sábado, 28 de julho de 2012

O recheio do insólito em o nosso reino, de valter hugo mãe




A oralidade contemporânea e medieval. A precisão poética do fenômeno empiricamente fantástico. Um mundo transcendente, vasto e heterogêneo grafado em minúsculas e entoado a partir de vírgulas e pontos finais, apenas. Assim é a escrita de valter hugo mãe já no seu primeiro romance, o nosso reino, de 2004. O autor, que, além de romancista, é poeta, vocalista de rock (na banda Governo), DJ e editor de autores como Ferreira Gullar e Caetano Veloso, nos apresenta a história do menino Benjamin, de oito anos, no seu esforço para entender a morte e cujo desejo de transcendência o faz decidir se tornar santo junto com seu melhor amigo, Manuel.
O romance é narrado na primeira pessoa de Benjamin. Através dele, conhecemos uma aldeia durante a década de 70 em Portugal, sinédoque da ruralidade provinciana do país, onde a experiência coletiva é a única maneira de extraírem-se significados, já que a lógica dos atos e dos acontecimentos é compreensível apenas aos agentes do romance.  Num universo repleto de magia, onde não se podem deixar gritos presos em casa e a louca suicida pode perder seus filhos todos no mesmo dia, o senso coletivo é o ponto de partida de qualquer postulado semântico. Assim, todos os atos individuais são de certa forma semantizados pelo crivo da repercussão coletiva, o que favorece as interpretações alegóricas que o romance pode erigir.
O impacto da linguagem de valter hugo mãe, no entanto, não perde em nada para este causado pela escolha de seus temas. As suas minúsculas, por exemplo, podem ser alegóricas do pequeno, do menor, do marginal, como outros já disseram, contudo, prefiro pensar que seu atributo essencial refira-se à indistinção no nível dos signos usados, o que reforça a distinção do que eles produzem e revelam. Além disso, devido ao uso exclusivo de apenas dois acentos - pontos e vírgulas - também não há entonações diferenciadas na esfera significante. A língua é totalmente afirmativa, ou seja, para indagar ou exclamar, algo que as personagens fazem em todas as páginas, devemos estar familiarizados com a carga volitiva-emocional do discurso das personagens.
Isso se relaciona com outra característica expressiva dos livros de valter hugo mãe, o uso indiscriminado da oralidade. A sintaxe oral empresta vivacidade para a escrita do autor, permitindo que se explorem outras formas de organizar os conteúdos, provenientes da instantaneidade de atos de fala. O folclore é reinventado, pois seu perfomancer é um menino ainda não familiarizado com a duração da oralidade, isto é, com sua tradição, mas entende da presentificação de seus conteúdos, isto é, da sua transmissão. Assim, a perspectiva infantil e o uso de arcaísmos também ajuda a experimentar novos usos da linguagem. A repercussão de um mundo medieval e infante obriga os conteúdos a conviverem com contextos sígnicos que lhe são estranhos e cujo choque é responsável pela maioria das imagens inusitadas da obra.
Devido a tudo isso, a organização geral do livro é extremamente irônica. Os capítulos são divididos em 1,2,3 até 8, de forma descomprometida e apática. Tal naturalidade não condiz com o conteúdo plurifacetado e anômalo dos episódios relatados e parece manter-se afastado da profusão verbal de Benjamin. Como se o paratexto respeitasse a matéria exótica explorada.
É, no entanto, no capítulo 3 que valter hugo mãe parece explorar umas das portas giratórias de seu universo, quando o menino constata “[...] que importa pôr os pés no chão se tivermos um cérebro tão perfeito que consiga reproduzir essa sensação a cada momento.”. Um cérebro perfeito é capaz da maior imaginação, e, consequentemente, pode abrir mão da experiência. A volta no parafuso da cabeça da não-figuração barata, já que, como já constatou Carpentier “a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé”. O maravilhoso é uma espécie de rebeldia, mas para crentes, para os que comungam com sua lógica. Um comportamento humano expansivo e controverso, barroco, onde os espaços cheios da linguagem são tão importantes quanto os vazios provocados pelo inefável. valter hugo mãe, como Guimarães rosa, Rabelais,  Ariosto , e Quevedo, preenche o insólito de verbo e cria um mundo no avesso do avesso do avesso...


MÃE, Valter Hugo. O nosso reino. São Paulo: Editora 34, 2012.

Autor: Daniel Baz

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