sábado, 21 de julho de 2012

A volta de um clássico


Diferente do que os pessimistas afirmam, de vez em quando a cultura pop e a cultura top podem sim ser a mesma coisa. A prova disso pode ser encontrada nas bancas de revistas com a iniciativa da Editora Panini em relançar (com ótimo preço) a Graphic Novel V de vingança, de Alan Moore e David Lloyd. Produzida entre 1981 e 1988, e publicada na revista Warrior, a série conta em dez volumes, a história de um mundo sob a liderança de um governo fascista que assumiu as rédeas da sociedade após um período de caos proveniente de uma hecatombe nuclear. Faz isso, seguindo a trajetória de V, um anarquista erudito de capa, máscara e facas que, durante o período de um ano, promove uma série de atos contra o parlamento britânico, visando sua queda; e também de Evey, mulher que ao decidir se prostituir (após perder os pais que lutavam contra a ditadura e se encontrar em condição miserável) é atacada por membros do dedo (como são chamados os agentes da polícia inglesa) e salva pelo herói mascarado.
A obra foi revolucionária em uma série de aspectos, mas é impossível não começar falando da qualidade do roteiro e desenhos dos autores responsáveis. O enredo é impecável e tem na intertextualidade um dos seus mais eficazes aspectos. Rolling Stones, Shakespeare, Ray Bradbury e Aleister Crowley são alguns dos autores que tem suas obras citadas pelo protagonista. Num momento histórico em que a arte foi proibida (remetendo claramente a Fahrenheit 451), as citações são apenas mais uma forma de transgressão. Um jeito de inverter as categorias semânticas do presente com referências a campos textuais que lhe são estranhos (neste sentido as ininterruptas indagações de Evey mostram a discrepância entre os dois tempos).
Os desenhos de Lloyd também são primorosos. Em cenas como na página 81, os monitores são resumidos a quadrados e retângulos, cuja forma geométrica remetem ao conservadorismo das autoridades que conversam no quadro. Na página 97, um globo de luz produz um padrão circular e regular que acompanham a valsa de V e Evey e compõe com uma porta o único espaço que antecedem a guinada na vida da personagem. Sem falar na ideia para o herói, inspiradas em Guy Fawkes que em 5 de novembro de 1605 tentou explodir o parlamento e assassinar o Rei Jaime I. A máscara sorridente, a peruca lisa e a capa com chapéu firmaram o “ícone por trás de uma ideia”, como o próprio herói expõe. Como no teatro grego, a máscara imóvel maximiza a experiência de uma ideia pura, resistente ao tempo e a morte, algo que nunca muda, permanecendo impassível diante de qualquer transformação.
Mas a grande inovação está na audaciosa escolha de contar a história sem o auxílio de onomatopéias e sem a ajuda dos balões de pensamento e dos clássicos recordatórios, ou seja, quadros em que narrador ou personagem resumem a história, auxiliando o trabalho seletivo do desenhista. Apesar de que há a narrativa em primeira pessoa em algumas passagens. É espetacular  o que o texto alcança a partir destes recursos. Primeiro, privar o mundo de manifestação sonora é uma forte sugestão dos limites impostos pela perda da liberdade. O silêncio envolve todas as ações numa imagem magistral da furtividade requerida por V e seus atos. Tal interpretação é análoga ao fato dos movimentos de V não serem seguidos por linhas cinéticas, como que aumentando o desafio de transformar o mundo através de suas ações.
A ausência dos recordatórios funciona de forma semelhante. Obriga-nos a olhar o mundo de dentro, sem comentários não comprometidos com os eventos. Além, é claro, de enfatizar o envolvimento do leitor no espaço entre os quadros, já que dificulta o processo conclusivo que envolve toda recepção de quadrinhos. Aumenta a importância da sarjeta ou calha (espaço entre os quadros) e permite a criação de passagens fabulosas como na página 253, onde Evey torna-se V. Aqui a pouca mudança temporal e espacial entre os quadros, revela uma forte progressão da personagem que resgata todo o tempo vivido até ali. Uso genial de uma arte em que o tempo é construído espacialmente. O último quadro, quando o sorriso de Evey torna-se o mesmo de V, é mais largo, o que também é um aspecto de captura temporal mais ampla, mais densa por parte do artista.

As cores de V de vingança (que foram acrescidas depois) são outro show à parte. Tons sutis e que, em alguns momentos, permitem que o universo preto e branco do original ainda seja percebido. A ideia de um mundo esvanecendo, que em qualquer momento pode desaparecer, é acrescida de impacto pela cor que some dentro das formas. Em alguns casos pontuais, como no plano excelente da página 159 o rosto de Evey perde os traços com efeito da água e a cor produz um rosto amorfo, um borrão que mostra a perda da identidade na tortura.
Quanto aos balões, como já disse Eisner, estes podem funcionar como a emanação física de um personagem, uma sinédoque de si. Os de V são ondulados e sinuosos, que normalmente são usados em pensamentos ou falas no passado, perfeitos, portanto, para um sujeito antiquado e que vive uma ideia, há neles um aspecto icônico que complementa a imagem do personagem
Por fim, vou falar ainda de duas cenas, que provam mais uma vez a eficácia técnica de dois mestres da linguagem. Começando pelos padrões curvos da página 235 até 239 que precedem a grande reviravolta da história. Repetidos na escada em caracol ensaguentada, que forma um círculo, mas não sem fim. A espiral é a imagem de algo que progride ainda que de forma circular, não unidirecional, como o percurso de Evey e V.
Por último, um detalhe que só percebi relendo a obra para escrever este texto. Em todos os volumes só há um quadro que ocupe uma página inteira.  Ou seja, quase nenhum momento é enaltecido pelos criadores, o que condiz com a ideologia anarquista de V. A exceção está em um único momento: quando Evey sai do cativeiro e descobre a verdade (p. 168). O quadro está repleto de quadros, simulando a realidade cheia de molduras, a estrutura em abismo em que se tornou a vida de Evey, na qual tudo é farsa ou teatro, como V já lhe ensinara: “Teatro é tudo, Evey” (p. 33)
Celebremos, portanto, o 5 de novembro. Comemoremos o pop top.



MOORE, Alan; LOYD, David. V de Vingança. São Paulo: Panini Books, 2012.

Autor: Daniel Baz


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