sábado, 1 de dezembro de 2012

O Pato Fáustico - Dany Laferrièrre e Chester Brown

Libido, sexualidade e polêmica no Pato Fáustico de hoje com "Como fazer amor com um negro sem se cansar", de Dany Laferrièrre e "Pagando por sexo", de Chester Brown. Para finalizar, indicação de mangá. Aproveitem!!!



O cru, o nu e o pulp





“Já que a história não cuidou bem de nós, ela ao menos nos serve de afrodisíaco”
Dany Laferrièrre

Como fazer amor com um negro sem se cansar (1985), o didático primeiro título da “autobiografia americana”, planejada pelo escritor haitiano Dany Laferrière, pôs seu autor em evidencia na crítica literária internacional. O livro chegou ao Brasil pela Editora 34, aliado à vinda do autor para a Festa literária de Paraty, o que ajudou a popularizar seu romance entre nós. A trama acompanha dois negros, o narrador, em primeira pessoa (chamado de “Velho”), e seu amigo Buba, vivendo na sociedade branca de Montreal na década de 70. Em meio a sessões de Jazz e muitas ideias impertinentes, a relação sexual do narrador com várias brancas, geralmente universitárias da McGill, pontua as principais motivações do enredo.
Este investe em uma série de situações que exploram a crise entre o choque de raças, ainda que de uma perspectiva pouco usual. O narrador esforça-se em revisitar a imagem do negro na sociedade, geralmente a partir dos estereótipos sexuais criados na sua relação com o branco. Seja relacionando-o a qualidades econômicas: “Se pelo menos o Negro ejaculasse petróleo. O ouro negro. Pena, o esperma do Negro é branco. Por outro lado, o valor do amarelo sobe. É limpo, o Japonês, não ocupa muito espaço e conhece o Kama Sutra como conhece a sua primeira Nikon.” (p. 17); seja como compensação histórica: “‘Então, é sempre a mesma coisa, os colonialistas realizaram as suas fantasias de dominação fálica esmagando os outros, e, na hora de pagar a conta, esse safado propõe simplesmente que os Negros comam as nossas mulheres.’” (p. 50); é evidente a eficácia do narrador em subverter algumas convenções figurativas/imagéticas/sentimentais que povoam as relações entre negros e brancos.
Neste mesmo esforço são revitalizadas uma série de imagens de invasão que permearão as zonas de contato étnicos expostas pelo romance. A mais superficial delas mesclará a violação irresponsável do ato sexual ao processo colonizatório (envolvendo a tentativa de “trepar com o inconsciente” das mulheres branca, escolha lexical que sequer tenta esconder a carga traumática da relação entre as duas culturas). Mas há outras passagens mais interessantes, como as invasões subseqüentes por parte do narrador a espaços habitados por mulheres brancas, figurando de forma reinscindente o que seria uma revanche, uma subversão do esquema invasor/invadido.
Essas invasões são geralmente acompanhadas de descrições enumerativas e assépticas, familiares ao estilo do livro, composto de frases curtas e pontuação assídua. Sincopado como um bom jazz. Em alguns momentos, como nas cenas anteriores, pode investir em uma composição espacial estática, desvirtuando a ética branca pela banalidade de uma enumeração constatativa e nominal que a envolve como, por exemplo: “Escuto claramente a água correndo. Água íntima. Corpo molhado. Estar ali, assim nessa doce intimidade anglo-saxã. Casa grande de tijolos vermelhos cobertos de hera. Gramado inglês. Calma vitoriana. Poltronas profundas. Daguerreótipos antigos. Objetos em pátina. Piano preto de laca. Gravuras de época. Retrato de grupo com um Cocker. Banqueiros (queixo duplo e monóculo) jogando críquete. Retrato de meninas de rosto longo, fino e doentio. Diplomata de chapéu colonial em seu posto de Nova Délhi. Perfume de Calcutá.” (p. 90)
Além disso, o narrador não esconde a natureza tipificada de suas coadjuvantes tratando-as sempre por alcunhas redutoras e debochadas como Miz Literatura Miz Suicida, Miz Mystic, Miz Alfafa, Miz cigarro, entre outras.
O romance tem 28 capítulos, alguns manifestos como “O ocidente não se interessa mais por sexo, por isso tenta denegri-lo” e o último “A gente não nasce negro, a gente se torna um”, mas a maioria sinaliza para o descaramento irônico “Como uma flor na ponta do meu pau negro” e “O negro é do reino vegetal” são alguns dos melhores. Realmente, a análise lingüística de Como fazer amor com um negro sem se cansar não pode partir de outro tropo que não o irônico, visto que a ironia é a grande chave retórica do livro de Dany Laferrièrre. Forma lingüística de correção da realidade e revisão da linguagem posta, pois sinaliza sempre para o oposto do que é dito, na ironia, a linguagem assume sua identidade e sua diferença ao simular uma relidade assertiva, ao mesmo tempo em que a contradiz. A negação, no livro de Laferrièrre só é expressa a partir de uma dimensão contextual implícita e que sinaliza e permite o irônico.  A ironia é um tipo de racionalidade multiforme. Como a ironia refrata um conteúdo aparentemente inteligível, quando usada como ataque ela, Nietzsche já o disse, despontencia o intelecto do alvo. Ela sempre usa de um trunfo semântico, pois se apropria da réplica em seu interior. Efeito atingido pela assimilação do discurso dos outros no interior do discurso do eu.
Além disso, o irônico é um efeito de distanciamento, algo que o próprio narrador demonstra necessário para construir seu discurso, em certos momentos: “Como Negro, não tenho o distanciamento necessário em relação ao Negro. Será o Negro esse porco sensual? O Branco esse porco transparente? O Amarelo, esse porco refinado? O Vermelho, esse porco sangrento? Somente o porco é porco?” (p. 44). No irônico, reside a tentativa de resolver a situação dual que marca a personalidade do protagonista. Acontece que, se encaminhando para o fim do romance, o narrador passa a falar a respeito da própria escrita (já que também é um escritor que acabou de publicar um livro de estréia que, em última análise segue as situações que estamos lendo). Em determinado ponto, o personagem diz:

“Escrevo: Banheiro.
  Vejo: duas toalhas sujas, três sabões, um after shave, duas fitas adesivas, duas escovas de dente, um desodorante (English Leather), dois tubos de pasta de dente Colgate, uma cartela de pastilhas digestivas Alka Seltzer, um barbeador elétrico (presente de Miz Literatura) [...]
Escrevo: Geladeira.
Vejo: uma garrafa d`´agua, uma caixa pela metade de massa de tomate, um pote de picles quase vazio, um queijo engordorado tipo oka, duas garrafas de cerveja e um pacote de cenouras.
Escrevo: Janela.
Vejo essa droga de Cruz pela janela.” (p. 96)

O narrador atesta o conflito entre a escrita e realidade, sinalizando para a inoperância do discurso, o que de certa forma contradiz a própria ironia, criando dois níveis de funções da linguagem sendo utilizados ao mesmo tempo. Talvez por isso, uma série de referências literárias textualizadas -Miller, Cendrars, Bukowski (p. 94)- evocam autores que também trabalham entre a crueza e o duplo sentido do próprio ato de escrever. Entre a máquina de escrever de Hemingway e a de Chester Himes, o narrador preferiu a do segundo (p. 52). Seco, mas filiado a ideologia do negro, do Jazz, da realidade crua, nua e pulp, Dany Laferrièrre erra entre as funções da literatura, múltiplo como seu primeiro e definitivo herói romanesco.


LAFERRIÈRRE, Dany. Como fazer amor com um negro sem se cansar. São Paulo: Editora 34, 2012.

Autor: Daniel Baz

Chester Brown e um manifesto quadrinizado




“Embora tenha relatado os incidentes e conversas que compõem esta graphic novel de maneira razoavelmente fiel à minha memória, você deve ter em mente que a memória não é exata” – Chester Brown (p. X)

“Então, a experiência de pagar por sexo não é vazia quando a gente paga à pessoa certa” – Chester Brown (p. 227)



As histórias de caráter autobiográfico já chegaram aos quadrinhos faz algum tempo. Somente nos últimos anos, no Brasil, foram lançados trabalhos como Adeus, tristeza, de Belle Yang, Retalhos, de Craig Thompson, e Persépolis, de Marjane Satrapi para ficar com os exemplos mais populares. De todos estes, nenhum aborda com tanta naturalidade um assunto tão polêmico como Pagando por sexo, último lançamento de Chester Brown. Nas palavras do próprio autor, no prefácio da edição: “Neste livro, registro todas as vezes que paguei por sexo até o final de 2003 e todas as prostitutas com quem tive relações depois disso.” (p. IX). Sendo assim, acompanharemos durante mais de duzentas páginas a descoberta de um mundo fascinante e sensível que se esconde por trás de preconceitos e zonas de generalização difusas, em um percurso que aborda uma série de posturas morais, das quais a mais importante questiona a validade do amor romântico na sociedade atual (proveniente do conflito brilhantemente resumido: “querer transar, não querer namorar”).
Tudo isso é contado em uma técnica narrativa muito precisa. A começar pelo ritmo visual imposto pelo quadrinista, num padrão de dois quadros por linha, quatro linhas por quadro, totalizando um esquema de oito quadros por página. O esforço de criar uma norma rítmica tem duas funções básicas em Pagando por sexo. A primeira delas, como já foi percebido em outros quadrinhos aqui no Pato Fáustico, cria uma zona de familiarização com o leitor, na mesma medida em que trata de conteúdos com os quais ele provavelmente não está familiarizado. A forma, assim, é a primeira garantia de previsibilidade, facilitando a inteligibilidade de uma temática aguda. Mas, mais do que isso, a repetição da estrutura da página também ajuda a erigir o clima de rotina e de naturalidade que permeia todas as relações durante toda a história, numa quebra de estereótipos que anseiam por tramas envolvendo perversão e violência (algo discutido pelos personagens), e que nunca acontece.
Entretanto, nem tudo é previsibilidade em Pagando por sexo. De forma muito engenhosa, Chester Brown varia certas sutilezas compositivas, com destaque para o tamanho diferenciado dos capítulos, realçando o caráter particular de cada programa vivido pelo protagonista, o que impede que se banalize o ritmo do relato. Outros recursos icônicos são também muito bem utilizados. Ainda no primeiro capítulo, intitulado “Minha última namorada” as principais escolhas lingüísticas são estabelecidas. As imagens dos seres geralmente se mantêm estáticas com poucas transformações nas longas cenas de diálogos (principalmente entre o protagonista e seus amigos). Isto, aliado à ausência de expressões fortes no rosto de Chester, ajudam a compor seu caráter decidido e compenetrado (e não temos surpresa quando ele contabiliza, na página 60, quanto gastaria com uma namorada para ter menos sexo do que com as, mais econômicas, prostitutas). A mesma decisão narrativa que enfatiza o enorme número de pensamentos emitidos pelo protagonista e que circundam sempre suas ações. Assim, algo que poderia ser esteriotipadamente corporal, torna-se um fenômeno essencialmente psíquico. Além disso, as personagens das prostitutas nunca tem seus rostos revelados, o que aumenta ainda mais a importância dos monólogos interiores de Chester e sugere que suas amantes são uma construção tão pessoal e reflexiva que escapa à figuração. Pontos para o autor.
Com relação aos desenhos, o ponto de maior interesse é o traço genérico utilizado para realçar mais a abstração dos seres do que seu realismo. Estamos diante de um tipo de arte que usa a simplicidade para falar de temas adultos. O que é sempre um tributo ao movimento underground dos quadrinhos pós Harvey Kurtzman. O autor se concentra nos traços específicos, isto é, usa padrões gerais para definir um sujeito que participa de situações nada gerais. Assim, a facilitação a partir da identificação com o personagem equilibra o afastamento sentido pela situação que ele vivencia. Além disso, a pouca informação visual serve também para ressaltar o discurso dos envolvidos.
Ao fim do volume, páginas e mais páginas de anexo revelam as opiniões do autor acerca dos assuntos abordados em sua obra. No paratexto, Chester Brown se sente à vontade para ser ainda mais explícito e responder aos argumentos de quem condena sua escolha de vida. Sem medo de ser planfetário, o quadrinista exige uma função de sua arte ainda que fora da dimensão estética. Seria um uso redutor e condenável não fosse a qualidade narrativa da história de Pagando por sexo.


BROWN, Chester. Pagando por sexo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

Autor: Daniel Baz






sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O Pato Fáustico - Solidão continental, de João Gilberto Noll e indicação de quadrinhos

Um pentacampeão do Jabuti no programa de hoje: João Gilberto Noll e seu novo romance. Para não perder o costume, indicamos ainda dois quadrinhos recém lançados.
Aproveitem!!!!!

A solidão como meta



 A obra de João Gilberto Noll pode ser caracterizada por uma série de constantes. Duas delas, o duelo entre mundo interior e sensível e a errância de personagens vagando deslocados pelos espaços que freqüentam, estão no seu mais novo romance Solidão continental. Nele, o escritor gaúcho apresenta João Bastos, sujeito que parte em viagem de Chicago a Porto Alegre, com escalas em Madison e Cidade do México, em incursões feitas de definições imprecisas dos espaços em que dorme, transa e come. Lidando com a renovação inusitada e frequente do espaço territorial, o personagem adquire e termina relações afetivas (geralmente sexuais – outro mote comum na obra de Noll) numa progressão incisiva e ininterrupta, apesar da linguagem difusa, fantasmagórica e aparentemente imprecisa.
Lembrando outros narradores de Noll, João Bastos sofre de um mal recorrente em algumas obras atuais. Refiro-me à psicologia dilatada, que diluirá tudo na arenosa área representativa do eu, o que servirá de sustentáculo para um tipo contundente de crise de identidade que envolve questões de nacionalidade (o itinerário migracional), sexualidade (o bissexualismo do protagonista), idade (o narrador não se sente velho, mas já não é jovem), entre outras possibilidades.
Essa crise no interior do ser é transposta para as relações do personagem com o mundo, produzindo um intervalo turbulento entre as sensações e o pensamento. Para resolver este conflito, algumas imagens são fundamentais, das quais destacamos a presença massiva de fluídos corporais (sangue, suor, sêmen, baba) que servem não apenas para externalizar o que há de mais íntimo e secreto no sujeito como, ao mesmo tempo, para impactar a aparência natural do mundo. Da mesma forma, são recorrentes as metáforas e comparações que alienam o sujeito do mundo usando termos que envolvam este mesmo campo de sua fisiologia, como é o caso do início do capítulo 8 em que o narrador revela: “Entre mim e aquele cenário da Osvaldo Aranha havia como uma mucosa transparente doendo se eu tocasse.” (p. 77).
Por fim, basta lembrar que esta relação se dá de forma renovável e dialógica, o que é expresso em cenas que mostram o personagem reintroduzindo o seu interior externalizado para dentro de si, o que fica claro no momento em que João torce a camisa molhada de suor e sangue e bebe o conteúdo expelido (p. 102). Este movimento dual já fora expresso pelo narrador de Harmada, ainda no início do livro, quando este sugere que os eventos vivenciados por si possam ser “um breve colapso entre a aparência e o íntimo das coisas”.
A errância de João, num primeiro momento, enfatiza a força dessa psicologia dilatada, já que o intenso deslocamento espacial não atenua em nada o ritmo interior frenético do personagem. Para compreendemos seu uso, guardando sua múltipla orientação, devemos notar que o não percorremos apenas o mundo do andarilho, mas também as imagens que ele produz acerca deste mundo. Por isso, a errância é o motivo do enredo mais intimamente ligado às cenas imprecisas, difusas e caóticas que ele produz. Além de nada ser assertivo e definitivo, o discurso trabalha retardando os fenômenos que o próprio discurso produz, desvirtuando por escolhas narrativas peculiares quaisquer sentidos unilaterais. A principal técnica utilizada pelo autor neste sentido é o revezamamento entre a frase muito longa, cheia de subordinações e complementos, e a frase curta, seca, objetiva. Assim, nas duas moedas da duração sintática, nada ocupa lugar determinado, o que, quando associado às imagens impertinentes exploradas pelo autor, exclui qualquer referência fixa do sentido. Mais do que isso, impede que se pensem “real”, pois são muitos ou seus níveis e são várias as suas manifestações.
Esta errância também é responsável, em Solidão continental, por outro conflito importante nas relações do personagem com o mundo, a saber: o cabo de forças entre o mundo natural e o urbano. Seja pelo uso de imagens animais e imagens vegetais que contextualizam o sentimento do eu (destaque para a gata que dá cria e para o bicho irreconhecível, ao final do livro), seja pela irrupção do selvagem dentro do espaço mais civilizado (aqui basta notar as repentinas fugas para rios e matas ao redor de todo o romance). A força da natureza não serve mais para a lógica urbana e sua aparição é uma forma do autor justificar também o absurdo do mundo e a sensação de não pertença. Esta situação é resumida no brilhante parágrafo em que João diz: “No lado de lá do muro havia uma escavadeira parada. Marcando talvez uma obra que estivesse para ser iniciada. Ou que sofresse um impasse em sua continuidade logo em seu começo. Em volta da máquina uma verdadeira argila não tivera tempo de se ressecar. Perguntei-me se ali não acontecia nada – como me sentia prestes a acreditar. Um beija-flor suspendia o vôo em frente a uma margarida cansada e entre as macegas uma cigarra ferrava o seu canto, aumentando o calor.” (p. 101)
A cena revela um homem que, ao olhar para o mundo percebe que desconhece os fenômenos de produção, reprodução e as relações que sustentam o universo que habita, logo, desconhece a lógica de sua própria história, abstraindo também parâmetros convencionais que guiem sua descrição. Ao se espantar com cães ou entrar em matas inóspitas (em outras cenas de Solidão continental), o homem repensa o papel de sua solidão, como conclui João, na metade de seu percurso: “Que eu voltasse à minha solidão sem me abater. Nela tinha as minhas referências todas ordenadas[...]’ (p. 64). Ao fim dos cálculos, estar só, ainda que continentalmente, é manter qualquer horizonte produtor de sentido passível de compreensão. A solidão deixa de ser condição para tornar-se uma meta.

NOLL, João Gilberto. Solidão continental. Rio de Janeiro: Record, 2012.

Autor: Daniel Baz


segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Pato Fáustico - O sentido de um fim, de Julian Barnes

O romance "O sentido de um fim", de Julian Barnes, vencedor do "Man Booker Prize" de 2011 é o assunto do videocast de hoje. Um velho memorialista perdido entre dois tempos é o herói desta história de mágoas e nostalgia. Confiram!!!!!

Entre a inquietude e a acumulação: O sentido de um fim, de Julian Barnes



“A que propósito evolucionário a nostalgia poderia servir?” pergunta Tony Webster, narrador memorialista sexagenário do romance O sentido de um fim, de Julian Barnes. O questionamento torna-se crítico quando pensamos no transtornado percurso de um herói que busca se (re) descobrir lembrando a vida que teve, na esteira do filão de livros rememorativos sempre tão populares, não importando a época. O principal diferencial de O sentido de um fim é o peso dado a não-confiabilidade do narrador, que torna o processo de leitura muito mais acidentado e escorregadio.
O romance se divide em duas partes. Na primeira - que já começa com significativa indicação dos limites da memória, em que a lembrança ocorre de forma “aleatória” – o narrador lembra o grupo de três amigos que o acompanharam quando era um estudante, com especial atenção para o genial colega Adrian Finn, o rápido namoro com a misteriosa Veronica (acrescido do tratamento desdenhoso que a família dela lhe oferece) e, por fim, a entrada no mundo adulto, ao casar-se com Margaret, de quem se divorcia anos depois.
Até este ponto do romance, a ênfase recai na admiração/inveja que o narrador sente pela inteligência do amigo Adrian, sua mágoa quando este começa a sair com Veronica e sua surpresa quando ele se suicida aos 22 anos. Quando consegue esquecer o velho colega, a história parece perder a razão de ser e salta no tempo, resumindo décadas da história do narrador: “Então conheci Margaret; nos casamos e três anos depois nasceu Susie. Nós compramos uma pequena casa com uma grande hipoteca; eu viajava para Londres todo dia. Meu estágio se transformou numa longa carreira. A vida foi passando. Algum inglês disse que o casamento é uma refeição comprida e sem graça onde servem o pudim primeiro. [...] Depois de doze anos, Margaret foi viver com um cara que gerenciava um restaurante.” (p. 62)
O que parecia ser mais uma história de “A vida que podia ter sido e que não foi” se torna algo muito mais enigmático a partir da segunda parte do livro, em que o narrador recebe da mãe de Veronica o testamento do amigo, envolvendo uma quantia de dinheiro (prontamente recebida) e o diário de Adrian, ainda em posse de Veronica. Além disso, esta etapa do romance insere o imaginário contemporâneo nos limites da obra e acompanhamos as incessantes mensagens de e-mail do narrador para seus conhecidos, em busca de recuperar o diário e entender questões abertas desde o passado.
Por esta via, a narrativa trabalha a inscrição de dois tempos diegéticos em destaque, o do século passado, anos sessenta, e os presentes anos dois mil. Dois recortes de tempo muito específicos que são subseqüentes na narrativa sem a oportuna observação dos momentos que lhe foram intermediários. Este tratamento anômalo do tempo alia-se à capacidade seletiva da memória que controla a sintaxe narrativa. O próprio personagem recorre a uma imagem interessante para tentar explicar isso: “Mais tarde, a memória vira uma coisa feita de retalhos e remendos. É um pouco como a caixa preta que os aviões carregam para registrar o que acontece num desastre. Se nada der errado, a fita se apaga sozinha. Então, se você se arrebenta, o motivo se torna óbvio; se você não se arrebenta, então o registro da sua viagem é muito menos claro.” (p. 113)
Quem conhece a obra-prima de Proust sabe que lá o autor explora dois aspectos da retenção representativa operada pela memória. Refiro-me à percepção e à rememoração (cujo ápice ocorre na discussão da retenção da percepção estética de O tempo redescoberto). Na primeira experiência, o foco está na presentificação do objeto enquanto sentido, efeito extremamente particularizado. Já na outra relação com os fenômenos, trata-se de uma espécie de resumo lógico empreendido pela memória, e que geralmente tende a retirar as particularidades pessoais da experiência passada para incorporá-las à cadeia genérica da narrativa de uma vida. Ora, o narrador de O sentido de um fim está a todo o momento partindo do segundo tipo de experiência para o primeiro. Prova disso é uma das cenas mais impressionantes do livro em que o narrador ao ler uma carta enviada por si mesmo no passado percebe o quanto pode ser cruel. A percepção de um objeto que vivia na memória como reminiscência, pode redefinir a identidade do sujeito e interferir na sua relação com o mundo e com seu interlocutor (afinal, há um receptor implícito textualizado em muitos momentos do texto).
A ambigüidade da identidade do protagonista surge em uma série de textos em que o narrador se contradiz ou relativiza, no momento da enunciação, o conteúdo do enunciado. Um dos momentos mais explícitos acontece quando o narrador revela: “Mais uma vez, devo enfatizar que esta é a minha leitura atual do que aconteceu na época. Ou melhor, minha lembrança atual da leitura que fiz então do que estava acontecendo na época.” (p. 49); ou quando se põe sumariamente em dúvida “Os Ford eram mais elegantes do que os Webster naquela época, e eles iam continuar sendo para sempre. Ou isso era mera paranóia da minha parte?” (p. 81)
Todo este tratamento ambíguo está relacionado com uma percepção do tempo também na sua perspectiva histórica. Em determinado momento, Tony atesta que “a maioria das pessoas nos anos 1960 ainda estava experimentando os anos 1950 – ou, no meu caso, pedaços de cada década lado a lado. O que tornava as coisas um tanto confusas” (p. 47). Desta forma, a história, assim como o indivíduo, também é feita de percepções que envolvem anacronias necessárias para o desenvolvimento da compreensão do que se viveu. A disritmia (nostálgica ou não) torna-se sim um motor da evolução narrativa (e de sua interpretação), por intermédio da pré-seleção e interpretação dos eventos.
Também por isso a linguagem da obra investe na errância de motivos, que, de um momento para o outro, podem perder todo o sentido ou ganhar novos. O deslizamento de interpretações cria um tipo de obra memorialista, como em clássicos do tipo de Tristan Shandy, em que se oferece a imagem de um embate, do homem e sua capacidade dinâmica de narrar com as relações petrificadas que estabelece no mundo e aquelas que a própria memória cria.
A palavra passa a admitir que “não foi bem assim”, desde o momento de sua enunciação. O autor do monólogo interior, que, geralmente, é dono de um gesto preciso, ao não se distanciar esteticamente do que conta, está fadado a experimentar o julgamento da interlocução. A sociedade, por sua vez, neste tipo de romance, se resume a poucas relações motivadas pelas situações que se firmaram no passado, inscrevendo a trama no terreno da (re) apresentação do mundo (basta reparar como o narrador não consegue mais se relacionar com ninguém no presente). Nesse sentido, quando o narrador, ao fim do romance, descobre que uma personagem é na realidade outra bem mais nova do que a primeira que ele supora, podemos finalmente perceber melhor o teatro trágico da vida de Tony preso à outra temporalidade.
Assim, o sentido de um fim torna-se o sentido do próprio tempo. Descontínuo, o tempo, por sua vez, é uma matéria ineficaz. Como última menção, basta notar como os personagens são desenhados em rápidas pinceladas pelo narrador, que nunca oferece uma imagem definida e concentrada dos coadjuvantes. Desta forma, o tempo interno do eu constrói uma narração que não tenta a fixação de identidades externas a si, ainda que a verdade resida também ali. Por isso, o sentido do fim é ainda um sentido de acumulação e inquietude, numa paráfrase do lamento final de Tony: “Existe acumulação. Existe responsabilidade. E além de tudo isso, existe inquietude. Existe grande inquietude.” (p. 159)

BARNES, Julian. O sentido de um fim. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.


Autor: Daniel Baz

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O Pato Fáustico - Habibi, de Craig Thompson e Cosmópolis, de Don DeLillo

Habibi, a nova obra de Craig Thompson e Cosmópolis, de Don DeLillo, formam a dupla quadrinhos e literatura do programa de hoje. Confiram!!!!!!!


O valor do supérfluo em Cosmópolis




A capacidade de absorver em sua estrutura narrativa as características da sociedade de massa contemporânea é um dos diferenciais das ficções pós-modernas. No mínimo desde a década de 50,  estas  ficções tornaram-se capazes de alegorizar sua própria situação, ao mesmo tempo em que representam o mundo que as contextualizam. Neste processo, Don DeLillo nunca foi autor de pouca importância e seu romance Cosmópolis, que agora recebe uma nova interpretação – cinematográfica – nas mãos de David Cronenberg, é uma obra emblemática de relevo.
Eric Parker, 28 anos, gênio da especulação financeira, o que o torna bilionário, decide cortar o cabelo. O fato de o presidente estar na cidade, seguido da morte de uma expoente astro do rap, transformam a cidade em um caos, tornando a banal decisão do protagonista o início de uma epopéia pelas ruas engarrafadas e hostis da cidade. Boa parte do romance se passa na limusine de Parker, espaço artificial que permite o movimento do personagem enquanto este garante sua estaticidade, o que converte o automóvel no símbolo da pós-industrialização e da lógica mínimo esforço/máximo de resultados – além de ser índice explícito da alienação que o fará cair antes do fim da história.
Durante o dia, Eric irá se envolver em uma série de diálogos reveladores do absurdo de sua existência, como o médico que constata que sua próstrata é assimétrica ou a excitação sexual atingida sem contato físico e com a participação de uma garrafa de plástico. Para piorar sua situação, alguém está decidido a matá-lo, crise que o torna ainda mais paranóico e ajuda na reflexão do seu modo de existência. Consciente disso, o autor estabelece dois tipos de narração, uma em terceira pessoa - que acompanha Eric - e outra em primeira pessoa – usada para seguir o raciocínio de seu assassino. Dessa forma, a única consciência a que temos acesso é a do antagonista do herói, o que também enfraquece a mundivivência de Parker .
DeLillo, assim, explora o absurdo dos acontecimentos para erigir uma alegoria precisa de certas características, para as quais ele lança um olhar cáustico, do mundo atual, na velha tradição de Jonathan Swift. O interessante de Cosmópolis é que o absurdo atinge até mesmo os menores organismos do discurso, começando pelas comparações artificialmente alusivas em que um carro é grande como metástase (p. 18) e deve ser “prousteado” (alongado) (p. 73). A impertinência semântica é visível ainda em certas frases que não se ligam com qualquer informação precedente, o que é ilustrado pelo momento em que o narrador diz do protagonista “Ele gostava de manter o volume baixo, ou tirar o som” (p. 41).
O auge deste tipo de procedimento é atingido em passagens que sinalizam para a discrepância entre os atos e suas causas, criando sintagmas em que as ações se alienam de suas motivações: “Ela mergulhou o dedo no drink depois esqueceu de lambê-lo” (p. 111). Para finalizar, certas informações não acrescentam absolutamente nada ao que foi dito anteriormente e garantem o lugar de elementos sintáticos que já não tem nenhuma função, mas que nem por isso são descartados: “O que faz as pessoas espirrarem? Um reflexo protetor das mucosas nasais, para expelir material estranho.”
O que torna todos estes exemplos citados eficazes é a maneira como eles se articulam com a atividade responsável pela situação de Parker, ou seja, a especulação financeira. A ideia principal deste tipo de atividade é justamente consistir em um trabalho sem ato, feito em um tempo indissociado das ações humanas. Por isso, este tipo de atividade econômica, característica dos tempos atuais, estipula uma nova dimensão humana do tempo, em que as ações presentes estão desvinculadas de suas conseqüências imediatas. Por outro lado, a especulação deposita valor temporal humano em um futuro ainda não vivido, mas que já está cheio de ações transcorridas em um tempo ainda inexistente. Assim, o futuro, carregado de responsabilidade, se torna urgente e algo precisa acontecer para compensar a disritmia. A narrativa é uma forma de ressincronizar o tempo ao presente. Sendo assim, a lógica do novo capitalismo flutuante insemina o discurso também com sua qualidade gratuita e disfuncional.
Em determinado momento, uma personagem menciona a perda da qualidade narrativa do dinheiro, o que faz pensarmos em como a relação humana com este objeto tão presente no romance, no mínimo desde o século XIX, e na mudança de sua função na estrutura romanesca. Em autores do tipo de Balzac, por exemplo, o dinheiro é o grande motor da ação e os conflitos e reviravoltas da narrativa transcorrem ao seu redor. Em Cosmópolis o dinheiro ainda é fundamental, mas não surge concatenado a uma série de ações. Muito pelo contrário. Pode aparecer em grande escala ou sumir em um Deus ex machina importando a sua lógica na sociedade atual para dentro da narrativa. DeLillo faz seus personagens mencionarem a afinidade entre movimentos do mercado e mundo natural (p. 87). Não podemos deixar de notar uma analogia imposta entre o mercado e este tipo de mundo ficcional, onde o supérfluo é o padrão de mesura e a existência dos objetos precedem sua função.


DELILLO, Don. Cosmópolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


Autor: Daniel Baz