segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O Pato Fáustico - Serena, de Ian McEwan



No Pato Fáustico de hoje, investigamos o que há por trás de Serena, novo romance do escritor britânico Ian McEwan. Uma mistura perfeita entre espionagem, amor e metalinguagem. Aproveitem!!!





O romance esconde, o romancista esconde, o voyeur delira





Um espião é um bom observador. Carrega identidades moventes e um arcabouço inumerável de segredos. Um espião transita por, pelo menos, dois níveis distintos da realidade e deve impor a autenticidade de ambos, mesmo que um deles (ou os dois) seja ficção. Um espião é um mestre na criação de novas vidas. Um escritor também. Desta associação óbvia, se não fosse incomum, surge o estofo de Serena, novo romance de Ian McEwan.
Após começar uma relação amorosa com um homem mais velho e casado, Serena Frome é indicada por ele a ingressar no MI5, o serviço de inteligência britânico, nos anos “frios” da década de 70. A partir daí, acompanhamos as desventuras da jovem, que incluem o fim da sua relação com Tony Canning (o tal homem citado), o início da sua relação com o colega de MI5, Max e, principalmente, a tarefa delegada a ela de contratar o escritor Tom Haley, dentro da iniciativa Tentação (Sweet tooth, no original, expressão que dá nome ao romance). O escritor será pago para publicar obras cuja orientação estejam afinadas com a do serviço de inteligência em troca de estabilidade financeira. Serena não pode permitir que Tom, por quem logo se apaixona, tenha noção da origem do dinheiro e descubra seu real emprego, o que inicia o jogo de esconde-esconde, responsável pela complexidade e beleza do livro.
O romance é narrado em primeira pessoa por Serena. Seu lugar discursivo situa-se muito depois dos acontecimentos relatados, o que faz da trama um longo flashback. A autoridade narrativa da protagonista lhe garante total controle sobre a ordem e seleção dos fatos, o que justifica uma série de sínteses feitas logo no início da história. “Nada de estranho ou terrível aconteceu comigo durante os meus primeiros dezoito anos e é por isso que eu vou pular esse período.” (p. 8), diz a narradora já nas cenas iniciais, para em seguida decretar uma segunda justificativa: “Se eu passei correndo pela minha infância e adolescência, então certamente vou condensar o meu tempo de aluna de graduação.” (p. 12)
A relação de Serena com o escritor Tom Haley é marcada pela sua postura de leitora muito particular. A heroína diz em certa ocasião que “Acreditava que os escritores eram pagos para fingir, e deveriam usar o mundo real onde coubesse, aquele que nós todos compartilhávamos, para dar plausibilidade ao que inventam. Então, nada de palavrório chique sobre os limites da arte, nada de demonstrar deslealdade para com o leitor ao parecer cruzar e recruzar sob algum disfarce as fronteiras do imaginário.” (p. 85). Sendo assim, Serena se posiciona na contramão das novas correntes da literatura metanarrativa e de artifícios distanciadores que ressaltam o caráter ficcional da matéria literária. Somos levados a considerar a comunhão entre a preferência de Serena e o texto de McEwan, que também se constrói de forma límpida, clara e garante qualidade estética pelo esforço realista da organização fabular.
Mas não poderíamos estar mais enganados... No último capítulo do livro, Serena, após uma série de idas e vindas da trama, encontra uma carta de Haley em que ele revela que já sabia de toda a situação em que estavam envolvidos e que decidira escrever um romance sobre ela. O escritor diz também que ainda a ama e que, se o sentimento for recíproco, ela deve publicar o livro. Sim, a obra que você tem em mãos foi escrita por Haley, cuja decisão de mimetizar a amada, tentando conhecê-la, age de forma retroativa no texto, ressignificando tudo que havia sido lido anteriormente. Já a primeira frase do romance atesta isso, ao ressaltar a forma como a heroína quer que se pronuncie seu nome (“Frum”). Ora, isso por um lado revela a dupla face (sujeito/objeto narrativo) que a personagem representa, mas por outro, demonstra já a representação de Haley agindo sobre a identidade da protagonista, visto que a correção na pronúncia do sobrenome faz parte do diálogo do primeiro encontro entre os dois.
Além disso, no início do romance são muitas as situações em que Serena se vê em situações que não sabe como reagir, ou não sabe o que dizer (p. 103). O que parecia antes ser imaturidade ou falta de discernimento da jovem adentrando o mundo da política internacional e aprendendo a experimentar novos sentimentos, passa também a significar a inabilidade do narrador em busca de sua personagem. É irônico que Serena, na segunda metade do livro, tenha influenciado contos de Haley e até mesmo reescrito um deles - usando de seus conhecimentos matemáticos (p. 256). A protagonista tentara também interpretar o homem por detrás dos textos, ou seja, conhecer o amante por intermédio de sua obra, numa relação determinista que a própria estrutura do livro desfaz.  Mesmo os esforços empreendidos por ela em interpretar os personagens de Haley são inúteis, pois Serena está na mesma categoria que eles, ou seja, todos frutos da criatividade do escritor. Além disso, os trechos resumidos do início do livro passam a significar, ao invés de autoridade narrativa de Serena, a submissão da relevância dos acontecimenso da vida da heroína, a partir da capacidade de compreensão de seu autor/amante.
Sendo assim, Haley é um eu intercalado entre McEwan e o espaço diegético, um engenho técnico presente na literatura desde Don Quixote, quando, no capítulo nove, o historiador muçulmano Cide Hamete Benengeli surge como aquele que teria escrito boa parte do livro. O artifício evoca também as histórias de Chaucer e Bocaccio, em que narradores interpostos assumem a autoria das informações que compõe o nível principal da história. Contudo, as semelhanças com Quixote não terminam por aí. Serena, como o fidalgo alucinado, também enfrenta a forma literária que a circunscreve. A lógica formal do livro é oposta à sua maneira de ver a ficção e vai contra o uso que dela ela faz. Em muitos momentos, inclusive, Serena assume dizer saber coisas que na realidade não sabe - e Max chega a criticá-la por isso, mencionando que tal comportamento pode ser sua perdição (p. 163). Cria-se assim uma larga distância de tipo lucaksiano entre a consciência do herói e o mundo que lhe cerca.
O jogo de esconde-esconde encontra sua síntese na imagem final do livro, que resume tudo a uma grande história de amor. Haley (narrador) diz a Serena que ela publique o romance apenas se aceitar continuar a história amorosa entre os dois, o que o classificaria o trabalho de “obra conjunta”. Assim, terminar o livro é não apenas um ato de recepção, mas um ato de ação. Somos nós, ao acabarmos a história, que permitimos que os conflitos sejam resolvidos e que a obra, portanto, adquira sua verdadeira face. Dos espiões, o mais poderoso é o leitor, voyeur ditatorial, sob as ordens do próprio prazer.

MCWEAN, Ian. Serena. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.



 Autor: Daniel Baz

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O Pato Fáustico-Formas do nada (Paulo Henriques Britto) e Neonomicon (Alan Moore e Jacen Burrows)

O Pato Fáustico volta a falar de poesia com uma  obra recente: "As formas do nada", de Paulo Henriques Britto. Fechando o programa, falamos da volta de Alan Moore aos quadrinhos, na história de terror, "Neonomicon", que faz referências ao universo aterrorizante de H. P. Lovecraft. Lirismo e loucura na medida certa para vocês!


Consolo metalingüístico, poética azarenta



Paulo Henriques Britto, no seu último e excelente livro de poemas, se arriscando na metalinguagem:

Poética prática

A realidade é um calhamaço insuportável?
Tragam-me então resumos.
A vida que se leva é um filme inassistível?
Vejamos só os anúncios.

São os limites do corpo intrusões malignas
de um demiurgo escroto?
O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso:
eu não é um nem outro.

Anda inconveniente a tal da poesia,
a significar?
Nada como um bom significante vazio
para abolir o azar.

(BRITTO, 2012, p. 18)

O eco final do poema guia, inevitavelmente, o primeiro esforço do intérprete. Mallarmé e seu “Um coup de dés”, poema-constelação em que, entre outras coisas, os limites semânticos do verso extrapolam os contornos da palavra e afetam a disposição do léxico na página, o uso do signo branco – vazio – da folha de papel. A frase-eixo do poeta francês, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” pontua um experiência técnica em que o uso preciso de todos os níveis da materialidade da obra literária procura fundar um lirismo consciente de todos os seus horizontes, onde nada pode ser aleatório. Nem mesmo o suporte deve sugerir ingenuidade/aleatoriedade. Entretanto, a ênfase no aspecto verbal, ilumina uma série de áreas significantes e possibilidades expressivas que passam a comportar múltiplas alternativas de sentido, o que promove uma maleabilidade semântica livre o suficiente para incorporar a imprevisibilidade de seu uso. Quem levanta a mão e diz o sentido preciso de “The waste land”?
Guardando essas informações em mente, é necessário pensar que a discussão do eu-lírico em “Poética prática” começa pela indagação da natureza do real, logo no primeiro verso. Contrariando as expectativas, a complexa dubitação, que poderia render um livro inteiro, é logo seguida de solução apropriada. Esta sinaliza para uma forma alternativa de se apreender um mundo amplo demais para o sujeito. Assim, uma consciência se expressa na tensão de perceber e criar molduras de apreensão do real, o que poderia nos lançar a uma discussão fenomenológica. Entretanto, parece ser mais eficaz interpretar o poema ainda pela manifestação mais óbvia de sua produção, a dicotomia expressa no título “Poética/prática”, que tenta harmonizar o Poiein (fazer-criar), isto é, a natureza da criação e da feitura do texto, com a prática, com o processo, uso e difusão do produto lírico. O conceito de poesia elaborado é, portanto, gêmeo da concretude da própria expressão.
Para entender esta última, o primeiro passo é refletir acerca da rítmica e métrica, dimensão essencial de qualquer teoria do verso. As perguntas, no poema de Brito, são feitas em dodecassílabos,  alguns atingidos por intermédio de muitas junções na leitura (a união de “de-é-um”, lidos como uma única sílaba, no primeiro verso é ilustrativa disso); já as respostas são menores, logo, mais rápidas. Servem para diminuir a dubitação metafísica a partir de versos com a metade da duração (seis sílabas) dos anteriores. A tensão da dúvida, mais extensa, é transposta para a musicalidade harmônica do ritmo na resposta. Talvez por isso, o primeiro verso da segunda estrofe já se organize em doze sílabas, de forma muito mais natural. Afinal, é também nela que se admite a presença fundamental do eu textualizado.
A segunda estrofe é, por isso, a mais obscura de todo o poema. Conceptista, num jogo de idéias que enfatiza seu aspecto logopéico, é nela que se define o sujeito, a partir da definição da poesia. Sendo assim, o processo de descoberta de um, revela o outro. Isso já está manifesto no último verso do primeiro poema do livro - “e todo consolo é metalingüístico”- onde já se anunciara a tônica de uma obra preocupada com a utilidade e motivação da poesia, ainda que estes tenham um efeito tautológico. O texto que precede a “Poética/prática” - na realidade um conjunto de poemas, unificados pelo título “Oficina” - começa questionando a necessidade da autoexpressão para terminar questionando a precisão do vocabulário utilizado, num exercício de justa preocupação com a importância da poesia no mundo.
Assim, quando o eu-lírico fala de si, está naturalmente falando também da poesia: “O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso: eu não é um nem outro”. As duas primeiras orações não apenas se referem a dois conteúdos antagônicos, como sua organização sintática revela a dualidade presente no poema. Sua lógica interna é oposta,  uma vez que, segundo outro poema, qualquer “pensamento pensado/ até a total exaustão/ termina no mesmo exato lugar/ sua exata negação.” (p. 42). Em “Poética prática”, contudo, uma das ideias aposta na negatividade do dado negado, enquanto a outra investe na positividade do dado expresso. Os dois extremos denunciam uma reflexão polarizada, cujo mote é revelado no final do poema, em que a significação é, ironicamente, vista como inconveniência. Ironicamente, pois, mesmo o paradoxal/redundante trecho antes analisado, é extremamente preciso no plano de seu ritmo. “O corpo não é preciso, e o espírito impreciso”. O que parece ser um desengonçado verso de quinze sílabas é lido, ritmicamente, como a junção de duas redondilhas maiores. O andamento popular evoca familiaridade na epifania do ser, ou seja, na indefinição do lugar do eu, afinal, os limites indefiníveis do sujeito são a tônica da linguagem metapoética, da também indefinida arte poética.
“É tudo que me resta do começo disso que agora pensa, fala e sente que pode ser denominado 'eu'” (p. 29), diz o autor em outra obra, e fica mais fácil entender como a precisão que não se encontra nem no corpo, nem no espírito, pode ser atingida na métrica, numa síntese dos dois lirismos “inspirado” e “construtivo”, que João Cabral já anunciara como componentes da lírica. Por causa disso, as correspondências sonoras, terreno firme para um padrão conceitual abstrato, adquirem uma importância muito maior. Ecos sonoros como “inassistível” “insuportável”, “escroto”, “outro”, “poesia” “vazio” são escolhas precisas, manifesto do legítimo versus, o qual exige que se guarde as informações anteriores e se retorne aos sons e ritmos já usados para construir o todo da significação. Estes atingem seu ápice na rima franca final “significar” “azar”, que acerta ao dar relevância fônica ao campo semântico “abolir o azar-acaso”, já que o cerne da poética e de sua prática recai justamente no caráter construtivo e, ao mesmo tempo, gratuito que pode envolver a poética e prática da poesia.
O momento em que o eu-lírico menciona diretamente seu ofício, o faz mencionando “a tal da poesia”. Portanto, a “poesia” surge como complemento nominal de uma estrutura tipicamente oral, vulgar (“tal da”). Num jogo de espelhos deformados, ela complementa sintaticamente uma função da língua que geralmente é associada ao seu oposto. O que nos leva a outro grande debate do lirismo moderno e após ele, o lugar de comunicantes unilaterais, de expressões sem complexidade conotativa, na poesia. A comunicação, que, na prática e na crítica da poesia, não raras vezes é admitida unicamente como ironia (mais uma vez remetendo à Mallarmé), está também no ótimo texto “Um pouco de Strauss”:

UM POUCO DE STRAUSS

Não escreva versos íntimos, sinceros,
como quem mete o dedo no nariz.
Lá dentro não há nada que compense
todo esse trabalho de perfuratriz,
só muco e lero-lero.

Não faça poesias melodiosas
e frágeis como essas caixinhas de música
que tocam a “Valsa do Imperador”.
É sempre a mesma lenga-lenga estúpida,
sentimental, melosa.

Esquece o eu, esse negócio escroto
e pegajoso, esse mal sem remédio
que suga tudo e não dá nada em troca
além de solidão e tédio:
escreve pros outros.

Mas se de tudo que há no vasto mundo
só gostas mesmo é dessa coisa falsa
que se disfarça fingindo se expressar,
então enfia o dedo no nariz, bem fundo,
e escreve, escreve até estourar. E tome valsa.

Além de semelhanças que denunciam um repertório semi-inconsciente de artifícios (“escroto” novamente ecoa em “outro”), o poema discute o mesmo problema de “Poética prática” por outro prisma. Quanto mais hermético, mais individual é o texto. Michel Hamburger é um dos teóricos que, refutando as idéias principais de clássicos como Estrutura da lírica moderna, de Hugo Friedrich, demonstram como, mesmo na grande poesia simbolista/modernista, começando por Baudelaire, há grande preocupação com o aspecto comunicacional do lirismo. Uma linguagem rebuscada nada mais é do que a ênfase em uma consciência humana particular. O trabalho extremo com a linguagem é atestado de uma voz que quer ser ouvida. Um poema deste tipo pode não ter utilidade imediata (o que produz a tropologia da negação deste segundo poema), mas não deixa de ser uma dimensão essencialmente social do homem.
O “eu” mais uma vez está carregado de negatividade e positividade, pois à união de ambos cabe dar forma ao nada. Realmente, todo o livro de Paulo Henriques Britto investe na retomada de ritmos metrificados, versos rimados e acentos precisos como um manifesto a favor do diálogo a partir do uso consciente da técnica. O verso se afirma ainda que aborde o vazio. Num dos poemas em que o eu-lírico tenta se definir, por exemplo, tem-se o seguinte resultado:

ECCE HOMO

Não ser quem não ser é é coisa trabalhosa.
Exige a disciplina austera e rigorosa.

de quem, achando pouco simplesmente ser,
Requer o luxo adicional de parecer.

As essências enganam, e o eu é tão escasso
que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço,

e nada como a negação da negação
para efetuar ta delicada operação

e pronto: está completo. O homem mais o andróide,
Imune a suave mari magno e Schadenfeude,

Ser e não ser na mais perfeita sintonia.
Use e abuse. A coisa vem com garantia.

O “ocupar com alguma coisa tanto espaço” complementa o “consolo metalingüístico” de “Poética prática”. Comunicar é um risco? Não ser ouvido também? Basta investir no verbo artificioso, motivado, polivalente. Basta uma tentativa e o azar, muito azar.



BRITTO, Paulo Henriques. As formas do nada. Companhia das Letras, 2012.

Autor: Daniel Baz

O código binário do terror



 Toda grande obra de terror investe na dualidade, pois o que assusta mais é aquilo que não pode ser resumido unilateralmente, ou seja, o que não pode ser completamente compreendido. O caráter dual do terror/suspense está na dupla personalidade de herói e heroína em “Vertigo” ou no negro da silhueta contra o branco do espaço em “O mensageiro do diabo”. Está no moralismo sexagenário do sanguinário Jason, e fatalmente na consciência melódica que John Williams deu ao semi-invisível tubarão de Spielberg. Os dois acordes - ritmo binário que materializa a dualidade - equivalem à dupla face do medo, tã dã tã dã tã dã, bem, mal, certo, errado, morto, vivo. Ah, Alan Moore, mais uma vez tu já o sabias!


Seu novo trabalho, o quadrinho de terror Neonomicon, investe nesta mesma abordagem durante toda a primeira história, aquela que estabelece o tom de toda a trama sequencial. Nela, o agente do FBI Aldo Sax decide investigar uma série de crimes cometidos por diferentes pessoas, mas que seguem o mesmo padrão. Logo, o sujeito estará envolvido numa trama que envolve letras enigmáticas de rock, seitas secretas e seres sobrenaturais, todos remetendo a obra de H. P. Lovecraft.
 A dupla face do mundo, que esconde literalmente no seu subterrâneo um universo que lhe subverte está expresso no ritmo binário da história de sax. Adequado para um percurso polarizado, de alguém que passa de um lado do espectro social para o outro - de investigador para investigado. Como em qualquer história de suspense bem contada em quadrinhos, Alan Moore e Jacen Burrows (o infame desenhista) deixam que o ato de virar a página se torne o verdadeiro compasso da história. Isso permite que nos acostumemos com um padrão rítmico, ainda que nada saibamos do conteúdo enigmático do enredo, e essa familiaridade com algo ainda desconhecido rende a maior parte da tensão produzida nesta primeira história. O final desta etapa investe na ênfase das transições, um dos pontos mais abordados pelo próprio Moore quando escreve sobre quadrinhos. Uma sucessão de quadros idênticos, em que o protagonista não muda de posição (mesma posição do quadrinho que começa a história). A força da transformação recai justamente no espaço da sarjeta, entre um quadro e outro. É ele que atesta (aliado logicamente ao texto) a transformação do sujeito no seu duplo. Fim do binarismo.
O restante da história se centra em dois agentes do FBI que, após Sax ter se tornado também um assassino, passam a investigar o tal culto a Lovecraft. Lovecraft mais do que sustentar a obra com sua mitologia de seres e línguas ancestrais, rende também um contexto extra-icônico de referências fluídas, o que aumenta a expectativa, pois denuncia a insuficiência de nossa iconografia para entender o mundo diegético. Os autores brincam com isso ao, na cena mais impactante e polêmica da história (em que uma orgia ocorre), acompanharmos a visão de uma agente míope e que acaba de perder os óculos, o que torna tudo opaco e indefinível (indefinição em sintonia com trecho de “O chamado de Cthulhu” em que o narrador não consegue definir uma das criaturas e atesta o tratamento impressionista dado a ela, ou seja, com contornos indistintos e forma indefinida). O próprio conceito de ancestralidade é alterado nesta história, pois se descobre que os monstros são seres do futuro. Vale mencionar que esta ideia está latente já em “O chamado de Cthulhu”, quando o narrador compara as estruturas da cidade das criaturas com as descrições dos artistas futuristas.
Neste ponto, a leitura da história mais uma vez sofre um impacto. Se lemos toda a primeira parte seguindo os quadros da esquerda para a direita, agora temos que lê-los de cima para baixo. Se o espaço do quadrinho era, por sua vez, inspecionado verticalmente, na segunda parte, fazemos isso horizontalmente. A inversão técnica acompanha claramente uma inversão de tom, mas este não é o único efeito. A partir da segunda história a temporalidade dos quadros, incorporada horizontalmente, permite uma série de experiências, como entender as tediosas conversas entre os dois agentes no quarto, enquanto se vestem, o que cria um contraste impactante com a violência que vem depois. Esta, como envolve muitos personagens aproveita a largura dos quadros para explorar simultaneamente o desespero da vítima e a alegria de seus algozes. Da mesma forma, os quadros verticais da primeira história confinam o protagonista em um mundo estreito (após usar a droga, o plano se abre), mas que permite vários níveis intercalados, o “sub” e o “sobre” servem ao mesmo ato contemplativo (algo visível em cenas como da página 24 e 52).
Apesar da fala de personalidade dos desenhos de Burrows, o quadrinho tem algumas boas soluções. Uma delas refere-se ao momento em que a personagem acima citada tem que lidar com uma criatura além de sua compreensão. Aqui, a dobra da parede (formando um “l”) separa os dois seres, mas também as enquadra em dois contextos distintos, como se fossem quadros autônomos. Isto marca o momento em que a agente tenta se comunicar com a criatura e um item diegético (dobra da parede), ao poder ser lido como metadiegético (sarjeta), revela a distinção entre o universo do compreensível e daquele além de nossas molduras conceituais.
A história ainda envolve perversão sexual, se valendo da assexuada figura de Lovecraft, mas a grande ideia é mesmo a que esta no início da obra. Quem não leu, ainda dá tempo de deixar o texto aqui, pois irei revelá-la: A droga que faz as pessoas mudarem seu comportamento trata-se na realidade de uma nova língua. Sim, aquela presente nas obras do contista norte-americano. A emergência de uma língua dentro do homem provoca uma revolução na sua personalidade. As novas associações semânticas, fônicas e sintáticas disponíveis lhe permitem atingir um novo estatuto existencial, ligado a algo que a realidade ainda está para se tornar. “Só a poesia ou a loucura poderiam fazer justiça aos clamores ouvidos pelos homens de Legrasse enquanto abriam caminho através do negro lodaçal em direção ao fulgor rubro e ao som dos tamborins”, diz o narrador de “O chamado de Cthulhu”. Como alguém que aprendeu a lição, Alan Moore empresta à linguagem a base de novas formas de percepção. Lírico e louco. A última dualidade do terror de Neonomicon. O derradeiro binarismo da cosmovisão de Lovecraft + Moore.

Autor: Daniel Baz