sexta-feira, 6 de julho de 2012

Sexo e telefones na era pós-jazz


A primeira página de Black Kiss (1988), graphic novel de Howard Chaykin, apresenta o mesmo cenário visto através do mesmo ângulo. A única diferença é o movimento dentro do quadro de uma gata, que captura um filhote para amamentá-lo na próxima página. Nos balões que saem da secretária eletrônica centralizada no quadro lemos, ao mesmo tempo, coisas como:

“Eu sou uma putinha de pernas longas e olhos azuis, com fome de sexo...e consigo pensar nas suas mãos subindo pelas minhas coxas... me acariciando do jeito que você sabe que eu gosto...”

Sexo e cuidado juntos, num dos quadrinhos mais polêmicos dos últimos 40 anos. Depois desta cena, somos apresentados ao ícone Dagmar Laine, irmã gêmea da estonteante atriz Beverly Grove. Acontece que Grove é o único álibi do jazzista Cass Polack, que é acusado de ter matado sua esposa e filha, pois estava com ele quando tudo ocorreu. Paralelo a trama básica, crimes, misticismo, heresias, satanismo e sexo, muito sexo.
Na primeira cena sexual (p.13), envolvendo a “cega”, a personagem surge com parte de cima em negro e a parte de baixo em branco, num contraponto explorado em toda a narrativa. Na página, há apenas uma porta e nada mais. A simplificação do espaço obviamente realça as personagens, mas, aqui, também sugere um simbolismo que percorrerá todo o desenvolvimento da trama. Uma fronteira fechada, alienada do resto do mundo, com lógica própria e espantosa, como mostra o rosto do homem, na mesma cena. A simbologia do trecho é reforçada na página 48, em que fechar a porta não é unicamente ter privacidade, visto que enxergamos através dela, admitidos no mundo das perversões privadas.
          Neste terreno, a comunicação é complicada, seja pelo uso excessivo de telefones (capítulo 1 começa e termina com um deles, que também estão no início do capítulo seguinte) e dos atrasos da secretária eletrônica que, já na primeira parte mostra uma anacronia das informações dadas, algo que o suspense da história só irá enfatizar. O telefone também funciona como uma fina ironia, já que a distância corporal entre interlocutores é obviamente subvertida nas principais cenas da HQ. O problema da comunicação entre os seres está brilhantemente exposto no início do sexto capítulo em que os balões se espalham por um ambiente cheio de pessoas e cujos rabichos estão bem longe de suas respectivas fontes (p. 69), ou quando diálogos de quadros anteriores terminam nos quadros seguintes (p. 118). Nesse sentido, o sexo é o único caminho para as principais revelações da trama, como quando Cass, após transar com Dagmar e Grove, descobre que a primeira é um travesti (p. 54).
Algumas escolhas de Chaykin são geniais, como o uso de rostos recortados e colocados nos meios das páginas. Alguns deles diminuem o espaço à dimensão restrita objetiva das personagens, intensificando o conflito íntimo e denotando a tensão euXmundo, como na página 22. Outros são ainda mais geniais, como o sexo oral em primeiro plano (p. 27), que rima com a cena antes exposta. Falando em rimas, não posso deixar de lembrar também os lugares comuns, como a entrada em uma garagem ser análoga ao orgasmo também na cena anterior (p. 28).
Outros recursos já são mais populares, como o uso revolucionário das onomatopéias (tanto quanto Frank Miller, diga-se de passagem). Cenas como a já citada, onde Cass recebe sexo oral de Dagmar, são seguidas do som do pneu do carro que na parte inferior da cena conecta todos os quadros. Sem falar em outras passagens (p.25), em que o “beep” da secretária eletrônica, o “slam” de uma porta, e o “mmmrrowwwwrrr” de uma gato, servem para ambientar a cena, compõe o espaço sugerindo o estado de espírito das personagens (algo semelhante na página 85).
Muitas referências pop e dos quadrinhos - não posso deixar de pensar, por exemplo, em Spirit, na cena da orgia em que Cass usa uma máscara, num pastiche do herói clássico (p. 86-87); uso preciso dos dispositivos clássicos (rabicho e forma de raio quando um rádio-relógio interrompe a transa de Eric); quadros que extrapolam seus limites para intensificar um momento de extrema violência e tortura (p. 100); todos recursos inovadores, desse noir feito por um fã dos irmãos Cohen e da forma como eles subvertem todos os gêneros com que trabalham.
Chaykin termina sua história no mesmo quadro em que ela começa, mas como em Rastros de ódio, de John Ford, a cena inicial inverte o significado primeiro (a ausência do gato e da mão que surge ao fim para atender ao telefone é quase a vitória da incomunicabilidade). Ao invés de fechar a história, abre-se ao fim um mundo complexo, que parece ter abandonado a explicação para a conduta e a motivação de seus heróis. Sorte nossa que podemos voltar e buscar uma resposta.
 



CHAYKIN, Howard. Black Kiss. São Paulo: Devir, 2011.

Autor: Daniel Baz dos Santos

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