A primeira
página de Black Kiss (1988), graphic
novel de Howard Chaykin, apresenta o mesmo cenário visto através do mesmo
ângulo. A única diferença é o movimento dentro do quadro de uma gata, que
captura um filhote para amamentá-lo na próxima página. Nos balões que saem da
secretária eletrônica centralizada no quadro lemos, ao mesmo tempo, coisas
como:
“Eu sou uma putinha de pernas longas e olhos azuis, com fome de
sexo...e só consigo pensar nas suas mãos subindo pelas minhas
coxas... me acariciando do jeito que você sabe
que eu gosto...”
Sexo e cuidado
juntos, num dos quadrinhos mais polêmicos dos últimos 40 anos. Depois desta
cena, somos apresentados ao ícone Dagmar Laine, irmã gêmea da estonteante atriz
Beverly Grove. Acontece que Grove é o único álibi do jazzista Cass Polack, que
é acusado de ter matado sua esposa e filha, pois estava com ele quando tudo
ocorreu. Paralelo a trama básica, crimes, misticismo, heresias, satanismo e
sexo, muito sexo.
Na primeira
cena sexual (p.13), envolvendo a “cega”, a personagem surge com parte de cima
em negro e a parte de baixo em branco, num contraponto explorado em toda a
narrativa. Na página, há apenas uma porta e nada mais. A simplificação do
espaço obviamente realça as personagens, mas, aqui, também sugere um simbolismo
que percorrerá todo o desenvolvimento da trama. Uma fronteira fechada, alienada
do resto do mundo, com lógica própria e espantosa, como mostra o rosto do homem,
na mesma cena. A simbologia do trecho é reforçada na página 48, em que fechar a
porta não é unicamente ter privacidade, visto que enxergamos através dela,
admitidos no mundo das perversões privadas.
Neste terreno, a comunicação é
complicada, seja pelo uso excessivo de telefones (capítulo 1 começa e termina
com um deles, que também estão no início do capítulo seguinte) e dos atrasos da
secretária eletrônica que, já na primeira parte mostra uma anacronia das
informações dadas, algo que o suspense da história só irá enfatizar. O telefone
também funciona como uma fina ironia, já que a distância corporal entre
interlocutores é obviamente subvertida nas principais cenas da HQ. O problema
da comunicação entre os seres está brilhantemente exposto no início do sexto
capítulo em que os balões se espalham por um ambiente cheio de pessoas e cujos
rabichos estão bem longe de suas respectivas fontes (p. 69), ou quando diálogos
de quadros anteriores terminam nos quadros seguintes (p. 118). Nesse sentido, o
sexo é o único caminho para as principais revelações da trama, como quando Cass,
após transar com Dagmar e Grove, descobre que a primeira é um travesti (p. 54).
Algumas
escolhas de Chaykin são geniais, como o uso de rostos recortados e colocados
nos meios das páginas. Alguns deles diminuem o espaço à dimensão restrita
objetiva das personagens, intensificando o conflito íntimo e denotando a tensão
euXmundo, como na página 22. Outros são ainda mais geniais, como o sexo oral em
primeiro plano (p. 27), que rima com a cena antes exposta. Falando em rimas,
não posso deixar de lembrar também os lugares comuns, como a entrada em uma
garagem ser análoga ao orgasmo também na cena anterior (p. 28).
Outros
recursos já são mais populares, como o uso revolucionário das onomatopéias (tanto
quanto Frank Miller, diga-se de passagem). Cenas como a já citada, onde Cass
recebe sexo oral de Dagmar, são seguidas do som do pneu do carro que na parte
inferior da cena conecta todos os quadros. Sem falar em outras passagens
(p.25), em que o “beep” da secretária eletrônica, o “slam” de uma porta, e o
“mmmrrowwwwrrr” de uma gato, servem para ambientar a cena, compõe o espaço
sugerindo o estado de espírito das personagens (algo semelhante na página 85).
Muitas
referências pop e dos quadrinhos - não posso deixar de pensar, por exemplo, em
Spirit, na cena da orgia em que Cass usa uma máscara, num pastiche do herói
clássico (p. 86-87); uso preciso dos dispositivos clássicos (rabicho e forma de
raio quando um rádio-relógio interrompe a transa de Eric); quadros que
extrapolam seus limites para intensificar um momento de extrema violência e
tortura (p. 100); todos recursos inovadores, desse noir feito por um
fã dos irmãos Cohen e da forma como eles subvertem todos os gêneros com que
trabalham.
Chaykin
termina sua história no mesmo quadro em que ela começa, mas como em Rastros de ódio, de John Ford, a cena
inicial inverte o significado primeiro (a ausência do gato e da mão que surge
ao fim para atender ao telefone é quase a vitória da incomunicabilidade). Ao
invés de fechar a história, abre-se ao fim um mundo complexo, que parece ter
abandonado a explicação para a conduta e a motivação de seus heróis. Sorte
nossa que podemos voltar e buscar uma resposta.
CHAYKIN, Howard. Black Kiss. São Paulo: Devir, 2011.
Autor: Daniel Baz dos Santos
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