domingo, 26 de agosto de 2012

O Pato Fáustico - O mapa e o território, de Michel Houellebecq

O polêmico Michel Houellebecq está no Pato Fáustico de hoje, em que analisaremos seu último romance, O mapa e o território. Mercado da arte, industrialização e esquartejamentos temperam a discussão. Aproveitem!!!


O novo romance de Michel Houellebeqc: mapa selado, território livre




“Avanço um pouco mais na floresta. Além da colina, diz o mapa, estão as fontes do Ardèche. Isso não me interessa mais. A paisagem é cada vez mais suave, agradável, alegre. Sinto dor no corpo. Estou no meio do abismo. Sinto o meu corpo como uma fronteira, e o mundo exterior como um esmagamento. A impressão de separação é total. Passo a ser prisioneiro de mim mesmo. A sublime fusão não acontecerá. A vida perdeu a finalidade. São duas horas da tarde.”
(de Extensão do domínio da luta)

Uma antiga crença conta que as narrativas são imitações de ações. A crença continua em voga, ainda que hoje ela deva levar em conta as inúmeras descontinuidades que fundamentam os modelos de representação. Em O Mapa e o território, de Michel Houellebecq, a realidade e o modelo que a apreende se conjugam no exercício de estilo que lhe rendeu o Goncourt em 2010.
A história acompanha a trajetória de Jed Martin, artista plástico com um percurso no mínimo interessante. Ele começa fotografando ferramentas para provar a tese de que “a história da humanidade podia em grande parte se confundir com a história do domínio dos metais” (p. 43); a seguir, fotografa os mapas dos guias Michelin, na exposição denominada “O MAPA É MAIS INTERESSANTE QUE O TERRITÓRIO”; por fim, pinta a óleo uma série de profissões (açougueiro, gerente de bar-tabacaria), produzindo pelo menos uma de suas obras-primas, chamada “Bill Gates e Steve Jobs discutem o futuro da informática”.
O percurso de Jed explora alguns dos tópicos fundamentais para o entendimento da composição do novo romance de Houellebecq. Na primeira empreitada do protagonista, estamos diante de um projeto conceitual, no qual a obra elabora um conceito de arte que prevê sua relação com o mundo que a cerca. No segundo projeto de Jed, complementar ao primeiro, entra-se no plano dos limites do estético, já que este pode estar em qualquer lugar. Contudo, “o qualquer lugar” de Houellebecq é muito específico. Jed está produzindo representações de representações e, justamente elas, começam a vender e popularizam seu trabalho. Estamos, portanto, diante da discussão da banalidade da arte, que sustenta gente como Damien Hirsch, representado em um de seus quadros mais adiante. Ironicamente, Jed empreende, com um dos guias Michelin, uma viagem com Olga (sua relação amorosa mais sólida em todo o livro) para conhecer a França real. Já no terceiro projeto, o artista plástico encerra seu percurso artístico, passando, assim, das representações pós-naturais, para o naturalismo do retrato.
É ao retratar a própria profissão, no quadro “Damien Hirst e Jeff Koons dividem entre si o mercado da arte”, que Jed pela primeira vez tem problemas criativos e, num impulso destrutivo, rasga o que havia feito. Logo após o ocorrido, seguindo uma sugestão de seu galerista, decide pedir a um grande escritor francês que prepare um texto para o catálogo de sua exposição. O escritor trata-se de - nada mais nada menos - que o próprio Michel Houellebecq. É certamente neste momento que todas as reflexões feitas acerca da arte no decorrer do livro, assim como a natureza sarcástica de sua obra, podem ser vista em comunhão.
Entretanto, antes de seguir esta intuição, é necessário explorar algumas características deste romance de Houellebecq. O narrador de O mapa e o território, em terceira pessoa, se assemelha com outros textos do autor. Trata-se de uma voz distanciada da matéria narrada, irônica, cínica, e produtora de um sarcasmo que vem marcando o tom de toda a produção de Houellebecq, desde o primeiro romance, ainda que este seja narrado em primeira pessoa. É comum que ele não hierarquize nada, chegando ao radicalismo de, em certas cenas, se distanciar do tema mais importante para enfatizar episódios laterais.
Isso ocorre, por exemplo, na terceira parte do romance. Na cena mais impactante da obra, o foco afasta-se da imagem central de um crime para falar das moscas que cercam o recinto: “Cada fêmea de Musca domestica é capaz de botar até quinhentos ovos, às vezes mil ovos. Esses ovos são brancos e medem cerca de 1,2 milímetro de comprimento. No fim de um único dia, as larvas os abandonam; elas vivem e se alimentam da matéria orgânica (geralmente morta e em vias de decomposição avançada, como um cadáver, detritos e excrementos)” (p. 257)
O cinismo do narrador, apesar de presente em muitos trechos da obra, obviamente atinge o ápice na retratação do próprio autor, que não economiza os irônicos epítetos como “o autor de Partículas elementares”, ou “o autor de Plataforma”, ainda que o próprio escritor se descreva da seguinte forma: “tenho micoses, infecções bacterianas, um eczema atípico generalizado, é uma verdadeira infecção, estou apodrecendo e ninguém dá a mínima, ninguém pode fazer nada por mim, fui vergonhosamente abandonado pela medicina, o que ME resta fazer? Me coçar, coçar sem parar, minha vida agora é isso: uma interminável sessão de coceira...” (p. 165).
Houellebecq trabalha melhor com personagens ideólogos que polemizam e defendem teses sobre assuntos específicos, o que só aumenta a estratificação da sociedade descrita em seus livros, já que todos detêm modelos particulares para explicar determinados fenômenos do mundo. Vale lembrar que o próprio Jed está alienado de relações afetivas duradouras, das quais as mais importantes são também as mais problemáticas, isto é, sua relação com o pai e com o romancista contratado. Durante o enredo, o narrador e o protagonista também não poupam opiniões sobre os mais diversos assuntos, mas mais uma vez é Houellebecq quem se destaca, como sua predileção por porcos (p.129), seu lamento pela extinção dos produtos manufaturados (p. 159), sua postura frente à literatura (p. 156-157), suas ideias sobre a distinção entre cães e pássaros (p. 241), e claro, sobre a arte. O autor não opina apenas a respeito da obra de Martin (p. 176), mas também equipara o método de Botticelli, Leonardo e Rembrandt ao de Koons e Hirst (p. 212), explicando que todos, de certa forma, terceirizaram a produção artística. São consideradas ainda, as opiniões de Jasselin, detetive que aparece na terceira parte, sobre a hierarquia da brigada militar (p. 267), e sobre a insignificância da economia (p. 310), para ficarmos em poucos exemplos. Sendo assim, a permanência dos diálogos socráticos no romance, algo que Schlegel já notara e que se popularizou com Bakhtin, mais uma vez se mostra uma dimensão fundamental para a compreensão do gênero. O trajeto dos homens está associado as ideias que eles emitem. A significação do romance é antes de mais nada um grupo d eimagens de ideias.
Entretanto, a estratégia do autor francês que mais causou polêmica foi o uso de verbetes da Wikipédia na confecção do romance, o que de fato está em sintonia com o todo da obra. No final do romance, o próprio autor-narrador, provocativo, agradece a enciclopédia virtual pela ajuda. O romancista põe em questão o valor da qualidade autoral para a arte, o que fortalece a escolha de Jeff Koons, retratado por Jed, visto que o pintor recebeu uma série de processos envolvendo direitos autorais desde a década de 80. A estética sempre permitiu vários graus de apropriação das coisas como elas se apresentam no mundo. Cubismo e dadaísmo que o digam. Porém, se a ideia de ver o banal como arte um dia foi estética, o foi pelo caráter inovador e contestatório. Isto é, a prática hoje em dia perdeu o impacto, ou seja, não mais permite a renovação da percepção ao investir em gatos feitos de flores e tubarões de dentes de ouro. Entretanto, no livro de Houellebecq a polêmica não tem fundamento, visto que, como numa colagem cubista, as informações usadas apenas complementam o todo estético da obra, convivendo com a realidade formal de seu todo constitutivo.
Pois bem, em determinado momento, Jed decide retratar Houellebecq e ao terminar o quadro, o oferece de presente ao escritor. Ao iniciar a terceira parte do romance, descobrimos que Houellebecq foi morto, esquartejado por alguém que roubou a caríssima pintura. A morte do autor é miserável, enterrado em um caixão de criança e batizado, após uma vida negando Deus. Esta imagem deve ser mediada com o final do protagonista. Este termina a vida filmando objetos industriais circundados por vegetais e isso simplifica o livro, evocando a epígrafe deste texto, o desfecho de seu primeiro romance, em que a natureza explicita a alienação do indivíduo. A máquina fotográfica de Jed - com padrões pré-concebidos para retratar o mundo (existe um modelo para se tirar fotografias de “bebês” ou “fogos de artifício”, por exemplo) é sintoma do maior terror dos personagens de Houellebeqc, perceber que os simulacros inventados até então não são suficientes para explicar o mundo, ou pior, que no mundo há algo além destes simulacros com os quais já estamos acostumados.
A cartografia e o desenvolvimento industrial, portanto, são complementares e há de fato uma série de conexões entre os espaços que deixam de ser abstrações para o homem contemporâneo e o desenvolvimento de uma nova consciência acerca do capitalismo, aquela que revela que, hoje, a modernidade não é mais exclusiva a determinados grupos. Por isso, a antinomia vegetação/capitalismo criada ao fim do livro, mais do que esboçar uma alternativa, serve para enfatizar o sentimento de perda inalienável do dualismo do homem (pós) moderno.
É nesta sociedade que a morte de Houellebecq se ergue como um símbolo. Numa sociedade em que - como já afirmou Fredric Jameson - a descontinuidade espaço-temporal rege a relação entre os homens, não há mais moldura histórica segura para interpretar a morte individual. Aqui o esquartejamento do autor discute justamente os modelos de apreensão de mundo que, mais do que contraditórios, investem numa série de antinomias inconciliáveis. A realidade com a presença de Houellebecq não é nada diferente daquela em que ele já morreu. Houellebeqc, ao imitar uma ação que nunca ocorreu, estabelece um modelo de conduta plausível e necessário. Como no final de seu primeiro livro (epígrafe deste texto) a vida não tem mais finalidade. Ao menos, não é mais autoridade isolada na forma como conhecemos o mundo e suas representações.

HOUELLEBEQC, Michel. O mapa e o território. Rio de Janeiro: Record, 2012.

Autor: Daniel Baz



domingo, 19 de agosto de 2012

O Pato Fáustico - Diomedes, de Lourenço Mutarelli

Neste Pato Fáustico analisamos um clássico dos quadrinhos nacionais: "Diomedes: a trilogia do acidente", de Lourenço Mutarelli. Mistério, aventura e arte num relançamento fundamental. Aproveitem!!!!!


A fantasia não é um acidente em Diomedes, de Lourenço Mutarelli




            Ler "A trilogia do acidente”, saga vivenciada pelo detetive Diomedes e criada pelo mestre dos quadrinhos nacionais, Lourenço Mutarelli, é uma experiência enigmática. O personagem em busca de desvendar um enigma acaba descobrindo a fugacidade de tudo, até mesmo das identidades, como nas melhores histórias de detetive. Por isso, são muitas as cenas que tematizam a problematização do eu, como aquela em que Judite, mulher do detetive tenta limpar a própria imagem de uma colher (p. 82). Ou o momento em que, ao errar tudo que deduzira sobre seu cliente, Diomedes o assiste revelando certas particularidades cruéis da sua própria existência, o que inverte os papéis tradicionais. Contudo, o trecho ainda mais intrigante revela-se só na última parte da trilogia, quando o detetive vai até o festival de quadrinhos em Amadora, Portugal, e transita pelos grandes heróis da mídia que o celebraram.
Se o exercício trata-se de uma grande dedicatória de Lourenço a todos os mestres e personagens que admira, o trecho também serve para mostrar o abismo entre seu (anti?)-herói e seus pares mais célebres. O espírito aventuresco de Hergé? Sim, mas com tiroteios e baixo calão. O espírito cômico de Aragonês? Sim, mas com Schopenhauer e Sartre. O espírito heróico de Stan Lee? Talvez, talvez. Diomedes está de perfil, os vingadores estão de frente e parecem que o atacam, mas só o detetive brasileiro se move. Este é o seu mundo. O ápice ocorre quando o herói, para melhor transitar pelo festival, se traveste de Pikachu, pondo o patético e o paródico em pé de igualdade e podendo, enfim, habitar o universo do qual proveio com mais naturalidade. Além disso, aqui a criatura encontra Zigmundo Muzzarela, o alter ego do criador, num esforço metalinguístico que denuncia os inúmeros níveis pelos quais estamos transitando.
Mas existem outros  conflitos vivenciados pelo detetive e não menos brilhantes são as estratégias boladas por Mutarelli para representá-las. Sua história está repleta de seres deslocados e são várias as soluções estéticas que imprimem na arte seqüencial esta sensação, como o doutor Gouveia, cuja postura impostada e o linguajar impecável não pertencem ao ambiente de Diomedes e, por causa disso, é angulado em quadros que lhe abordam de perfil ou de costas, em poses desengonçadas. Além disso, as palavras de Diomedes, por exemplo, saem do quadro em determinado momento (p. 62), demonstrando os problemas do herói em ser compreendido, além de sinalizar para aquilo que nos escapa e que só pode ser medido se lemos além do que está no quadro.
 E que dizer do pobre palhaço Chupetin? Mesmo falando de fenômenos sérios e complexos da existência, não consegue impedir seus ouvintes de gargalharem enquanto discursa (p. 34-35), num conflito entre sua aparência e aquilo que ele realmente é. Significativo, se notarmos que descobrir o que as aparências escondem será a missão de Diomedes até o fim de sua saga. Em certas cenas, enormes balões comprimem os personagens (p. 97), revelando a força do dito e dos atos de fala, que podem abarcar tudo e a todos, tornando o mundo mais perigoso. E que dizer da tocante cena final do capítulo “O grande circo” em que vemos Diomedes se declarar para a esposa Judite - que o trai – para depois contemplarmos uma página inteira em que, atrás do herói, está o grande circo e tudo aquilo que ele parece não perceber, ou seja, as múltiplas possibilidades de sua jornada (basta notar que alguns dos elementos são elencados isolados nos quadros anteriores).
Ler “A trilogia do acidente” pelo olhar da identidade, das aparências e das essências, é tentar entrar no cerne de sua questão. A busca do mágico Enigmo é em certa medida a procura da fantasia, como Diomedes, lúcido, revela em certo momento: “Eu achava que a magia era a lembrança ou o esquecimento. Eu pensava que a magia fosse a soma disso tudo.” (p. 399); e completa: “Para mim, no meu mundo a magia é como esse filósofo falou... Ela está sempre em outro lugar” (p. 401). O pobre Diomedes não percebe que seu percurso é muito mais mágico e encantador do que imagina, e que descobrir a fugacidade de tudo é justamente uma das justificativas de admitir também o que é etéreo. Como nas melhores histórias de detetive... Talvez como nas melhores histórias de qualquer tipo.


 MUTARELLI, Lourenço. Diomedes. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Autor: Daniel Baz



domingo, 12 de agosto de 2012

O Pato Fáustico - Festa no covil, Juan Pablo Villalobos

O Pato Fáustico de hoje lê Festa no covil, de Juan Pablo Villalobos. Confira a história de Tochtli, filho de um chefão do narcotráfico com um singelo desejo: ter um hipopótamo anão da Libéria. Aproveitem!!!!


Como concordar com o absurdo ou “Festa no covil”, de Juan Pablo Villalobos



Também os narcotraficantes mexicanos mais perigosos têm filhos, e até suas crianças começaram pequenas a desbravar uma realidade temperada de cabeças cortadas, codinomes caricatos, samurais e hipopótamos anões da Libéria. Pelo menos é assim em Festa no covil, primeiro romance de Juan Pablo Villalobos. A história é narrada pelo pequeno Tochtli, de oito anos, filho de Youcault, um poderoso chefe do narcotráfico. O menino, apesar da pouca idade, tem uma série de obsessões, como chapéus e os mencionados hipopótamos exóticos. De fato, o romance se divide em três partes para narrar, na primeira, a apresentação dos personagens e deste incomum objeto de desejo do menino, na segunda, a viagem realizada para buscar os animais e, na terceira, uma crise entre os personagens e a resolução da busca.
O romance começa com Tochtli demonstrando algumas das palavras difíceis que sabe: sórdido, nefasto, pulcro, patético, fulminante. (p. 9). Na lista já há pelo menos duas constantes que definirão a obra. Primeiramente, demonstra a linguagem natural e constatativa, típica de dicionário, ainda que utilizada ao narrar situações nada naturais.  A segunda constante, deriva da sensação de não pertencimento, que, se começa com uma linguagem natural para falar de situações inusitadas, dilui-se por todos os demais aspectos do texto.
Além disso, estas palavras serão muitas vezes usadas fora do lugar apropriado, como logo na primeira página, quando Tochtli diz que sua memória é “fulminante”. Dificuldade em apreender o mundo pelas palavras que, ao fazer emergir sentidos deslocados de seu uso, denotam a posição também deslocada do herói no mundo. Ainda quanto a sua linguagem, um dos principais procedimentos utilizados pelo escritor são as construções paratáticas, isto é, sem conectores que liguem uma frase à outra. Sendo assim, cada período é uma realidade particular e à parte na obra. Tratam-se de gestos autônomos que não se conectam no plano da expressão. Este uso erradica da linguagem as relações de casualidade entre as frases, o que aumenta os sentidos possíveis e subverte o tema da hereditariedade, central durante todo o livro. O trabalho interpretativo também é mais enfatizado, pois as lacunas são muito mais substanciais, o que ajuda a representar a natureza fragmentária da forma como o menino compreende o mundo. Ao privar a linguagem das estruturas conectoras, o autor realça sua inconseqüência, sua gratuidade, e explora o caráter gratuito e alógico também da realidade, ao privá-la dos procedimentos lógicos de construção.
Outro recurso particular presente na linguagem do menino são as estruturas de generalização, seguidas de particularização. Estas são da mesma natureza do fenômeno anterior, afinal, unem duas realidades, uma macro e outra micro, num jogo de idas e vindas que representam a situação narrativa. A saber: um contexto amplo e complexo visto pelos olhos de um indivíduo muito peculiar. Alguns dos exemplos são:

“E não é só esse filme que sei de cor, sei muitos outros, quatro.” (p. 12)
“É por isso que conheço poucas pessoas, treze ou catorze.”(p. 15)
“Eu tenho muitos chapelões de charro, seis. (p. 30)

As passagens que unem tudo que foi dito até aqui são intensas, como no seguinte monólogo muito esclarecedor de Tochtli: “Na verdade existem muitos jeitos de fazer cadáveres, mas os mais usados são com os orifícios. Os orifícios são buracos que você faz nas pessoas para o sangue vazar. As balas de revólver fazem orifícios. Os orifícios são buracos que você faz nas pessoas para o sangue vazar. As balas de revólver fazem orifícios e as facas também podem fazer orifícios. Se o seu sangue vaza, chega uma hora que o coração ou fígado param de funcionar. Ou o cérebro também morre. E você morre.”(p.16)
Neste ponto, o único uso de conexão textual é dado pela coordenação (procedimento que mantém as frases em autonomia), ou pelo link condicional “se”, que serve como um conector interno e não entre frases. Contudo, apesar da sintaxe frouxa, a obra não se furta a produzir analogias que auxiliem a interpretação, como metáforas muito bem utilizadas, das quais se destaca aquela que utiliza os animais que estão presos na casa de Youcault, como tigres e leões. Eles simbolizam a ferocidade latente do lugar, além de também representarem elementos que não deviam estar ali, seres deslocados, fora de seu habitát natural, como o garoto.
Falamos antes da relação entre microcosmos e macrocosmos que se conjugam durante todo o texto. Uma das mais fortes refere-se a uma ideia de nação que pode ser construída a partir do livro. As próprias contradições pelas quais passam o garoto podem ser traduzidas como sintomas do terceiro mundo, como fica claro em: “Parece que a Libéria é um país nefasto. O México também é um país nefasto. É um país tão nefasto que você não pode conseguir um hipopótamo anão da Libéria. O nome disso na verdade é ser de terceiro mundo.”
Resta ao fim, um mundo invertido, ás avessas, que perdeu as referências compartilhadas pelo consenso, ainda que construído por uma lógica clara e objetiva. “A vantagem da beira da extinção é que ainda não é a extinção” (p. 52), diz Tochtli em certo momento. Com frases equilibradas como essa, Villalobos nos ensina o difícil, mas necessário exercício de concordar com o absurdo.


VILLALOBOS, Juan Pablo. Festa no covil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Autor: Daniel Baz




sábado, 4 de agosto de 2012

O Pato Fáustico - Ar de Dylan, de Enrique Vila-Matas

No programa de hoje lemos Ar de Dylan, de Enrique Vila-Matas. Livro que consagrou o escritor espanhol de uma vez por todas em sua terra natal. Confira esta obra que sintetiza o trajeto de um dos autores mais destacados dos últimos tempos!!


A sociedade nada secreta de Enrique Vila-Matas



Vila-Matas é um obsessivo. Um monomaníaco. Nutre uma devoção doentia pelos duplos, pelas estruturas em abismo, pelas coincidências, pelas sociedades secretas e, é claro, pelo seu habitat mais natural – a ficção. Quem conhece sua obra, sabe que pode esperar um universo infinito de espelhamentos, de citações, o que o destaca no contexto contemporâneo da hipertextualidade. Afinal, foi ele quem idealizou o “mal de Montano”, que caracteriza alguém obcecado por livros, foi ele quem criou os shandys, obcecados por literatura portátil, é de sua imaginação que surgiram os “bartlebys” modernos, sescritores que simplesmente preferem não fazer seu trabalho. Contudo, mais do que unicamente se preocupar com a demonstração da multiplicidade dos caminhos em tempos atuais, o escritor espanhol parece obcecado com uma constatação muito mais perturbadora, todos eles já foram percorridos.
Apesar disso, no seu novo romance Ar de Dylan, Vila-Matas explora, mesclando inteligência e pedantismo (talvez consciente/intencional), novos prismas de seus velhos problemas. O romance começa quando o narrador, em primeira pessoa, recebe um convite para participar de uma conferência cujo tema é o fracasso. Sim, mais uma vez a narrativa tematizará o insucesso, como é comum em outras obras do escritor. Na tal conferência, o narrador conhece Vilnius Lancastre, filho do escritor Juan Lancastre. O jovem, que possui uma intrigante aparência similar a de Bob Dylan, é obcecado pelo fracasso e, após bater a cabeça, herda a memória do pai, que passa a assombrá-lo como Laertes o fez com Hamlet. O restante do livro irá se desenrolar a partir da relação entre o narrador, Vilnius, Débora, amante do falecido pai de Vilnius, e sua mãe malévola, Laura Verás.
A narração em primeira pessoa vem encaixada com outros trechos que dominam a narrativa e são narrados também na primeira pessoa, mas de Vilnius. Uma escolha que separa o texto em camadas, combinando um repertório repleto de níveis diegéticos. Neste aspecto, o intertexto continua parte fundamental do sentido das obras de Vila-Matas. As citações explícitas e implícitas servem para sinalizar para fora das fronteiras da fábula, induzindo o leitor em discrepantes zonas textuais que aliam Shakespeare, Kafka, o cinema dos irmãos Cohen, Knut Hamsun, e, claro, Bob Dylan.
O aspecto intertextual da composição dos textos de Vila-Matas, ao lado do encaixe narrativo, é uma de suas tantas formas de desconvencionalizar os limites da ficção, ao enfatizar a artificialidade dos contornos dos muitos textos que se interpenetram, pondo em relevo sua característica montável. Principalmente pelo fato de que, tanto a vida das personagens, quanto a ficção (neste texto, geralmente na forma do teatro, que intitula três dos quatro capítulos nomeados do livro) são submetidas à mesma entonação narrativa. O drama de Vilnius, por exemplo, no seu conflito com o pai, é a microtrama que introduz o problema da filiação, esboçada também nas relações intertextuais. Da mesma forma, Bob Dylan, mais do que ser o homem de múltiplas faces, símbolo dos tempos atuais, é também um exemplo de alguém que aprendeu a romper com suas influências, no famoso episódio de sua desfiliação com o folk.
Dessa forma, sua vida permite que se qualifique uma ficção de múltiplas personalidades (Ar de Dylan mistura mistério, melodrama, ensaio, aventura), além de esboçar o conflito da “angústia da influência”, como tratada por Harold Bloom. Este sendo um dos tópicos mais recorrentes na obra do escritor espanhol. A história da literatura para Vila-Matas é um combate entre filhos desgarrados tentando livrar-se das influências dos pais, que lhes assombram com sua memória e experiência. As relações não respeitam a cronologia da história literária. Como no sistema descrito por TS Elliot, em “Tradição e talento individual”, a literatura é um grande complexo sincrônico em que Bob Dylan pode influenciar Kafka (p. 303), por exemplo.
Além das referências à história literária, Vila-Matas notabilizou-se por mesclar literatura e ensaística em seus textos, o que pode ser visto principalmente em Bartleby e Companhia e em História abreviada da literatura portátil.  Em Ar de Dylan, isto também está presente, ainda que de forma mais atenuada. Entretanto, digna de certo relevo é a presença de espaços acadêmicos na trama e sua potencialidade de tornarem-se palco de histórias que mereçam ser narradas. Ao desenrolar sua trama em conferências, palestras e outros espaços habitados pelos críticos literários, Vila-Matas consegue garantir a verossimilhança do tom ensaístico de certas passagens.
Por fim, é preciso mencionar a criação de sociedades secretas por parte dos personagens do romance, outra obsessão de Vila-Matas, que também retorna com força aqui. Neste caso, os protagonistas fundam a conjura dos "infraleves", grupo que tem o objetivo de produzir uma ideia por dia, mas esquecê-la logo após tê-la comunicado. A ideia de grupos com certas afinidades que se deslocam da totalidade social para oferecer uma imagem dela, vem complementar a imagem do texto parasitário que vive de si. O mundo é um conjunto de complexos textuais e humanos que se interpenetram e que convivem com a impossibilidade da literatura e da realidade total. Num cenário desta natureza, o autor confia nos pequenos núcleos, fragmentos da sociedade, que, unidos por crenças que lhes unificam, formam pequenas totalidades. Estes grupos dedicam suas vidas aos textos. Esta parece ser uma imagem símbolo desta sociedade nada secreta que Vila-Matas inventou, composta por aqueles que não podem optar entre vida e literatura, pois não saberiam dizer onde termina uma e começa a outra.

VILA-MATAS, Enrique. Ar de Dylan. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Autor: Daniel Baz