terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

As correções – de Jonathan Franzen



O terceiro romance de Jonathan Franzen, As correções (2001), infelizmente paira ao redor da aura bem sucedida que Liberdade (2010), última ficção do autor norte-americano, alcançou. Se pensarmos que o título predecessor apresenta todas as características de seu mais aclamado par, percebemos o que há de marketing e o que há de verdade na explosão de popularidade de Franzen.
As principais características compositivas de Liberdade estão já aqui amadurecidas, e em alguns casos melhor utilizadas. A saga familiar como alegoria da sociedade norte-americana dos últimos tempos; os conflitos de gerações; mais do que isso, os conflitos familiares; as cenas constrangedoras (patéticas, até); enfim, tudo já está neste volume.
Particularmente, o livro narra a história dos Lamberts. Alfred, idoso cheio de manias que sofre de todos os males da velhice, dos quais o mais grave é o Parkinson recém diagnosticado; sua esposa Enid, obcecada com a reunião da família para o próximo natal; e seus três filhos. Chip, roteirista mal sucedido que vai a Lituânia para ilegalmente ajudar um amigo lituano a “enganar investidores ocidentais” (suas palavras); Denise, caçula, chefe de cozinha que perde o emprego devido a uma inapropriada escolha de parceiro sexual; e, por fim, Gary, banqueiro, mais velho dos três e responsável pela roupa suja lavada no fim.
Mais uma vez o espaço íntimo da família é um show a parte de Franzen na maioria dos momentos. O narrador numa linhagem romanesca que remete ao Asno de ouro, de Apuleio, tem acesso a todos os segredos da família. As pequenas maldades feitas pelo casal de velhos, as pequenas chantagens possibilitadas pelas confidências entre os familiares; as obsessões e desejos, tudo é foco de atenção. Como diz o narrador, assumindo a perspectiva de Alfred: “Fechou e trancou a porta do laboratório, porque no final das contas era tudo uma questão de privacidade, não era? Sem privacidade, ser um indivíduo não fazia sentido” (p. 479).
            Através da intimidade dos protagonistas explora-se tudo que precisa ser corrigido, remetendo a mais um título direto e apropriadamente escolhido (com ênfase desta vez na capa da Companhia das letras, cuja foto engloba, de um plano aberto e superior, uma série de casas parecidas do meio-oeste americano, sugerindo a arbitrária escolha do narrador, assim, ampliando a alegoria família-país).
Como pouco falamos do tempo, na análise de Liberdade, fique aqui uma primeira ressalva. A composição temporal é muito particular nestes dois romances de Franzen. Não se trata do tempo subjetivo, pois o narrador heterodiegético jamais se confunde com nenhuma das personagens. Nem objetivo, afinal não só a organização na ordem dos eventos, mas a dilatação ou contração da percepção deles, segue a experiência de cada consciência representada. Essa escolha favorece o conflito de gerações forte durante todo o livro, já que a carga dos efeitos temporais não se sustenta nem na expressão individual, nem na substância cronológica coletiva. É na síntese entre estes dois tempos, ou seja, no tempo da intriga, que se confere a semântica dos atos.
Isso também só é atingido, a partir de um dos principais esforços de Franzen. Refiro-me ao trabalho com as personalidades. O romancista estadunidense aprendeu com o romance realista do século XIX que não há grande acontecimento sem grandes personagens. Pelo contrário, até a busca por um capote pode ser motivo de interesse, se o caráter representado for bem escolhido. Além disso, o autor trabalha para diminuir a distância entre o ato individual e os acontecimentos com relevância global. Qualquer personagem prosaico como Walter, em Liberdade, ou Chip, aqui, pode mudar o rumo do coletivo. Mais do que isso, os atos podem adquirir maior amplitude semântica a partir da escolha do personagem certo. Um exemplo disso é o final do capítulo “O generator”, em que a conversa fútil de duas adolescentes, Cheryl e Tiffany - nunca mais mencionadas no livro, e que conversam sobre glúteos malhados – serve de palco para o encerramento do arco na Lituânia. Outro exemplo: usar a perspectiva de Enid para narrar a queda de certo personagem no cruzeiro.
A ênfase nos detalhes, também está aqui com força. Franzen se preocupa em descrever situações e elementos cênicos que preenchidos de valor podem ser a chave semântica de certas situações. Como aquela em que Gary evita o fio sujo na camisa de linho (p. 239). Trechos que servem como aparato discursivo das próprias personagens, já que permite que elas se posicionem diante do mundo (e nós diante delas), por estratégias mais refinadas.
Falando em estratégias refinadas, estão de volta aqui as cenas constrangedoras. A do salmão no início do livro e praticamente todas as cenas envolvendo o velho Alfred são as mais óbvias. De fato, Franzen nutre uma fixação tipicamente norte-americana pela figura do Loser, personagem cultural, mas que na literatura americana muitas vezes assume a posição de herói trágico, ou como aqui, tragicômico. Afinal são sujeitos não necessariamente ruins, mas com inaptidão para o sucesso. Criados na tradição do self made man, eles nunca cessam de agir, e sempre o fazem da maneira errada. São muitos os personagens da fauna de Franzen que preenchem esta categoria. Mais uma vez a forte carga do personalismo assume a dianteira. Esta carga também reside na secular técnica de elencar personagens secundários que contem suas histórias. Oferecendo um painel social do tipo de Cervantes, Boccaccio ou Chaucer. Recurso fundamental em passagens como a do cruzeiro em que Silvia Roth, que teve a filha estuprada e morta por um negro, conta sua história (314-315)
O autor se permite ousar em certas cenas de teor mais experimental. Há, por exemplo, o diálogo entre um homem e um cagalhão (não desastroso, pois acerta ao carregar no tom pantagruélico, repleto de trocadilhos infames e termos vulgares). Em outro momento, o narrador assume o estranho ponto de vista de um feto em formação (p. 286). O resultado é no mínimo afetado. Mas é na habilidade metafórica que Jonathan Franzen revela sua pior faceta. “Uma almofada tenebrosamente triste ocupava o cérebro de Gary.” (p. 194).“Aquele camelo de decepção empacou diante do buraco da agulha, diante da vontade de Enid em fazê-lo passar.” (p. 485). “O vento estava cheio de dentes, e mordeu-o através de sua jaqueta de couro.” (p. 499). “Engrenagens interligadas de orgulho e amor estavam girando por trás dos olhos de Robin” (p. 523). “A morte, aquela parenta longínqua, aquela emigrante de mau hálito, aparecera de repente nas proximidades.” (p. 549). Estes são apenas alguns exemplos da inabilidade analógica do autor. Felizmente, não só de falhas vivem suas substituições imagéticas. O que prova o trecho: “Sorriso de Hibbard era como uma mordida recente numa fruta macia” acerca do médico simpático que quer indicar um medicamento fortíssimo a Enid (p. 327).
Importante, no mínimo por preceder em tudo o “livro do século” (notem as aspas) Liberdade, o romance As correções merece leitura. Um livro que, apesar dos defeitos, consegue com que nos importemos com seus seres. Consegue com que nos distraiamos no seu mundo. Consegue que ignoremos, ao menos temporariamente, todas aquelas correções que escaparam em sua versão final.

FRANZEN, Jonathan. As correções. São Paulo: Companhia das letras, 2002.


Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

Nenhum comentário:

Postar um comentário