domingo, 15 de setembro de 2013

O Pato Fáustico - Nocilla Dream e Flex Mentallo

O Pato Faústico de hoje fala de dois lançamentos importantes. O controverso "Nocillla Dream", romance-fenômeno na Espanha e "Flex Mentallo", de Grant Morrison e Frank Quitely, relançamento aguardadíssimo. Para fechar o pacote, recomendamos os ótimos trabalhos de Paulo Crumbim e Cristina Eiko, "Quadrinhos A 2" e "Gnut". Aproveitem !!!!


A barbárie de Nocilla dream



Nocilla Dream é a primeira parte de uma trilogia intitulada “Nocilla Project” – cujos outros dois livros continuam inéditos no Brasil –, do escritor espanhol Agustín Fernández Mallo. Dos predicados que tem acompanhado sua recepção, destacam-se “pedante”, “pretensioso”, “bobagem”, “inovador”, “divisor de águas”, “transgressivo”. O fato é que esse romance batizou a “Generación Nocilla”, nascida após os anos 60 e que segue outros grupos subversivos, como o McOndo idealizado por Alberto Fuguet e Rodrigo Fresán.
O livro é composto por 113 capítulos curtos e curtíssimos, cada qual focalizando um determinado personagem ou situação, algumas delas se interconectando no decorrer do livro. Se há algum ponto de unidade, este se refere ao espaço: a US50, uma estrada do Nevada, na qual há uma árvore repleta de sapatos, cuja origem vai ser contada e desmentida durante todo o livro (até o penúltimo capítulo).
Antes de falarmos dos problemas, comecemos pelo ponto forte do livro, ou seja, sua capacidade inventiva. Muitas são as histórias contadas pelo narrador de Agustín. Conhecemos um boxeador, cujo objetivo é percorrer a estrada citada a pé; um hotel que faz um museu de objetos achados; um fotógrafo dinamarquês criador de duas vertentes estéticas peculiares; um músico que utiliza sons urbanos como instrumentos de suas obras; anciãos surfistas; para ficar somente naqueles que aparecem em pouco mais de 50 páginas de romance. Seguem-se a estas inúmeras narrativas, uma série de citações explícitas no texto e que também provém dos mais diversos lugares. Lemos o trecho de um texto científico sobre computadores já na primeira página (p. 9), a opinião de Luis Arroyo sobre realidade aumentada, uma passagem de Thomas Bernhard (p 59), a exposição de um dicionário de física (p. 156), entre muitos outros achados.
Seguindo o caráter paratático, desconexo da narração, muitas destas citações aparecem deslocadas e não raras vezes descontextualizadas, deixando evidente a necessidade do restante do texto de onde foram tiradas para serem compreendidas, a exemplo daquela retirada do livro sobre cinema de Daniel Arijon (p. 70/71) (que, aliás, oferece uma chave de leitura para a obra, a respeito da qual falarei a seguir).
Apesar das muitas histórias e referências, ou por causa delas, o tom de Nocilla Dream é seco e apático. Talvez acompanhando a despersonalização da cultura de massas que contextualiza seu andamento de tipo “zapping”. Nesse sentido, Agustín tenta fazer com a televisão o que John Dos Passos fez com o cinema no início do século. Sua “trilogia U.S.A”, iniciada em Paralelo 42 (tendo um ponto geográfico também como eixo, portanto), investe na narrativa multifocada de vários cidadãos americanos, entrecortados por vidas anônimas, história de grandes personalidades e os famosos Camera eyes, capítulos influenciados pela técnica cinematográfica russa, em uma panorama fragmentado semelhante ao de Nocilla Dream, ainda que infinitamente melhor realizado.
Agustín, contudo, usa todos estes recursos de maneira frouxa, simulando a desmotivação de certas passagens, mas temeroso de perder o sentido pretendido. É nesse esforço que surgem questões que aos poucos permitem certas zonas  semânticas estáveis, quando conhecemos as micronações (p. 73), a ascensão de passar roupa a esporte, e mais um conjunto de deslocamentos e de inversões de valores, geralmente associando os novos ambientes tecnológicos a afazeres diários, a exemplo do uso do sistema binário na interpretação de tecidos (p. 24). Mesmo a errância narrativa é uma óbvia analogia aos nossos tempos desterritorializados, já que os “internautas não tem pátria” (p. 21) e uma das ditas micronações reivindica para si todos os territórios fronteiriços do mundo. Nessa salada de ingredientes suculentos misturados com outros indigestos até mesmo a teoria cinematográfica de Arijon explica a necessidade de mesclar os planos fechadíssimos com os planos gerais, entre o pequeno descontextualizado e o panorama integrador.
É possível, portanto, ver nos exemplos citados a maneira na qual Nocilla dream oscila entre o óbvio e o obscuro, entre a constatação mais simples e o mais intrincado discurso. A forma é ambígua. Seu andamento paratático impede a subordinação de seus enunciados a um centro e isso fere a teoria clássica da estética. O discurso claramente se quer barbárie, como se a única forma de criticar a sociedade que o produz fosse fugindo de suas zonas confortáveis de enunciação. Como se a única maneira de buscar o novo fosse revelando a impotência da razão.
A vinculação deste projeto remete ao modernismo, que impôs aos criadores protegidos sob seu manto a busca constante de novos padrões organizadores da linguagem. O tempo foi o principal atingido. Acredito que o espanto diante da sua irreversibilidade passou a figurar os mundos desordenados das obras modernistas. Se não podemos mais nos relacionar com nosso passado de forma natural e orgânica (Proust escreve sete volumes sobre esta procura impossível), então que se abandonem as relações causais nas nossas representações. Foi isso que Adorno parece ter visto em um dos pilares de sua teoria estética, ou seja, a música de Schönberg.
Contudo, a irreverência com que a obra salta de vários personagens, paisagens e temas não deixa de demonstrar certa nostalgia (possivelmente presente no mesmo Adorno, mas, infelizmente, não domino sua obra o suficiente para afirmá-lo) com a totalidade. A contingência e a precariedade de Nocilla Dream é sequela da impossibilidade de prever-se o efeito de sua audácia experimental. Uma garrafa jogada ao mar, um pedido de socorro de um artista que conhece a tradição que o precede e sabe que a imprevisibilidade e imprecisão de certos fenômenos podem ser determinantes na sua falta de utilidade e necessidade. Por enquanto, Nocilla Dream paga o preço da barbárie parcial e corre o risco de, desmitificada sua autoconsciência, ser esquecida do lado de lá dos muros.


MALLO, Agustín Fernández. Nocilla Dream. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.



Autor: Daniel Baz



Flex Mentallo, o herói que precisávamos



“O espelho está farto de futuros” – Sylvia,

uma das personalidades

de Jane maluca na

Patrulha do destino (vol. 30)

Leio meu texto e percebo seu fracasso. É que falar de Flex Mentallo é uma tarefa tão difícil quanto ingrata. Feita por Grant Morrisson e Frank Quitely, a obra foi publicada como série em 1996 e, finalmente, é lançada entre nós pela Panini, em um encadernado belíssimo. Morrison dispensa apresentações. Já Quitely, um dos meus desenhistas favoritos e que é responsável por inúmeros trabalhos de peso com seu habitual colaborador, infelizmente não. O escocês começou a parceria com Morrison justamente em Flex Mentallo, trabalho que seria seguido por clássicos como We3, Grandes astros: Superman, Novos x-men, entre outros.
Flex Mentallo é um spin off do genial trabalho de Grant Morrison na revitalização da “Patrulha do destino”, e baseia-se na sua própria história pessoal. O tal herói homônimo e à moda antiga surge na edição 42, aparecimento fundamental para entendermos sua aventura solo, pois o personagem funcionava como uma paródia a Charles Atlas. Atlas era um fisiculturista que anunciava seu método especial de treinamento nas histórias em quadrinhos da década de 40. Uma de suas propagandas mais lembradas The Insult that Made a Man out of Mac apresentava um jovem nerd que, após apanhar de um marombado diante de sua namorada, utiliza o método veiculado pela publicidade para retornar ao fim musculoso e triunfal.
O processo de referenciar Charles Atlas, já inserido na mídia que veiculava a história, ainda que de forma paratextual, e redimensionar sua presença, confundindo os níveis do objeto estético, é a primeira sacada brilhante do roteirista. Além da metalepse proposta, sugere-se também o poder de transformação que os quadrinhos detêm, podendo se relacionar diretamente e de forma construtiva com o real. Os poderes de Flex seguem esta linha e são incríveis, como é comum no hall de personagens bizarros da Patrulha. Toda vez que flexiona os músculos, a realidade é alterada de alguma maneira, movimento que é acompanhado de uma auréola na qual está escrito “herói da praia”. A “homenagem” rendeu um processo a DC Comics, o que impediu a republicação da história até 2010. Eis o background da atual edição.
Pode se dizer, pecando pela síntese, que o enredo da obra se divide em três partes. Flex se envolve com um grupo terrorista, a faculdade X, enquanto procura um antigo conhecido, O Fato – famoso por suas frases feitas que afirmam o óbvio (no contexto da Patrulha do destino) e que funcionam de maneira irônica neste novo universo. Ao mesmo tempo, Wallace Sage, o criador de Flex e Fato, mas também um grande rock star, está sendo atormentado por delírios, causados pelo uso de drogas pesadas, o que o faz fantasiar com sua infância leitora de quadrinhos de super-heróis, enquanto conversa com um desconhecido ao telefone, o que permite a Morrison uma digressão emocionante sobre a nostalgia dos quadrinhos antigos. Contudo, estes ambientes não são distintos e é difícil saber qual deles é real, visto que se interferem mutuamente. Cercando tudo isso, há ainda um universo mais amplo no qual os super-heróis temem sua extinção, causada por uma energia maléfica denominada “Absoluto”. Ela foi responsável por ter enviado os heróis para o mundo ficcional (sim, aqui eles existiram um dia) e agora torna-se a grande causa que os expulsou de volta para a vida. Sendo assim, tudo é posto em cheque, a ficção a tudo contamina, e, nesse furor metalinguístico, Morrison e Quitely mostram todo seu brilhantismo.
Já na introdução do texto (cuja história, leitor incauto, foi totalmente inventada), reclama-se da dificuldade em lerem-se os quadrinhos “moderninhos”, já que “tem que ser um novo Einstein ou Stephen Hawking para entender o que diabos se passa nesses gibis.” Esta discussão estará presente em todo o trajeto de Flex e se relaciona com o momento em que a obra foi originalmente publicada, uma vez que ela se relaciona com a “crise das infinitas terras”, evento que acabou com os universos paralelos da DC na década anterior, mantendo uma única versão de cada herói, algo que Flex Mentallo revê (principalmente no último volume em que a “Legião das legiões” enfrenta o absoluto). Flex, portanto, também é um herói sobrevivente de uma “crise” em seu mundo.
Provavelmente por isso, na primeira cena do álbum, o herói está apreciando o ritmo vibrante dos aeroportos: “Sempre se pode contar com a vida” (p. 16). Preâmbulo que precede sua primeira cena heroica (na qual ele não faz nada, aliás). Nela, um artefato com formato de bomba, em que está efetivamente escrito “bomba”, não explode. Contrariando o próprio formato o objeto sequer é uma bomba, mas uma chave (p. 17), o que nos deixa atentos para a discrepância entre os ícones e seu real significado, algo que para um mestre como Quitely é só uma profissão de fé a ser explorada com eficácia. Além disso, por mais cartunesca que a ameaça seja, a reação de medo das pessoas é real, o que explora a identificação e atuação dos signos da ficção no mundo, assim como manifesta o poder dos fenômenos na sua relação com as ideias que fazemos deles.
Mais do que isso, na primeira cena da obra, O Fato está fora de quadro e joga a bomba que dará início a realidade, espécie de big bang que é substituído, em uma refinada transição, por um ovo (signo da criação de nova vida). As mesmas páginas mostram Flex visto de muitos pontos de vista, num repertório angular diverso que manifesta seu ingresso na multirrealidade, além de expressar certo fetiche com o arquétipo do super-herói, destrinchado pelos olhos ávidos do leitor (p. 16 -17).
Seguindo esta múltipla focalização, análoga aos múltiplos aspectos do real, Morrison pode voltar a um dos temas que mais o intrigam e que pululam em todas as sagas da Patrulha do destino, ou seja, a impossibilidade de fixar um conceito de real. Na sua contribuição à série dos heróis, temos inimigos como os homens-tesoura que recortam as coisas da realidade, ou o difícil caso do quadro que engoliu Paris. Aqui, retornam os personagens que tem problema com realidade (p. 48) e as cenas emblemáticas de um mundo no qual a ficção e o cotidiano se intercambiam – Flex num espaço cheio de portas vê TV (p. 24).
Voltando a sequência inicial, ela é seguida pela bagunça do espaço em que Sage transita. A desorganização e a superposição de realidades são representadas pelos quadros dentro do quadro, técnica amplamente utilizada por Quitely em muitos de seus trabalhos e que aqui é perfeita para o conteúdo expresso da página. Em seguida, o personagem revela a um desconhecido para quem liga: “Eu vou me suicidar e liguei pra vocês pra falar de gibis” (p. 40). Ora, Morrison também fala de gibis e Flex Mentallo pode ser lido como uma interpretação do desenvolvimento dos super-heróis norte-americanos. Em cada um dos quatro volumes, uma das eras paradigmáticas deste gênero – ouro, prata, bronze/moderna e pós-moderna – é evocada.
A terceira página das três primeiras edições, por exemplo, são páginas inteiras de Flex encarnando uma destas disposições: na primeira, exibindo todo seu heroísmo bonachão; na segunda, enfrentando suas fraquezas absurdas; na terceira, amargurado e sombrio, caminhando sobre a chuva; no quarto volume (pós-moderno), ainda que a página não seja mais a terceira, vemos a célebre imagem de seu corpo repleto de quadros menores que focalizam certas partes suas, num exercício de desconstrução quase finalizado. Da mesma forma, a terceira capa é uma paródia da capa de O cavaleiro das trevas, mantendo em destaque a tanguinha de Leopardo de Flex. Referindo o clima sombrio das histórias desta época, a primeira frase do volume é categórica: “Eu não acredito em super-heróis” (p. 65), que se segue ao explícito trecho: “Agora os super-heróis são tão merda quanto os rejeitados que escrevem e desenham e leem eles. Todos os heróis entraram na terapia e não sobrou ninguém para cuidar da gente.” (p. 75). Toda a reinterpretação do mundo heróico começa a fazer sentido, afinal “As bombas da faculdade X não destroem objetos, e sim certezas.” (p. 77). Mais do que isso, a própria decadência de Sage pode ser lida em paralelo com a decadência dos seus heróis prediletos.
Dessa forma, a Faculdade x é só mais uma alegoria deste platonismo revigorado feito por Morrison. Sua atuação revela a verdade por trás das coisas aparenciais. Os heróis escapam da sua realidade se refugiando na ficção de nossa vida e passam a ser perseguidos pelo absoluto. Dessa forma os gibis são criados na nossa realidade para que eles saibam de onde vieram. Em determinado momento, somos apresentados à fraqueza de Flex, o Mentallium Ultravioleta. Este mineral provoca mudanças de personalidade no herói que, ao transitar entre a realidade e a ficção, pode ser vítima das projeções feitas pelo leitor. Ou seja, ao ser atingido pelo minério maléfico, Flex pode se tornar você que lê. Morrison está elaborando uma crítica ferrenha à transposição das fantasias limitadas do leitor comum para o mundo da produção de quadrinhos, o que, hoje temos mais certeza, pode ser responsável pela mediocridade do gênero e preconiza sua decadência (simbolizada na fraqueza do herói). Feliz dos países que não precisam de heróis, disse certa vez Galileu na pena de Bertolt Brecht. Contudo, já que parece óbvio precisarmos deles, que sejam livres para representar as crises que nós mesmos criamos.



Autor: Daniel Baz

Memória sem ressentimento em Quadrinhos A 2



Já falamos aqui no Pato Fáustico da importância dos quadrinhos autobiográficos no cânone contemporâneo. Muitos deles, aliás, já foram analisados por aqui. Além da cada vez mais excessiva espetacularização do cotidiano pessoal (cujo auge se traduz nos inúmeros reality shows que se sustentam há anos na TV) e de certa descrença generalizada no futuro vindouro (o pós-apocalipse nunca foi tão especulado), a autobiografia atualmente se legitima pela força do testemunho, do resgate do passado alheio e da palavra empenhada do sujeito que sabe melhor do que ninguém o que diz, afinal, foi ele quem viveu para contar.
Certos fenômenos da história recente, com ênfase no Holocausto e nos regimes totalitários que assolaram o mundo, estabeleceram o valor cultural da memória e do relato autobiográfico de uma vez por todas em nosso imaginário, transformando o exercício mnemônico em um bem comum e uma necessidade jurídica e moral (é o que pensa Beatriz Sarlo em Tempo passado, por exemplo). Tal situação marcou algumas das experiências mais fundamentais das histórias em quadrinhos, a exemplo de Maus, de Art Spielgman, Persépolis, de Marjane Satrapi, Retalhos, de Craig Thompson, entre outros. Contudo, se o costumeiro é o tratamento denso da experiência subjetiva, preocupado com questões maiores do que a situação imediata do sujeito – algo evidente nos três exemplos citados anteriormente –Paulo Crumbim e Cristina Eiko, no delicioso projeto Quadrinhos a 2, se aproveitam com leveza e humor do capital cultural reservado à autobiografia em tempos atuais e utilizam o potencial do relato testemunhal de forma diferenciada.
Os autores usam da coesão da vida vivida para explorar uma série de situações episódicas de suas existências, em um ritmo frenético e polivalente que é a corrida diária destes dois “funcionários” da arte sequencial. No volume 1, o relato se centra na ida dos dois a Comic Con no Rio de Janeiro. Já o segundo, apresenta um conjunto heterogêneo de situações, começando pela hilária adoção do cão Pino –“Se até um mendigo consegue ter um cachorro, por que nós não?” (p. 27) – atingindo seu ápice ao fim, quando ambos vão na FIQ em Belo Horizonte e encontram outros quadrinhistas como Vitor e Lu Cafaggi, Damasceno, Daniel Werneck, entre outros. Aí reside o principal atrativo da história feita a quatro mãos: acompanhar a rotina dos quadrinistas em busca de reconhecimento e espaço (a cena da fila de autógrafos na FIQ é de cortar o coração).
As primeiras páginas do primeiro volume se pretendem paratextuais, narrando a ideia inicial para o álbum em si, além de servirem como uma apresentação metalinguística dos autores, representados pelos seus alter egos icônicos, que, na verdade, são eles mesmo, num círculo vicioso de ficção. Estes recursos metanarrativos serão seguidos por outros, cada vez mais bem sucedidos ao longo dos dois volumes, com ênfase nas páginas perdidas que são transcritas em tamanho menor, pois os arquivos restantes estão em baixa resolução (p. 39); escolha essa que rima com os esboços apresentados no final do segundo volume. Assim, para um andamento tão carismático e até despretensioso, é surpreendente o número de níveis narrativos e o conjunto de experimentações estilísticas explorados pelo surpreendente par.
Por muitas vezes, os autores tematizam a sua preocupação com os leitores, chegando ao ápice de propor um labirinto (sim, daqueles expostos em qualquer revista infantil) para o leitor resolver (p. 117), ou usar um “recurso avançado de quadrinhos” para ver Paulo debaixo d`água com a cara enterrada na areia após dar um mergulho (p. 56-58). Justamente por esta expressa preocupação com a recepção, os vários recursos autorreflexivos não caem no pedantismo, já que estão intimamente entrelaçados com o cotidiano dos personagens, imersos neste mundo de quadros e traços.
E é na exploração deste repertório cotidiano que os dois volumes cativam de vez. Pendurar um bilhete no hotel, escolher um restaurante para jantar ou entrar em um evento concorrido se tornam périplos do tamanho daquele visto em Moby Dick, obra que Eiko lê a todo momento durante as viagens. Tudo isso é tratado por um ecletismo visual que vai do mangá (maior influência na simplificação dos seres e nas hipérboles emotivas) ao quase realista. Prova final de dois autores que sabem muito bem o que estão fazendo, mas optam (e agradecemos por isso) por um quadrinho leve e cativante. Sendo assim, a memória aqui importa porque é afetiva e a autobiografia se legitima por um terreno menos óbvio, o da empatia sem denúncia nem ressentimento.



Autor: Daniel Baz