sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O Pato Fáustico - Solidão continental, de João Gilberto Noll e indicação de quadrinhos

Um pentacampeão do Jabuti no programa de hoje: João Gilberto Noll e seu novo romance. Para não perder o costume, indicamos ainda dois quadrinhos recém lançados.
Aproveitem!!!!!

A solidão como meta



 A obra de João Gilberto Noll pode ser caracterizada por uma série de constantes. Duas delas, o duelo entre mundo interior e sensível e a errância de personagens vagando deslocados pelos espaços que freqüentam, estão no seu mais novo romance Solidão continental. Nele, o escritor gaúcho apresenta João Bastos, sujeito que parte em viagem de Chicago a Porto Alegre, com escalas em Madison e Cidade do México, em incursões feitas de definições imprecisas dos espaços em que dorme, transa e come. Lidando com a renovação inusitada e frequente do espaço territorial, o personagem adquire e termina relações afetivas (geralmente sexuais – outro mote comum na obra de Noll) numa progressão incisiva e ininterrupta, apesar da linguagem difusa, fantasmagórica e aparentemente imprecisa.
Lembrando outros narradores de Noll, João Bastos sofre de um mal recorrente em algumas obras atuais. Refiro-me à psicologia dilatada, que diluirá tudo na arenosa área representativa do eu, o que servirá de sustentáculo para um tipo contundente de crise de identidade que envolve questões de nacionalidade (o itinerário migracional), sexualidade (o bissexualismo do protagonista), idade (o narrador não se sente velho, mas já não é jovem), entre outras possibilidades.
Essa crise no interior do ser é transposta para as relações do personagem com o mundo, produzindo um intervalo turbulento entre as sensações e o pensamento. Para resolver este conflito, algumas imagens são fundamentais, das quais destacamos a presença massiva de fluídos corporais (sangue, suor, sêmen, baba) que servem não apenas para externalizar o que há de mais íntimo e secreto no sujeito como, ao mesmo tempo, para impactar a aparência natural do mundo. Da mesma forma, são recorrentes as metáforas e comparações que alienam o sujeito do mundo usando termos que envolvam este mesmo campo de sua fisiologia, como é o caso do início do capítulo 8 em que o narrador revela: “Entre mim e aquele cenário da Osvaldo Aranha havia como uma mucosa transparente doendo se eu tocasse.” (p. 77).
Por fim, basta lembrar que esta relação se dá de forma renovável e dialógica, o que é expresso em cenas que mostram o personagem reintroduzindo o seu interior externalizado para dentro de si, o que fica claro no momento em que João torce a camisa molhada de suor e sangue e bebe o conteúdo expelido (p. 102). Este movimento dual já fora expresso pelo narrador de Harmada, ainda no início do livro, quando este sugere que os eventos vivenciados por si possam ser “um breve colapso entre a aparência e o íntimo das coisas”.
A errância de João, num primeiro momento, enfatiza a força dessa psicologia dilatada, já que o intenso deslocamento espacial não atenua em nada o ritmo interior frenético do personagem. Para compreendemos seu uso, guardando sua múltipla orientação, devemos notar que o não percorremos apenas o mundo do andarilho, mas também as imagens que ele produz acerca deste mundo. Por isso, a errância é o motivo do enredo mais intimamente ligado às cenas imprecisas, difusas e caóticas que ele produz. Além de nada ser assertivo e definitivo, o discurso trabalha retardando os fenômenos que o próprio discurso produz, desvirtuando por escolhas narrativas peculiares quaisquer sentidos unilaterais. A principal técnica utilizada pelo autor neste sentido é o revezamamento entre a frase muito longa, cheia de subordinações e complementos, e a frase curta, seca, objetiva. Assim, nas duas moedas da duração sintática, nada ocupa lugar determinado, o que, quando associado às imagens impertinentes exploradas pelo autor, exclui qualquer referência fixa do sentido. Mais do que isso, impede que se pensem “real”, pois são muitos ou seus níveis e são várias as suas manifestações.
Esta errância também é responsável, em Solidão continental, por outro conflito importante nas relações do personagem com o mundo, a saber: o cabo de forças entre o mundo natural e o urbano. Seja pelo uso de imagens animais e imagens vegetais que contextualizam o sentimento do eu (destaque para a gata que dá cria e para o bicho irreconhecível, ao final do livro), seja pela irrupção do selvagem dentro do espaço mais civilizado (aqui basta notar as repentinas fugas para rios e matas ao redor de todo o romance). A força da natureza não serve mais para a lógica urbana e sua aparição é uma forma do autor justificar também o absurdo do mundo e a sensação de não pertença. Esta situação é resumida no brilhante parágrafo em que João diz: “No lado de lá do muro havia uma escavadeira parada. Marcando talvez uma obra que estivesse para ser iniciada. Ou que sofresse um impasse em sua continuidade logo em seu começo. Em volta da máquina uma verdadeira argila não tivera tempo de se ressecar. Perguntei-me se ali não acontecia nada – como me sentia prestes a acreditar. Um beija-flor suspendia o vôo em frente a uma margarida cansada e entre as macegas uma cigarra ferrava o seu canto, aumentando o calor.” (p. 101)
A cena revela um homem que, ao olhar para o mundo percebe que desconhece os fenômenos de produção, reprodução e as relações que sustentam o universo que habita, logo, desconhece a lógica de sua própria história, abstraindo também parâmetros convencionais que guiem sua descrição. Ao se espantar com cães ou entrar em matas inóspitas (em outras cenas de Solidão continental), o homem repensa o papel de sua solidão, como conclui João, na metade de seu percurso: “Que eu voltasse à minha solidão sem me abater. Nela tinha as minhas referências todas ordenadas[...]’ (p. 64). Ao fim dos cálculos, estar só, ainda que continentalmente, é manter qualquer horizonte produtor de sentido passível de compreensão. A solidão deixa de ser condição para tornar-se uma meta.

NOLL, João Gilberto. Solidão continental. Rio de Janeiro: Record, 2012.

Autor: Daniel Baz