhar um automóvel
mas um dia vai
com certeza
precisar vendê-lo”(p. 18);
Ou este trecho representativo do excelente “A mulher é uma
construção”
“particularmente sou uma mulher
de tijolos à vista
nas reuniões sociais tendo a ser
a mais mal vestida
digo que sou jornalista” (p. 45)
Se o caráter
bem humorado, por vezes debochado, e a informalidade garantem os melhores
momentos do livro, são também os responsáveis por certas soluções acomodadas e
fáceis (como a conclusão de “A mulher pensa” ou o poema “Mulher de malandro”),
felizmente, na menor parte dos casos.
O livro é
dividido em sete partes, cada uma delas explorando um viés da feminilidade nos
dias de hoje, como se o “Poema de sete faces” ocupasse um livro inteiro. Na
segunda seção, “Mulher de”, Angélica sugere a ideia de posse apenas para
subvertê-la em títulos como “Mulher de vermelho”, “Mulher de respeito”, “Mulher
depois”, etc. Já na parte intitulada “3 poemas com o auxílio do Google”, somos
apresentados a uma tríade anafórica, em que o paralelismo sintático ocupa todos
os versos, com mudança semântica apenas nos verbos e complementos verbais. “A
mulher vai...”, “A mulher pensa...”, “A mulher quer...”. Aqui, a redundância
formal realça as inúmeras probabilidades de conteúdo complementar de cada
verso, o que simula as inúmeras possibilidades das identidades volúveis que
montam o conceito de feminilidade – conceito que não se prende a gênero, já que
até mesmo “o útero de Diadorim” é considerado entre colchetes (p. 60) no poema
que dá nome ao livro.
Para estabelecer
com complexidade a natureza de seu objeto, Angélica associa problemas pontuais
a questões universais e generalizadoras: “a mulher vai ganhar um lugar ao sol/
a mulher vai poder dirigir no Afeganistão” (p. 70); estereótipos a frases de sentidos
imprecisos: “a mulher pensa com o coração/a mulher pensa de outra maneira” (p.
71); e é claro, os paradoxos, muitos paradoxos: “ a mulher quer ser amada/ a
mulher quer um cara rico/ a mulher quer conquistar um homem/ a mulher quer um
homem/[...] a mulher quer ganhar, decidir e consumir mais/ a mulher quer se
suicidar”(p. 72). Fica fácil ver, neste setor, a substituição de termos por
outros contrastantes de um verso ao outro e a contragradação do estilo, que
evita permitir bases sólidas para uma interpretação decisiva.
O livro nos
entrega, em alguns pontos, ótimas imagens, como a da senhora associada a “uma
serpente com a boca cheia de colgate” (p. 47) e oferece algumas descrições
precisas de contextos contemporâneos, a exemplo do poema “Querida Angélica”, em
que o Eu-lírico lista em várias estrofes uma série de desculpas dadas por
pessoas que faltaram a algum compromisso com ele (p. 53).
Por fim, é
interessante notar a necessidade de diálogo com o contemporâneo estabelecido
por Um útero é do tamanho de um punho.
Percorre o livro uma necessidade pungente de converter o tempo simultâneo à
produção do texto em lírica, ou seja, superando a perecividade da datação, como
fica claro no trecho de “Metonímia”.
queria escrever um poema
bem contemporâneo
sem ter que trocar fluidos
com o contemporâneo (p. 52)
A referência
a fenômenos marcados pela atualidade vai desde a seção “com auxílio do Google”
até marcas diversas espalhadas pelo livro. Ficamos com um exemplo. Um poema
cuja preocupação com a questão temporal se ensaia no título “pós” (ainda que
isso seja visto de forma irônica durante o texto) diz o seguinte:
os homens as mulheres nascem
crescem
vêem como os outros nascem
como desaparecem
registram registram com o celular
fazem planilhas depois esquecem
No quarto
verso do trecho, a preocupação temporal se resume à marca da tecnologia, vista
com desconfiança pela redundância do verbo “registrar” usado duas vezes, no
indício cíclico de que as ações se repetem, o tempo estagna, cria-se uma rotina
independente das conquistas da técnica. Sendo assim, é possível desprender de Um útero é do tamanho de um punho a
representação isotópica do contemporâneo, que permite, ao lado da figura da
mulher, uma leitura homogênea da obra. A dicção da fala atual é vista nas
imagens mais óbvias, como as citadas, mas também no tom e na linguagem dos
textos. Octávio Paz no seu clássico Signos
em rotação, ao falar da poesia de seu tempo, descobre que esta, desconfiada
do devir histórico, se refugiara no eterno presente, e isso poderia ser visto
como a reconciliação com um senso de comunidade, algo que as vanguardas haviam
impossibilitado. O esforço de Angélica parece caminhar nesta direção.
Pensando questão semelhante, no
livro O ser e o tempo na poesia,
Alfredo Bosi conclui:
“Mesmo quando o poema fala de seu
tempo, da sua experiência de homem de hoje entre homens de hoje, ele o faz,
quando poeta, de um modo que não é o
do senso comum, fortemente ideologizado; mas de outro, que ficou na memória
infinitamente rica da linguagem. O tempo ‘eterno’ da fala, cíclico, por isso
antigo e novo, absorve, no seu código de imagens e recorrências, os dados que
lhe fornece o mundo de hoje, egoísta abstrato.” (p. 132)
É contra este tipo de anseio
eterno que Angélica se posiciona (talvez, por isso, a escolha modesta de nunca
usar maiúsculas). A ela não importa o futuro sem fronteiras. Os tempos
históricos com suas ideologias pré-determinadas também não favorecem sua
concepção artística. Investir na analogia como base de seus poemas e
vinculá-las a sentidos contemporâneos a ajuda a escapar das duas cobranças, o
peso da história do gênero (biológico) que tematiza e a sobrevivência difícil
do gênero (discursivo) que utiliza. Para o bem e para o mal, Angélica Freitas
quer relativizar a recepção pelas escolhas precisas composicionais. Mune-se da parole contemporânea e, para o bem e
para o mal, repete o gesto de Jenny esperando a cidade inteira explodir.
FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São
Paulo: Cosac Naify, 2012.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Autor: Daniel Baz
Morte e vida em Guadalupe, de Angélica Freitas e Odyr
Guadalupe
conta uma história de morte... e de vida.
A morte repercute
silenciosa, mas plena, nas duas únicas páginas duplas do álbum. Aliás, não se
trata de qualquer tipo de morte, mas a tipicamente mexicana, envolvendo rituais
indígenas, mística popular e civilizações ancestrais. Entretanto, é a vida que
aos poucos ganha mais espaço durante a leitura.
A Guadalupe
que dá nome ao álbum foi criada desde criança pelo tio, o travesti-grande-diva-porra-louca
Minerva. No início da história a encontramos no dia do seu aniversário de 30
anos, incomodada com o fato de ainda trabalhar no sebo do tal tio. Tudo muda
quando sua avozinha Elvira - cujo hábito de percorrer a cidade em alta
velocidade sobre uma scooter nos impressiona na primeira cena da obra – morre
ao chocar-se com um tacomóvel. A vivacidade da anciã é uma das imagens mais
fortes equacionando a paridade vida/morte que compõe todo o álbum. Acontece que
a simpática anciã havia feito sua neta prometer que a enterraria em sua terra
natal Oaxaca, com banda de música e tudo. Guadalupe e Minerva adaptam o furgão
do sebo aos moldes de um carro fúnebre e partem. Esta adaptação automobilística
também diz muito da transformação que a protagonista irá vivenciar durante a
viagem, além de subverter a solenidade da morte com um humor que permeará todo
o álbum, formando par com a imagem da vivaz morte da anciã.
Afinal, a
história poderia receber a tônica angustiante e pesada de um As i lay dying, de William Faulkner, mas
é conduzida pelo viés do humor, e da magia, beirando o surreal em certos
trechos, produzindo uma Road trip
mais aparentada com filmes como Família
Rodante, de Pablo Trapero, ou Pequena
miss sunshine, de Jonathan Dayton e Valerie Faris. No caminho, até mesmo um
grande vilão é introduzido na figura da divindade pré-colombiana Xyzótlan que
manda um arauto (infelizmente desinteressante) atrás da alma de Elvira e teme a
perda de fiéis para as novas religiões. Para combater a ameaça, cogumelos
alucinógenos e a invocação do Village People se juntam ao complexo insólito que
forma a obra.
Apesar das
inúmeras qualidades, das quais já falarei, o principal defeito de Guadalupe é não aproveitar
suficientemente o universo e, mais ainda, os personagens criados. Ao fim do
volume, parece que ambos foram pouco desenvolvidos, o que, de certa forma é um
elogio para a empatia produzida pelo universo ficcional. Além disso, em certos
trechos o humor excessivo e nonsense
é responsável por certas saídas superficiais (como boa parte das resoluções dos
problemas enfrentados). Contudo, todo feito em preto e branco, o álbum
apresenta algumas escolhas compositivas de dois artistas extremamente
competentes.
Começando
pelo traço de Odyr que, se não está tão virtuoso quanto no excelente Copacabana, explora a linhagem pictórica
inaugurada com o barroco na contramão de um estilo linear e sóbrio. Em várias
cenas de Guadalupe é impossível fugir
da dinâmica das ações que se sucedem sem um eixo orientador em que o olho, após
observar uma imagem se move contiguamente para as demais. A própria cena da
motoca convergindo para o tacomóvel é exemplar disso. Os contornos dos
personagens são instáveis, ora se perdendo no fundo, principalmente quando ele
é carregado em tintas e em cenas de tensão (um exemplo é a cena do arauto e da
divindade), ora misturando os planos dos desenhos (a cena do camarim enquanto
seu tio se arruma é exemplar disso). O preenchimento das figuras é mais
valorizado e as linhas oscilantes que definem sua silhueta enfatizam com precisão
o insólito de um mundo prestes a se dissolver em dimensões espirituais,
místicas e fantásticas (o que também combina com a ideia de Road trip em que tudo é móvel e a
revelação de universos novos é uma promessa).
A
expressividade dos personagens também é elaborada a partir de algumas boas construções
iconográficas dos balões e nos tipos de letra utilizados. Isso se soma ao uso
hiperbólico das metáforas visuais em que as aparências do mundo são a expressão
do sentimento humano envolvido. Seja na cena em que o rabecão improvisado pifa,
formando uma silhueta branca em um quadro totalmente negro (e a imagem de uma
caveirinha levita), seja na iconografia da mulher maravilha que adorna a
travesti no combate final, seja no simbolismo do espelho que encerra o álbum.
No desbunde que é a solução da jornada, tudo isso só se torna mais exagerado
ainda, acarretando inclusive na perda da carga emocional do álbum pela ênfase
no humor escachado.
Apesar de
alguns deslizes, a obra mantém a boa qualidade de um corajoso projeto
editorial, no qual a Companhia das Letras une a voz de um escritor à de um
desenhista. O resultado é esta história transformadora e incomum. Guadalupe tira sua personagem homônima
do cotidiano prosaico em que vivia e revela para ela um turbilhão de possibilidades
mais que surreais. O motivo fúnebre desencadeador de todo o périplo rima com a
sensação final de que a protagonista não será mais a mesma, algo morreu a
partir de sua terceira década.
FREITAS, Angélica e ODYR. Guadalupe. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Autor: Daniel Baz
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