segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Carnaval e literatura brasileira: três casos ao acaso

O carnaval não é só um dos produtos de exportação mais conhecidos da cultura brasileira. É também um problema da representação de nossa de gente. O carnaval é um uso social do tempo, uma função coletiva para o espaço. É um habitus. Quando Gregório I delibera que seus fiéis abdicariam dos prazeres da vida cotidiana, durante o período que passaria a ser conhecido como quaresma, talvez não soubesse que as pessoas fossem querer descontar as privações. Em 1901, inventa-se a quarta-feira de cinzas que inauguraria o novo período até a páscoa. Por isso, as pessoas adquiriram o hábito de festejar muito antes dos dias de sacrifício. Dias de adeus a carne, ou “carne vale”. Num silogismo fácil: sem quaresma, sem carnaval.
O carnaval na cultura brasileira cresce bicéfalo. De um lado a festa pra inglês não só ver, mas também sambar. Numa imagem que reitera anualmente a concepção de que nosso corpo carrega o germe da festa, da ginga. A outra cabeça do carnaval brasileiro mantém suas raízes seculares e permite a diluição de todas as regras, hierarquias e convenções em rituais populares que não necessariamente ocorrem em fevereiro.
Para a cultura, o carnaval se estabelece como espaço e tempo com vida própria e repertório recorrente. A literatura, como as demais artes, soube aproveitar as possibilidades discursivas da festa e produziu uma série de obras que privilegiem seus temas. Três autores brasileiros, trabalhando em três gêneros distintos (romance, conto e poesia), parecem-me o suficiente para termos uma breve ideia disso.
O primeiro deles é Jorge Amado com seu O país do carnaval, livro inicial de um dos homens mais importantes na construção da imagem do Brasil do século XX, escrito quando o autor tinha de dezoito para dezenove anos. Dentro do grupo de romancistas do nordeste, jovens que agarram o bastião do Brasil a ser descrito, Jorge Amado se destaca pelo mais talentoso inventor de um imaginário propagandístico e, se deturpado, ufanista do Brasil. As mulatas, as festas, a sabedoria dos negros, a religião africana, o malandro, a manha, a sensualidade. Se o baiano não os inventou, ao menos, lhes deu o aspecto que pegou, não apenas por intermédio de sua obra, mas a partir das inúmeras séries, novelas e filmes com inspiração amadiana.
O país do carnaval narra a história de Paulo Rigger, brasileiro educado na França que volta ao Brasil em tempo de carnaval enamorado da prostituta francesa Julie.
Depois de transitar por alguns lugares do país e de ser traído pela amante, depois de se desiludir com a segunda mulher por quem se apaixona, Maria de Lourdes, e perder o amigo Pedro Ticiano, decide viajar novamente para a Europa, em pleno domingo de carnaval.
O início e o fim do livro são um manifesto à parte. O começo é narrado enfatizando o “achamento” da terra, com direito a gritos de “Terra à vista” e tudo. A atmosfera de descobrimento posiciona o texto no início da década de 30, em que uma efervescente campanha intelectual trata de mapear o Brasil não só na ficção, como fora dela, nas pessoas de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado, por exemplo. Por isso, logo na primeira cena, há a representação de uma série de estrangeiros que servem para evocar todo o conjunto de estereótipos sobre o país. Que andam de tangas, que se resume a São Paulo, que é o país do futuro e sua capital é Buenos Aires, por exemplo.
No entanto, na primeira cena em que participa do carnaval, Paulo sente a alma do povo e atinge um raro momento de integridade com o coletivo, vendo as mulatas “cor de canela”, que aparecem pela primeira vez em Jorge Amado. Todos se beijam e se apalpam na representação máxima da carnavalesca onde os indivíduos são iguais e gozam dos mesmo direitos. Rigger inclusive vê “as virtuosas filhas de um moralista exaltado” no carnaval com os seios quase a mostra e entende que a inversão dita as regras.
Mas logo o temperamento do protagonista mudará tudo.
Todo o restante do livro será orientado pela síncrese, confrontação de dois pontos de vista distintos. Isso porque Rigger é um ideólogo e seu temperamento frio, cerebral, cético, demolidor e opositor o faz entrar em confronto com a terra natal, principalmente quando a relação com Julie lhe mostra o quão irracional, selvagem até, seu temperamento pode ser.  Personagens discutem religião, política, literatura, em páginas de qualidade questionável e cujas reflexões geralmente não levam a lugar algum, no pior estilo Graça Aranha. No fim, Paulo contempla a imagem de um país ainda indefinido, cheio de dúvidas e que é o início do projeto amadiano de defini-lo.
O texto também tem o pioneirismo de inaugurar alguns dos procedimentos mais célebres de Jorge Amado. Destaco o uso da cultura popular, mais particularmente do cancioneiro popular, que em muitos dos romances do baiano funcionam como um coro, a definição de um ethos que observa e opina acerca dos acontecimentos narrados. Ao lado das canções, estão também os ditados, como pode ser visto no trecho: “Amorzinho, você está inteiramente brasileiro! Romântico como os seus patrícios de quem você fala tanto. Você só é parisiense na boca... E repetira o ditado que ouvira de uma preta gorda, na porta de um hotel: Quem não te conhece que te compre.”, onde o bordão popular é essencial para expressar a definição da identidade do protagonista.
Paulo começa e termina o livro no carnaval. Decide partir justamente no domingo da festa e esta atravanca a sua saída. Em País do carnaval, a carnavalesca não é ambígua, recebe e despede-se do homem com a mesma cara. O homem é que já não é o mesmo. Expressão máxima do eterno presente que caracteriza o festejo.
Doze anos antes, em 1919, Manuel Bandeira publica Carnaval, seu segundo livro de poemas. O livro sofre os males de sua posição. Feito entre o primeiro livro do mineiro e Ritmo dissoluto, que apontaria para a atmosfera do cultuado Libertinagem, Carnaval não alcançou a popularidade de alguns de seus pares.
Primeiro, aqui está “Os sapos”, terceira peça do livro – depois de “Epígrafe” e “Bacanal” –, decisivo para que Bandeira fosse chamado de “São João Batista do modernismo” por Mário de Andrade. Aqui está também o paradigmático “Sonho de uma terça-feira gorda” em que Bandeira executa os versos livres que marcariam algumas de sua sobras posteriores mais célebres. Mas o que nos interessa é perceber a temática do carnaval como conformadora de uma poética em transição expressa pelo autor. Desde o primeiro texto “Epígrafe”, passando pelo segundo “Bacanal”, “A canção das lágrimas de Pierrot”, “Pierrot branco”, “Arlequinada”, chegando ao penúltimo “Poema de uma quarta-feira de cinzas”, e no último “Epílogo”, o carnaval é recorrência, mas nunca redundância nas estrofes do poeta. E não somente neste livro, mas em toda sua obra.
A escolha do carnaval é de teor modernista na ênfase da temática cotidiana, popular e nacional. A inspiração do lírico pode sim estar na rua. Porém, entre muitas idas e vindas de Arlequins, Pierrots e colombinas, a primeira constatação reside numa incoerência que o poeta enfrenta. Tratar uma festa que preza pela informalidade e espontaneidade a partir do rigor formal (na métrica, ritmo e rimas) exige que Bandeira repense seus procedimentos técnicos. Além disso, não deixa de ser importante que no primeiro livro do autor com lampejos modernistas, a imagem recorrente seja já a da mistura carnavalesca, reiterada depois em “Não sei dançar”, primeiro texto de Libetinagem. Além disso, os inúmeros poemas que apostam no imaginário do carnaval são tratados em muitos padrões rítmicos, métricos e estróficos (ainda que a esmagadora maioria das estrofes sejam quadras populares), o que simula a variedade formal que também marcaria o trajeto do autor.
Passemos a um caso pontual, o derradeiro poema do livro “Epílogo”. Chave de ouro que demonstra a vitória da amargura no pêndulo alegria-tristeza que compõe o carnaval de Bandeira.

Epílogo


Eu quis um dia, como Schumann, compor

Um Carnaval todo subjetivo:
Um Carnaval em que o só motivo 
Fosse o meu próprio ser interior...



Quando o acabei - a diferença que havia!

O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta morta-cor
Da senilidade e da amargura...
O meu Carnaval sem nenhuma alegria!...



 O poema começa por uma referência essencial, o carnaval de Schumann. Temos aqui a intenção expressa de seguir um modelo. Uma tentativa fracassada que ressoa na estrofação. A primeira estrofe leva a crer que teremos um poema em quadras como muitos outros do livro. Entretanto não é o que acontece. A forma desrespeita o planejamento, assim como o empreendimento descrito pelo eu-lírico. A segunda estrofe aposta em outro padrão: a sextilha. A presença da subjetividade impossibilita o seguimento de uma regra e deturpa o plano inicial (expressos no teor antitético do desfecho). A espontaneidade de Bandeira está na amargura. Esse é o seu carnaval, pois aqui está a porta de entrada para a libertação, para a fuga de todas as convenções. A obra de Bandeira provará que o carnaval do modernista é mais complexo. Tomou tristeza, alegria e muitas outras doses indefasáveis.
A melancolia do carnaval compõem também o conto “Restos do Carnaval”, de Clarice Lispector, presente no livro Felicidade clandestina. Sua história começa desestabilizando o clima da carnavalesca. Este é sustentado a partir da ênfase no caráter atemporal, o eterno presente da vida que, aqui, é diluído na memória da protagonista. O carnaval já perdeu seu núcleo essencial. Além disso, a festa é evocada a partir de sua ausência-presença, “Não, não deste último carnaval”, o que subverte sua semântica costumeira. Na verdade o trecho citado é o único em que a estrutura e o conteúdo da frase estão no presente. O carnaval é acionado na evasão de seu próprio espaço e tempo. A protagonista vivencia no restante uma rememoração de outro, marcante no passado.
Este a marcou pois sua mãe estava doente e não havia tempo para festejos. Sua sorte parece que vai mudar quando a mãe de uma amiga sugere preparar-lhe uma fantasia de rosa com as sobras de papel crepom. Mas logo sua mãe piora e a menina tem uma das tantas revelações a que Clarice submete suas personagens. Depois de certa melhora da sua mãe e do encontro com um menino lindo de 12 anos que lhe cobre o cabelo de confetes, a personagem reconhece ser sim uma verdadeira rosa.
Fica claro que o conto narra uma metamorfose. Essa ação evoca o imaginário do carnaval, onde todos podem simular ser outros provisoriamente. Mais uma vez Clarice problematiza o imaginário carnavalesco, pois no caso de sua heroína, a transformação é permanente, centrada no eu. A intimidade enfatiza-se também no fato de a história ser rememorada a partir da narradora escrivã no tempo presente da enunciação. O conflito eu-agora X eu-ontem torna complexas todas as camadas da história. Presente narrativo, fonte do discurso, de um carnaval que não repercute no sujeito em contato com o passado narrado de um carnaval inesquecível. A festa coletiva dilui-se no íntimo do ser e perde todo seu valor comunitário. Mesmo a descoberta da sexualidade (interpretação mais explícita do conto) é pessoal. Sequer há troca de palavras no encontro com o menino ao final, pois a ênfase não está no diálogo, mas no eu. A narradora, como Nogueira do “Missa do galo”machadiano, anda não conseguiu entender a história, mas sua transformação é evidente
Estopim do eu mutável, “Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu queria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma”, Clarice compõe o carnaval “todo subjetivo” de Bandeira.

AMADO, Jorge. O país do carnaval. São Paulo. Companhia das Letras, 2011.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira.  Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2008.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro. Rocco, 1998.
  
Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

Nenhum comentário:

Postar um comentário