quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O Pato Fáustico - Nihonjin, de Oskar Nakasato e Monstros!, de Gustavo Duarte

O Pato Fáustico de hoje migra ao imaginário japonês em duas obras: "Nihonjin", de Oskar Nakasato (melhor romance brasileiro de 2012 - Jabuti) e "Monstros!", de Gustavo Duarte. Aproveitem!!!!


Nihonjin e a tradição da dissolução




Nihonjin, livro do paranaense Oscar Nakasato, foi rejeitado pelas doze maiores editoras do Brasil antes de ser publicado pela Editora Benvirá e de ter vencido o prêmio Jabuti de melhor romance em 2012. Não é difícil, apesar da premiada trajetória que o livro está desenvolvendo, entender sua demorada aceitação. Escrito com uma linguagem sem pretensões e tratando de um tema pouco desbravado no Brasil (a situação do migrante japonês) é necessário olhar o texto de Nakasato considerando seus possíveis equívocos ao lado de seus tímidos êxitos.
O assunto escolhido tem potencial de épico e apresenta a saga de Hideo Inabata, que desembarca no Brasil na década de 20 com esperança de enriquecer e voltar ao Japão. A tentativa de manter-se ligado às tradições em solo brasílico e o conflito com os filhos Haruo e Sumie impulsionam o desenvolvimento do romance. Este é narrado pelo filho de Sumie, de forma a produzir um vínculo entre o presente e definir certa “arqueologia” do passado, constante em muitas obras brasileiras contemporâneas, a exemplo de O filho eterno, de Cristóvão Tezza, Ribamar, de José Castello, ou O diário da queda, de Michel Laub.
Dessa forma, o narrador nos conta uma história de tradição coletiva e, para isso, mimetiza certas facetas do narrador tradicional, o storyteller, citado outrora por Benjamin. Para exercer este papel, o contador parte de uma motivação essencial para a narrativa tradicional, a saber, a ignorância, aliada a ideia de aprendizado pela narrativa: “Sei pouco de Kimie” (p. 9) anuncia a primeira frase do livro. A personagem citada é a ex-mulher de seu avô. Depois de uma temporada sem se adaptar ao trabalho no cafezal, morre saudosa da neve de seu país natal em uma das melhores cenas do livro, ainda na sua primeira metade.
O ocorrido prenuncia a relação problemática dos estrangeiros em solo estranho, mas não exclui o conflito dos japoneses com os seus iguais. Assim, quando Haruo resolve se contrapor ao patriotismo exacerbado, representado pela organização ufanista Shindo Renmei, seu destino só pode ser trágico. Além disso, a falta de informação do narrador-herdeiro, se transforma na presentificação de um tempo antepassado em busca de respostas, o que cria uma voz narrativa que interfere ativamente em todas as partes do romance, presentificando muitas das cenas transcorridas com seus avós, ás vezes simulando o próprio testemunho:

“Depois vi Kimie observando o piso de terra batida” (p.20)

“Eu vi Ojiichan chorando no meio da horta, solitário, iluminado pela lua, abraçado ao cabo da enxada (p. 58).

Simular o discurso testemunhal é uma das formas de se introuduzir no espaço e tempo contados e resolver discursivamente a lacuna temporal que afasta as duas realidades diegéticas. Outra forma de se inserir na matéria narrada é a escolha do registro. A linguagem de Nihonjin é límpida, clara, plácida, sem experimentação estética ou lingüística, combinando com o assunto tipicamente pré-modernista relatado, ou seja, a vida pré-industrial, campesina, resgatada pelo neto de Hideo. Além de obviamente mimetizar a popular (mas, felizmente, não estereotipada) paciência e placidez nipônica, que já marcou obras artísticas tidas como típicas do Japão, a exemplo do cinema de Yasujiro Ozu, suas câmeras paradas e longas tomadas lentas.
Essa desprentensão da linguagem certamente também se transforma em defeito, pois se a falta de engenho se justifica formalmente, não pode surpreender uma consciência receptora ávida por novas perfomances lingüísticas. Além disso, em certos momentos os personagens lembram, no pior sentido, outra obra de nossa literatura que também se ocupou da figura do migrante em período exatamente igual. Falo de Canaã, de Graça Aranha, em que os protagonistas formulaicos em seus diálogos serviam apenas como depositários de idéias a serem discutidas pelo autor, o que assemelha, em certas passagens, o livro de Nakasato a um “romance de tese”.
Além disso, a construção discursiva tende a amarrar orações e períodos, num esforço de manter unido um universo de identidades flutuantes e fadado ao desaparecimento, como fica claro na interpolação de coordenadas e subordinadas, tradicionalmente construídas por uma linguagem sem crises: “Um dia, Kimie ficou muito doente, queixou-se de grande cansaço, teve febre, e todos disseram que Hideo precisava levá-la ao médico, mas ele não achava necessário. Que ela descansasse alguns dias, que ela só era uma mulher fraca e despreparada para o labor sob o sol. E ele se resignou com o fazer a comida, pois duvidava que Jintaro o conseguisse, e falou para ele lavar os pratos e as panelas. Então, quando estava a sós com o amigo, disse aquilo: que Kimie não tinha jeito, que deveria ter se casado com uma mulher forte, que agüentasse o trabalho na lavoura, que estava perdido com ela.” (p. 28).
Apesar do conteúdo crítico e conturbado do trecho, resumindo boa parte do nó inicial do romance referente à subtração de Kimie, a sintaxe não se permite abalar. Tudo é apresentado no seu devido lugar, numa sequência repleta de mecanismos lógicos do discurso (e, pois, mas, que, então...) em um trecho curto que poderia prescindir de muitos deles. Mas este excesso, este exagero de junções não podia deixar de funcionar análogo ao esforço de Hideo em manter também unidos os membros de sua família e a tarefa do narrador de manter ligados o presente e o passado a todo custo. A narrativa tradicional, neste caso, enfatiza a dissolução dos conteúdos em seu interior na mesma medida em que se esforça para ligá-los. Esta talvez sendo a maior qualidade narrativa do novo campeão do Jabuti.


NAKASATO, Oskar. Nihonjin. São Paulo: Benvirá, 2011.

Autor: Daniel Baz

Entre a exclamação e a mudez




Quando um monstro gigante ataca uma cidade, o repertório de conseqüências é um só: gritos, lamentos e um herói, pautado pela arquetípica personificação poderosa do bem, que pode ter músculos do tamanho de paralelepípedos, uniforme tecnológico e olho de besouro, ou algum super-poder a altura da empreitada. Estamos acostumados com grande parte disso, no mínimo desde o clássico Gojira, de Ishirô Honda, em que os fundamentos do “gênero” são construídos. Mas, na nossa brejeira brasilidade, uma pergunta sempre ecoou sob este imaginário tão nipônico quanto canônico: e se fosse o Brasil?
Gustavo Duarte, na sua nova, e genial, Graphic Novel Monstros!, explora esta inquietante possibilidade ao narrar o ataque de três monstros gigantes à cidade de Santos. O autor é conhecido pelo seu trabalho com charges no jornal Lance! e pelos seus três álbuns, bem mais curtos, anteriores, Có!, Táxi e Birds, que lhe renderam uma porrada de prêmios HQ Mix.
Seu mais novo trabalho, começa subvertendo tudo que já sabíamos a respeito de ataques de monstros ao investir em uma narrativa muda, sem falas, onomatopéias ou recordatórios. Sendo assim, a atmosfera barulhenta, geralmente responsável pela atmosfera trágica, épica e caótica deste tipo de situação é abandonada em prol de um tratamento diferenciado. Duarte brinca com o comportamento exclamativo (presente já no título do trabalho) comum a este tipo de material narrativo e trata o ataque pela perspectiva do silêncio. Sobram as imagens e o imenso talento do quadrinista.
Para suprir a ausência de sons, o autor explora todo tipo de recurso visual. A começar pela genial angulação de todo o álbum. As escolhas de ângulo e de perspectiva são importantes, pois se situam, na maioria das vezes, em lugares inesperados do cenário, o que sugere a maneira como as criaturas alteram a lógica do mundo, nos fazendo olhá-lo de formas nunca antes vista. Uma cena exemplar do método é aquela que se coloca da perspectiva de dentro de uma ossada de um dinossauro gigante. Perspectiva que inverte a lógica tradicional da extereorização das criaturas. A multilplicidade de ângulos também é uma forma bem sucedida de lidar com as duas escalas exploradas pelo quadrinho, a macro, dos monstros, e a micro, dos homens. Dois planos que se confrontarão na figura de Pinô, o improvável herói desta história.
Dono de um bar e, como descobriremos ao fim, com um passado de envolvimento com todo tipo de fenômeno fantástico, Pinô é um show de composição. Armado com o misterioso líquido que conservam os ovos em qualquer típico boteco brasileiro e com um palito de dentes saindo dos bigodes (ótimo advérbio para despreocupação e despretensão que o envolvem o simpático idoso), ao fim ninguém duvidará da competência do senhor para lidar com os colossais inimigos. E após termos acesso a vários pontos de vista do ataque, é com Pinô que seguiremos até o final da história.
A composição destes também é exemplar apostando em um design “fofo” com expressões exageradas e personificadas, muitas vezes cômicas, como quando mostram curiosidade, espanto ou gargalham. Essa característica se junta às primeiras cenas em que eles aparecem, onde a morte nunca aparece de fato, mas sempre exerce sua iminência, como na excelente cena da praia.
As cores do álbum utilizam três tons. O preto o branco e um esverdeado, remetendo ao bem, ao mal e às zonas de intersecção que constituem toda história complexa. As cores são realçadas em vários momentos pela simplicidade do traço, simplicidade esta sempre empregada com acerto. Às vezes, para reduzir a história a sua ideia essencial, como quando Pinô vê a tartaruga gigante e o espaço ao redor se resume a traços enfatizando a tópico da cena, ou seja, o confronto. Por outro lado, em vários momentos, o recurso auxilia na narrativa do evento épico por intermédio da simplicidade do código, como na impressionante página em que Pinô segue a tartaruga e o cenário se resume a blocos quadrados, remetendo a própria estrutura em quadrinhos e explorando apenas o personagem em relevo.
Gustavo Duarte encerra seu Monstros! como qualquer boa história de pescador, entre o fantástico e o real. No percurso nos encantamos com uma série de Easter eggs que remetem não apenas à obra do próprio Gustavo como também se relacionam com modelos conhecidos do mundo em que vivemos, sobretudo com os amigos de Pinô (que duvidam de sua história) e que tem a aparência de músicos famosos como Roger Moreira e Flea. Monstro! ao mimetizar pessoas reais em contextos ficcionais, usa do conhecido como forma desestabilizadora e, dando mais uma volta no parafuso, nutre o real também do inusitado. Exclamativo e discreto.


DUARTE, Gustavo. Monstros! São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Autor: Daniel Baz