quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Pataquada: As camisas floridas de George Clooney


Em “Os descendentes”, de Alexander Payne, acompanhamos a trajetória de Matt King, personagem vivido por George Clooney, lidando com uma série de situações ruins: morte da esposa, filhas problemáticas e malcriadas, amigos não muito fiéis, família não tão cortês. Na maior parte do filme, uma coleção de camisetas havaianas, bicolores, cheias de florais e outros símbolos adornam o corpo do ator. O recurso funciona. Por um lado, o vestuário complementa a narração em off do personagem no início do filme, que questiona a imagem paradisíaca do espaço havaiano. Se não estamos realmente no paraíso, sua atmosfera ainda assim se faz presente. Antes de ser irônica, a camisa é um artefato quase mítico, evocando as possibilidades de um tempo imemorial.
Além disso, os florais e tribais em duas cores marcam o caráter ambíguo das situações em que o protagonista se encontra. Na cena em que o ator olha ao lado das filhas e do amigo adolescente de uma delas a extensão de sua terra, o duplo cromático cinza-branco da camisa é expresso até mesmo pelos cabelos do ator, neste filme mais esbranquiçados do que costumamos ver. Sabemos então que tudo tem duas tonalidades, o que o roteiro tragicômico nunca deixa de explorar (vide a corrida cômica do ator após a revelação mais impactante do filme).
Mas não, não estou aqui para fetichisar o figurino do galã cinquentão. Quero usar o recurso simples do filme em paralelo com uma técnica milenar da literatura, que em muitas situações usou o vestuário das personagens em analogia com sua função narrativa, ou mesmo com sua dimensão interior. Lembro-me imediatamente de “O coração das trevas”, de Joseph Conrad, que traz um dos melhores exemplos que conheço sobre o assunto. Aqui, quando Marlowe está prestes a encontrar Kurtz, deve passar por um lugar fronteiriço, habitado por uma criatura emblemática descrita da seguinte forma:
 
Lembrava-me um arlequim. O seu fato fora talhado num tecido vulgar, talvez pano cru, mas estava todo coberto de garridos remendos azuis, vermelhos e amarelos -remendos nas costas, remendos à frente, remendos nos cotovelos, nos joelhos; à volta da blusa trazia um cinto colorido e no fundo das calças dobras escarlates; a luz do sol fazia-o alegre ao máximo e ao mesmo tempo maravilhosamente asseado, porque deixava perceber a cuidadosa aplicação daqueles remendos cosidos.

O personagem é o responsável pela mediação entre Marlowe e a realidade obscura de Kurtz. A roupa de remendos arlequinais é cromática e geometricamente a representação do mestiço. O ser ambíguo, sem caráter. Não à toa, é utilizada por Mário de Andrade na sua poesia como paradigma do homem múltiplo “sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”. A roupa aqui funciona como aquilo que os primeiros teóricos da “ciência literária” – os formalistas russos – chamaram de “máscara”, por intermédio de Tomachevski. Grosso modo: refere-se ao aparato concreto (como gestos e roupas) que constrói o personagem, funcionando análogos à sua conduta/psique. O narrador de Conrad, como a câmera e o roteiro de Payne, não precisa nos contar tudo, pois podemos ativamente entender a semântica da vestimenta. Vejam que Coppola, na adaptação ciematográfica do clássico inglês, Apocalypse Now, substitui a roupa por um conjunto de máquinas fotográficas, o que simula as múltiplas visões que o personagem tem e que podemos ter dele.
Assim também é nas chinelas de Conceição, em “Missa do galo”, de Machado de Assis, ou nas roupas transgressoras de Nina, personagem que desestrutura a família conservadora de “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso (num dos ápices da trama, por exemplo, o patriarca Demétrio ataca as roupas da cunhada). Os hipócritas no sexto fosso do inferno de Dante, com roupas brilhantes, mas que pesam como chumbo, ou a brancura das roupas dos seres no paraíso no canto XXIX, que mostram a importância alegórica que o vestuário pode atingir.  Pároclo, usando a vestimenta de Aquiles e pagando por ter provocado o paradoxo aparência-essência que o mata. Para terminar, Balzac, qualquer Balzac. E em muitos outros exemplos que não cabem numa seção de teor vinheteiro como esta.
Resta lembrar que o recurso pode ser radicalizado e virar o centro da obra. Como em “O capote”, de Gogol, “A manta do soldado”, de Lídia Jorge, ou em “O espelho”, conto de Machado de Assis. Textos em que a vestimenta é depositária dos conflitos do eu e motivação essencial das histórias. Mesmo o cinema tem um ancestral mudo de peso: “A última gargalhada” de Murnau, em que um porteiro velho, demitido, decide voltar para buscar seu antigo uniforme, símbolo do tempo-espaço perdido. Igualzinho as camisas de Clooney. Não ignore as roupas de seu personagem predileto. As aparências às vezes não enganam.


Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

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