sábado, 28 de julho de 2012

O Pato Fáustico - o nosso reino, de valter hugo mãe

um dos nomes mais importantes da literatura em língua portuguesa na atualidade preenche o programa do pato fáustico de hoje: valter hugo mãe e seu romance "o nosso reino". entrem conosco nesse mundo de letras minúsculas e aproveitem.


O recheio do insólito em o nosso reino, de valter hugo mãe




A oralidade contemporânea e medieval. A precisão poética do fenômeno empiricamente fantástico. Um mundo transcendente, vasto e heterogêneo grafado em minúsculas e entoado a partir de vírgulas e pontos finais, apenas. Assim é a escrita de valter hugo mãe já no seu primeiro romance, o nosso reino, de 2004. O autor, que, além de romancista, é poeta, vocalista de rock (na banda Governo), DJ e editor de autores como Ferreira Gullar e Caetano Veloso, nos apresenta a história do menino Benjamin, de oito anos, no seu esforço para entender a morte e cujo desejo de transcendência o faz decidir se tornar santo junto com seu melhor amigo, Manuel.
O romance é narrado na primeira pessoa de Benjamin. Através dele, conhecemos uma aldeia durante a década de 70 em Portugal, sinédoque da ruralidade provinciana do país, onde a experiência coletiva é a única maneira de extraírem-se significados, já que a lógica dos atos e dos acontecimentos é compreensível apenas aos agentes do romance.  Num universo repleto de magia, onde não se podem deixar gritos presos em casa e a louca suicida pode perder seus filhos todos no mesmo dia, o senso coletivo é o ponto de partida de qualquer postulado semântico. Assim, todos os atos individuais são de certa forma semantizados pelo crivo da repercussão coletiva, o que favorece as interpretações alegóricas que o romance pode erigir.
O impacto da linguagem de valter hugo mãe, no entanto, não perde em nada para este causado pela escolha de seus temas. As suas minúsculas, por exemplo, podem ser alegóricas do pequeno, do menor, do marginal, como outros já disseram, contudo, prefiro pensar que seu atributo essencial refira-se à indistinção no nível dos signos usados, o que reforça a distinção do que eles produzem e revelam. Além disso, devido ao uso exclusivo de apenas dois acentos - pontos e vírgulas - também não há entonações diferenciadas na esfera significante. A língua é totalmente afirmativa, ou seja, para indagar ou exclamar, algo que as personagens fazem em todas as páginas, devemos estar familiarizados com a carga volitiva-emocional do discurso das personagens.
Isso se relaciona com outra característica expressiva dos livros de valter hugo mãe, o uso indiscriminado da oralidade. A sintaxe oral empresta vivacidade para a escrita do autor, permitindo que se explorem outras formas de organizar os conteúdos, provenientes da instantaneidade de atos de fala. O folclore é reinventado, pois seu perfomancer é um menino ainda não familiarizado com a duração da oralidade, isto é, com sua tradição, mas entende da presentificação de seus conteúdos, isto é, da sua transmissão. Assim, a perspectiva infantil e o uso de arcaísmos também ajuda a experimentar novos usos da linguagem. A repercussão de um mundo medieval e infante obriga os conteúdos a conviverem com contextos sígnicos que lhe são estranhos e cujo choque é responsável pela maioria das imagens inusitadas da obra.
Devido a tudo isso, a organização geral do livro é extremamente irônica. Os capítulos são divididos em 1,2,3 até 8, de forma descomprometida e apática. Tal naturalidade não condiz com o conteúdo plurifacetado e anômalo dos episódios relatados e parece manter-se afastado da profusão verbal de Benjamin. Como se o paratexto respeitasse a matéria exótica explorada.
É, no entanto, no capítulo 3 que valter hugo mãe parece explorar umas das portas giratórias de seu universo, quando o menino constata “[...] que importa pôr os pés no chão se tivermos um cérebro tão perfeito que consiga reproduzir essa sensação a cada momento.”. Um cérebro perfeito é capaz da maior imaginação, e, consequentemente, pode abrir mão da experiência. A volta no parafuso da cabeça da não-figuração barata, já que, como já constatou Carpentier “a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé”. O maravilhoso é uma espécie de rebeldia, mas para crentes, para os que comungam com sua lógica. Um comportamento humano expansivo e controverso, barroco, onde os espaços cheios da linguagem são tão importantes quanto os vazios provocados pelo inefável. valter hugo mãe, como Guimarães rosa, Rabelais,  Ariosto , e Quevedo, preenche o insólito de verbo e cria um mundo no avesso do avesso do avesso...


MÃE, Valter Hugo. O nosso reino. São Paulo: Editora 34, 2012.

Autor: Daniel Baz

sábado, 21 de julho de 2012

O Pato Fáustico - V de vingança, de Moore e Loyd, e Bonsai, de Alejandro Zambra

O Pato Fáustico comemora uma dezena de programas. Dois textos participam da celebração: o clássico "V de vingança", de Alan Moore e David Lloyd e "Bonsai", de Alejandro Zambra, um dos livros mais falados nos últimos meses.

Aproveitem e que venham mais dez programas!!!!


A volta de um clássico


Diferente do que os pessimistas afirmam, de vez em quando a cultura pop e a cultura top podem sim ser a mesma coisa. A prova disso pode ser encontrada nas bancas de revistas com a iniciativa da Editora Panini em relançar (com ótimo preço) a Graphic Novel V de vingança, de Alan Moore e David Lloyd. Produzida entre 1981 e 1988, e publicada na revista Warrior, a série conta em dez volumes, a história de um mundo sob a liderança de um governo fascista que assumiu as rédeas da sociedade após um período de caos proveniente de uma hecatombe nuclear. Faz isso, seguindo a trajetória de V, um anarquista erudito de capa, máscara e facas que, durante o período de um ano, promove uma série de atos contra o parlamento britânico, visando sua queda; e também de Evey, mulher que ao decidir se prostituir (após perder os pais que lutavam contra a ditadura e se encontrar em condição miserável) é atacada por membros do dedo (como são chamados os agentes da polícia inglesa) e salva pelo herói mascarado.
A obra foi revolucionária em uma série de aspectos, mas é impossível não começar falando da qualidade do roteiro e desenhos dos autores responsáveis. O enredo é impecável e tem na intertextualidade um dos seus mais eficazes aspectos. Rolling Stones, Shakespeare, Ray Bradbury e Aleister Crowley são alguns dos autores que tem suas obras citadas pelo protagonista. Num momento histórico em que a arte foi proibida (remetendo claramente a Fahrenheit 451), as citações são apenas mais uma forma de transgressão. Um jeito de inverter as categorias semânticas do presente com referências a campos textuais que lhe são estranhos (neste sentido as ininterruptas indagações de Evey mostram a discrepância entre os dois tempos).
Os desenhos de Lloyd também são primorosos. Em cenas como na página 81, os monitores são resumidos a quadrados e retângulos, cuja forma geométrica remetem ao conservadorismo das autoridades que conversam no quadro. Na página 97, um globo de luz produz um padrão circular e regular que acompanham a valsa de V e Evey e compõe com uma porta o único espaço que antecedem a guinada na vida da personagem. Sem falar na ideia para o herói, inspiradas em Guy Fawkes que em 5 de novembro de 1605 tentou explodir o parlamento e assassinar o Rei Jaime I. A máscara sorridente, a peruca lisa e a capa com chapéu firmaram o “ícone por trás de uma ideia”, como o próprio herói expõe. Como no teatro grego, a máscara imóvel maximiza a experiência de uma ideia pura, resistente ao tempo e a morte, algo que nunca muda, permanecendo impassível diante de qualquer transformação.
Mas a grande inovação está na audaciosa escolha de contar a história sem o auxílio de onomatopéias e sem a ajuda dos balões de pensamento e dos clássicos recordatórios, ou seja, quadros em que narrador ou personagem resumem a história, auxiliando o trabalho seletivo do desenhista. Apesar de que há a narrativa em primeira pessoa em algumas passagens. É espetacular  o que o texto alcança a partir destes recursos. Primeiro, privar o mundo de manifestação sonora é uma forte sugestão dos limites impostos pela perda da liberdade. O silêncio envolve todas as ações numa imagem magistral da furtividade requerida por V e seus atos. Tal interpretação é análoga ao fato dos movimentos de V não serem seguidos por linhas cinéticas, como que aumentando o desafio de transformar o mundo através de suas ações.
A ausência dos recordatórios funciona de forma semelhante. Obriga-nos a olhar o mundo de dentro, sem comentários não comprometidos com os eventos. Além, é claro, de enfatizar o envolvimento do leitor no espaço entre os quadros, já que dificulta o processo conclusivo que envolve toda recepção de quadrinhos. Aumenta a importância da sarjeta ou calha (espaço entre os quadros) e permite a criação de passagens fabulosas como na página 253, onde Evey torna-se V. Aqui a pouca mudança temporal e espacial entre os quadros, revela uma forte progressão da personagem que resgata todo o tempo vivido até ali. Uso genial de uma arte em que o tempo é construído espacialmente. O último quadro, quando o sorriso de Evey torna-se o mesmo de V, é mais largo, o que também é um aspecto de captura temporal mais ampla, mais densa por parte do artista.

As cores de V de vingança (que foram acrescidas depois) são outro show à parte. Tons sutis e que, em alguns momentos, permitem que o universo preto e branco do original ainda seja percebido. A ideia de um mundo esvanecendo, que em qualquer momento pode desaparecer, é acrescida de impacto pela cor que some dentro das formas. Em alguns casos pontuais, como no plano excelente da página 159 o rosto de Evey perde os traços com efeito da água e a cor produz um rosto amorfo, um borrão que mostra a perda da identidade na tortura.
Quanto aos balões, como já disse Eisner, estes podem funcionar como a emanação física de um personagem, uma sinédoque de si. Os de V são ondulados e sinuosos, que normalmente são usados em pensamentos ou falas no passado, perfeitos, portanto, para um sujeito antiquado e que vive uma ideia, há neles um aspecto icônico que complementa a imagem do personagem
Por fim, vou falar ainda de duas cenas, que provam mais uma vez a eficácia técnica de dois mestres da linguagem. Começando pelos padrões curvos da página 235 até 239 que precedem a grande reviravolta da história. Repetidos na escada em caracol ensaguentada, que forma um círculo, mas não sem fim. A espiral é a imagem de algo que progride ainda que de forma circular, não unidirecional, como o percurso de Evey e V.
Por último, um detalhe que só percebi relendo a obra para escrever este texto. Em todos os volumes só há um quadro que ocupe uma página inteira.  Ou seja, quase nenhum momento é enaltecido pelos criadores, o que condiz com a ideologia anarquista de V. A exceção está em um único momento: quando Evey sai do cativeiro e descobre a verdade (p. 168). O quadro está repleto de quadros, simulando a realidade cheia de molduras, a estrutura em abismo em que se tornou a vida de Evey, na qual tudo é farsa ou teatro, como V já lhe ensinara: “Teatro é tudo, Evey” (p. 33)
Celebremos, portanto, o 5 de novembro. Comemoremos o pop top.



MOORE, Alan; LOYD, David. V de Vingança. São Paulo: Panini Books, 2012.

Autor: Daniel Baz


A poética dos galhos curtos


Existem obras que são vendidas junto com sua poética, no modo pague um - leve dois. Ao adquirir seu exemplar, a própria leitura irá concretizar uma imagem dinâmica indissociável de qualquer proposta hermenêutica que seja construída após. Este é o caso do livro Bonsai, do chileno Alejandro Zambra, um dos melhores autores latino-americanos da nova geração.
Estamos diante de uma história de amor, entre Julio e Emilia, e já na primeira frase do romance sabemos que esta história não deu certo, que Julio ficará sozinho e que Emilia morreu. De forma compacta, a trama cabe em uma frase, que o narrador revela ainda no primeiro parágrafo “No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura:” (p. 12). A voz narrativa é honesta, em Bonsai tudo passa pelo crivo das letras, felizmente, não pelo do pedantismo. Até mesmo as inspirações sexuais do casal são tiradas dos livros. Contudo, o intertexto principal da ficção de Zambra é o conto Tantalia, de Macedônio Fernandez, sobre um casal que resolve criar uma planta como símbolo de seu amor e percebe que ambos teriam a mesma vida útil.
É daqui que se extrai a poética criada pela obra. Resumida ao fim do livro, “Cuidar de um bonsai é como escrever, pensa Julio. Escrever é como cuidar de um Bonsai”. Na epifania, o mesmo conteúdo é expresso em duas frases trocando os itens do sujeito de verbo para predicativo da comparação. O efeito de espelhamento é preservado, num jogo de referências circulares que se reproduzem a todo momento. A história vem encaixada em forma de galinhos no desenvolvimento das vidas dos heróis, em situações que se explicam mutuamente.
Num dos pontos, Julio, que após se separar de Emilia, vive com Maria, passa a trabalhar de copista do escritor Gazmuri. Quando ela pergunta de que se trata o romance, o personagem, que ainda não tinha acesso a esta informação, conta uma história muito parecida com a de Macedônio, mas troca a planta por um Bonsai. Após descobrir que não ficará com o emprego, continua mentindo para Maria, produzindo a história do romance Bonsai, isto é, se dedicando ao enredo que inventara. Isso ocorre até o ponto em que Gazmuri publica seu livro, chamado Sobras, cujo título é o mesmo da quarta parte do romance Bonsai que você está lendo. Confuso? Na verdade, tudo isso vem de forma muito natural na leitura, devido principalmente a outra característica da poética de Bonsai, a contenção.
A imagem de poda ao texto, de aparo com as pontas e cuidado com os galhos muito longos materializa uma escrita enxuta e precisa. “Mas nesta história a mãe de Anita e Anita não importam, são personagens secundários.” (p. 42), diz o narrador numa das podas mais explícitas que empreende. Entretanto, a contenção não impede o uso da linguagem como forma de produzir realidades novas a partir de situações sintáticas atípicas, como “porque poucos dias depois de completar trinta anos Emilia morreu, e então não fez mais aniversário porque começou a estar morta”, escolha que condiz com a presença da personagem até o fim da narrativa.
Outro ponto de destaque revela com mais clareza a característica contida do texto: “A história de Julio e Emilia continua mas não prossegue” (p. 36), trecho em que o par continuar/prosseguir sinaliza para os limites da narrativa, ou melhor, para a lacuna entre plano de expressão/plano de conteúdo. Dessa forma, o conteúdo rompe com os meios expressivos e o condena a tatear em um universo em que o principal já foi estabelecido, onde o ápice, o nó e o conflito já estão dados. O resto, como foi dito no início, é literatura.  Este trecho faz par com “A historia de Julio não termina, ou melhor, termina assim.” (p. 88), em que mais uma vez sabemos de antemão que o aspecto expressivo está aquém do semântico.
Basta lembrar que não há descrições, ou seja não se limitam estados para os fenômenos em imagens estáticas do mundo, mas apenas dinâmicas. Tudo existe na narrativa, nos atos dos seres, mas, como já sabemos o que acontecerá e qual o resultado destes atos, compactuamos com a presença de uma forma breve e sintética. A poética se faz vencer na prática.
Em alguns momentos, entretanto, o autor sabe tirar da frase mais longa o efeito pretendido: “Numa noite especialmente feliz, Julio leu, meio de brincadeira, um poema de Ruben Darío que Emilia dramatizou e banalizou até transformá-lo num verdadeiro poema sexual, um poema de sexo explícito, com gritos, com orgasmos”. Aqui o fôlego da frase funciona homólogo a transformação do conteúdo expresso por ela, temática central no livro, já que a importação de uma realidade literária para a vida cotidinana está na base de todas as principais imagens de Bonsai.
Falar de imagens sem mencionar o projeto gráfico do livro seria um disparate. A edição apresenta um pontilhado que produz um quadrado dentro da página que pode ser recortato, podado como um Bonsai. Esta ênfase na materialidade do projeto produz um efeito sensacional. Principalmente pelo fato de a obra de arte literária ser um objeto essencialmente transcendente. Ou seja, seu sentido, geralmente, não se vincula ao meio em que ela é difundida. Sua textualidade não faz parte de sua materialização objetal. Entretanto, há casos em que alguns limites são transpostos, quando se ensaia novas formatações que mesclam a textualidade com a imanência do veículo. Estamos longe da singularidade de uma escultura, pois a edição pode ser impressa em quantidade, mas a ênfase na mídia sem dúvida orienta a percepção estética para novas maneiras de emoldurar a recepção. Um ganho a mais em um livro paradoxal, ao mesmo tempo metaléptico e enxuto.




ZAMBRA, Alejandro. Bonsai. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Autor: Daniel Baz

sábado, 14 de julho de 2012

O Pato Fáustico - O africano (Le Clézio)

O Pato Fáustico de hoje apresenta um vencedor do Nobel de literatura que chega a preço camarada nas livrarias pela nova série de portáteis da Cosac Naify. Estamos falando de "O africano", de Le Clézio.


Aproveitem!!!!!

A memória, a imaginação e Le Clézio




Jean Marie Gustave Le Clézio venceu o prêmio Nobel em 2008 e tem mais de 30 livros publicados. Em seu primeiro trabalho, Le Procès-verbal ganhou o Renaudot na França e mesmo assim ainda é um desconhecido entre nós. Talvez isso mude com o catálogo da editora Cosac Naify pondo um de seus romances, O Africano, por 21 reais nas livrarias. Centrado na figura idealista do pai aventureiro do autor que atua na África colonial (Camarões, depois Nigéria) como médico e que, depois de ter a família afastada na segunda guerra e de descobrir que não passa de mais uma peça de controle social pela metrópole, se torna um sujeito sisudo e temido pelos filhos.
O primeiro capítulo, “O corpo”, serve como a primeira metonímia da liberdade, explorada pelo texto: “Na África, a falta de pudor dos corpos era magnífica” (p. 8). Liberdade “explorada”, pois nunca atingida plenamente pelo texto, sempre estranha ao menino, cujo corpo fica “dolorido” e “firme” nas terras coloniais. O narrador logo deixará claro: “eu nasci naquele tempo distante, muito longe dos adjetivos, dos substantivos” (p. 9). As palavras não só são insuficientes, como não fazem parte das atitudes infantis de apreensão do mundo, justamente aquelas que importam para as memórias do narrador. Também por isso, uma série de fotos, do arquivo pessoal do autor, são utilizadas para, contrapostas ao texto, ajudar no exercício de recuperação do passado. Ainda que no resultado final, ambos os registros sejam complementares para entendermos o complexo de sensações envoltas na história narrada.
A ficção de Le Clézio já começa com um mapa - medical area - de Banso, e é pontuado por imagens que rompem com a lógica interna da sintaxe verbal, como que pontuando os limites do signo lexical. O que é reforçado pelo fato de lermos as descrições antes de termos acesso as imagens descritas, o que sempre resulta numa quebra brutal de expectativa e nos coloca no impasse memória e imaginação, que é central para o texto. Em outros trechos, o autor questiona a legitimidade do próprio discurso “Mas pode ser que, ao descrevê-lo, eu torne por demais literário, por demais simbólico, o furor que animava nossos braços, quando atacávamos os cupinzeiros”  (p. 27). É ainda neste capítulo que o narrador assume como aprendeu a esquecer os rostos para conhecer os corpos, numa ligação direta com o sugestivo último capítulo, “Esquecimento”, e que enfatiza mais ainda um tipo de experiência física aparentemente irrecuperável pela palavra.
A simbologia é admitida como forma para recuperar campos semânticos de difícil apreensão. Minha parte predileta consta no segundo capítulo “Cupins, formigas etc.” em que a relação das crianças européias e os resignados cupins, que sofrem sem retrucar, as violentas formigas, que sabem se defender e o fascinante escorpião, morto pelo pai, moldam as relações sociais, principalmente entre colônia e metrópole. Além disso, diferem os brancos dos negros, já que estes não ousam atacar a fauna local.
Tudo compõem um espaço mítico, quase paradisíaco: “Uma terra original, de alguma forma, onde o tempo teria dado marcha a ré, desmanchando a trama de erros e de traições” (p. 66) A passagem dos dias estagnava, ou até regredia. Mas a dubiedade regresso e progresso torna a categoria temporal muito mais interessante já que  o solo africano é também um espaço de iniciação, uma “antecâmara do mundo adulto” (p. 47), deste forma, move também o sujeito para o porvir.
Para os que acompanham o jargão de algumas tendências atuais de estudo da literatura, ao longo do livro, alguns dos temas principais do cardápio da crítica contemporânea são desbravados, como, por exemplo, o exílio do pai desterrado, o choque de culturas, a colonização e o imperialismo, a autoficção. Mas, agrada-me observar mais a fundo o duelo entre memória e narrativa como espaço da construção de uma identidade dupla, narrativa e pessoal, ambas envolvendo um estilo específico e um conjunto de experiências particulares. Por isso, opto por encerrar minhas reflexões com o complexo memória/imaginação que foi deixado em aberto anteriormente. Complexo qu efunciona de forma complementar e que é dividido em dois aqui com fins práticos-analíticos.
O texto de Le Clézio não tem medo de ser determinista. Foi o meio, a raça e o momento histórico, mais especificamente a guerra, que fizeram com que seu pai se tornasse quem foi. A reverência decorre justamente do sentimento de pertença a essa mesma trajetória, cujo acesso envolve a união de forças entre imaginação e memória. “É escrevendo que agora o compreendo. Essa memória não é somente a minha. E também a memória do tempo anterior ao meu nascimento, quando meu pai e minha mãe andavam juntos pelas estradas do planalto, nos reinos do oeste de Camarões.” (p. 115) A memória, permite que se habite espaços imaginários, ficcionais e tomá-los mesmo que a força. Além disso, a narrativa é o meio do memorialista fingir a organização natural dos fatos. A sintaxe narrativa permite ao escritor e ao leitor a sensação de domínio, da fuga da aleatoridade, pela construção de coerências semânticas internas.
Ficamos, portanto, no impasse da primeira pessoa, visto que não se sabe qual referente buscar. O interno que garante uma estrutura narrativa particular, pontilhada e limitada, ou o externo, que permite admitir no texto um campo semântico experiencial e que ressignifica a narrativa pela ordenação dos efeitos na realidade da vida. Atestado disso, seriam novamente aqueles vários momentos em que se reclama a limitação da palavra escrita. Antes de serem metaficcionais, estes comentários estão medindo a experiência do texto por outra que não lhe diz respeito.
Tudo isso nos remete ao final do século XIX, e a crença ainda presente em textos como este de que a memória poderia ser o eixo de ligação entre corpo e mente, um lugar privilegiado da epistemologia. Por outro lado, para autores como Paul Ricouer, em A memória, a história, o esquecimento, expressa-se a opinião de que na fenomenologia da memória a pergunta “Quem lembra?” é subordinada a “O que se lembra?”, deixando de lado a tradição filosófica e sua ênfase no lado egológico da experiência mnemônica. Quando o narrador descobre que estavam comprando as estátuas, máscaras e tronos que ele usava no cotidiano, isso fica ainda mais evidente, pois, a compra envolve pessoas  “para quem essas máscaras e esses tronos não eram coisas vivas, mas sim a pele morta do que se chama com frequência arte” (p. 69). O objeto da memória é definitivo para construirmos uma identidade móvel, mas passível de exame. Uma identidade narrativa viva e que busca a autenticidade artística num exercício de linguagem carregado de experiências eticamente plausíveis.
No final do texto, o narrador vê nos jornais as fotos das guerras em Biafra e da Argélia e não reconhece, na África que o mundo começa a descobrir, a sua querida terra da infância. Essa é a diferença básica da autoridade da memória quando esta subordina a si a imaginação. Não importa o que aconteça, a carga da distância temporal será essencial para o entendimento dos fatos e dos homens neles envolvidos.


CLÉZIO, Le. O africano. São Paulo: Cosac Naify, 2012.



Daniel Baz

sexta-feira, 6 de julho de 2012

O Pato Fáustico - Black Kiss (Howard Chaykin) e Wilson (Daniel Clowes)

Uma obra-prima dos quadrinhos está neste videocast do Pato Fáustico: "Black Kiss", de Howard Chaykin. Além dele, "Wilson", do também aclamado autor Daniel Clowes, encerra a dobradinha preparada por nós. Confiram!!!!


Sexo e telefones na era pós-jazz


A primeira página de Black Kiss (1988), graphic novel de Howard Chaykin, apresenta o mesmo cenário visto através do mesmo ângulo. A única diferença é o movimento dentro do quadro de uma gata, que captura um filhote para amamentá-lo na próxima página. Nos balões que saem da secretária eletrônica centralizada no quadro lemos, ao mesmo tempo, coisas como:

“Eu sou uma putinha de pernas longas e olhos azuis, com fome de sexo...e consigo pensar nas suas mãos subindo pelas minhas coxas... me acariciando do jeito que você sabe que eu gosto...”

Sexo e cuidado juntos, num dos quadrinhos mais polêmicos dos últimos 40 anos. Depois desta cena, somos apresentados ao ícone Dagmar Laine, irmã gêmea da estonteante atriz Beverly Grove. Acontece que Grove é o único álibi do jazzista Cass Polack, que é acusado de ter matado sua esposa e filha, pois estava com ele quando tudo ocorreu. Paralelo a trama básica, crimes, misticismo, heresias, satanismo e sexo, muito sexo.
Na primeira cena sexual (p.13), envolvendo a “cega”, a personagem surge com parte de cima em negro e a parte de baixo em branco, num contraponto explorado em toda a narrativa. Na página, há apenas uma porta e nada mais. A simplificação do espaço obviamente realça as personagens, mas, aqui, também sugere um simbolismo que percorrerá todo o desenvolvimento da trama. Uma fronteira fechada, alienada do resto do mundo, com lógica própria e espantosa, como mostra o rosto do homem, na mesma cena. A simbologia do trecho é reforçada na página 48, em que fechar a porta não é unicamente ter privacidade, visto que enxergamos através dela, admitidos no mundo das perversões privadas.
          Neste terreno, a comunicação é complicada, seja pelo uso excessivo de telefones (capítulo 1 começa e termina com um deles, que também estão no início do capítulo seguinte) e dos atrasos da secretária eletrônica que, já na primeira parte mostra uma anacronia das informações dadas, algo que o suspense da história só irá enfatizar. O telefone também funciona como uma fina ironia, já que a distância corporal entre interlocutores é obviamente subvertida nas principais cenas da HQ. O problema da comunicação entre os seres está brilhantemente exposto no início do sexto capítulo em que os balões se espalham por um ambiente cheio de pessoas e cujos rabichos estão bem longe de suas respectivas fontes (p. 69), ou quando diálogos de quadros anteriores terminam nos quadros seguintes (p. 118). Nesse sentido, o sexo é o único caminho para as principais revelações da trama, como quando Cass, após transar com Dagmar e Grove, descobre que a primeira é um travesti (p. 54).
Algumas escolhas de Chaykin são geniais, como o uso de rostos recortados e colocados nos meios das páginas. Alguns deles diminuem o espaço à dimensão restrita objetiva das personagens, intensificando o conflito íntimo e denotando a tensão euXmundo, como na página 22. Outros são ainda mais geniais, como o sexo oral em primeiro plano (p. 27), que rima com a cena antes exposta. Falando em rimas, não posso deixar de lembrar também os lugares comuns, como a entrada em uma garagem ser análoga ao orgasmo também na cena anterior (p. 28).
Outros recursos já são mais populares, como o uso revolucionário das onomatopéias (tanto quanto Frank Miller, diga-se de passagem). Cenas como a já citada, onde Cass recebe sexo oral de Dagmar, são seguidas do som do pneu do carro que na parte inferior da cena conecta todos os quadros. Sem falar em outras passagens (p.25), em que o “beep” da secretária eletrônica, o “slam” de uma porta, e o “mmmrrowwwwrrr” de uma gato, servem para ambientar a cena, compõe o espaço sugerindo o estado de espírito das personagens (algo semelhante na página 85).
Muitas referências pop e dos quadrinhos - não posso deixar de pensar, por exemplo, em Spirit, na cena da orgia em que Cass usa uma máscara, num pastiche do herói clássico (p. 86-87); uso preciso dos dispositivos clássicos (rabicho e forma de raio quando um rádio-relógio interrompe a transa de Eric); quadros que extrapolam seus limites para intensificar um momento de extrema violência e tortura (p. 100); todos recursos inovadores, desse noir feito por um fã dos irmãos Cohen e da forma como eles subvertem todos os gêneros com que trabalham.
Chaykin termina sua história no mesmo quadro em que ela começa, mas como em Rastros de ódio, de John Ford, a cena inicial inverte o significado primeiro (a ausência do gato e da mão que surge ao fim para atender ao telefone é quase a vitória da incomunicabilidade). Ao invés de fechar a história, abre-se ao fim um mundo complexo, que parece ter abandonado a explicação para a conduta e a motivação de seus heróis. Sorte nossa que podemos voltar e buscar uma resposta.
 



CHAYKIN, Howard. Black Kiss. São Paulo: Devir, 2011.

Autor: Daniel Baz dos Santos