sábado, 14 de julho de 2012

A memória, a imaginação e Le Clézio




Jean Marie Gustave Le Clézio venceu o prêmio Nobel em 2008 e tem mais de 30 livros publicados. Em seu primeiro trabalho, Le Procès-verbal ganhou o Renaudot na França e mesmo assim ainda é um desconhecido entre nós. Talvez isso mude com o catálogo da editora Cosac Naify pondo um de seus romances, O Africano, por 21 reais nas livrarias. Centrado na figura idealista do pai aventureiro do autor que atua na África colonial (Camarões, depois Nigéria) como médico e que, depois de ter a família afastada na segunda guerra e de descobrir que não passa de mais uma peça de controle social pela metrópole, se torna um sujeito sisudo e temido pelos filhos.
O primeiro capítulo, “O corpo”, serve como a primeira metonímia da liberdade, explorada pelo texto: “Na África, a falta de pudor dos corpos era magnífica” (p. 8). Liberdade “explorada”, pois nunca atingida plenamente pelo texto, sempre estranha ao menino, cujo corpo fica “dolorido” e “firme” nas terras coloniais. O narrador logo deixará claro: “eu nasci naquele tempo distante, muito longe dos adjetivos, dos substantivos” (p. 9). As palavras não só são insuficientes, como não fazem parte das atitudes infantis de apreensão do mundo, justamente aquelas que importam para as memórias do narrador. Também por isso, uma série de fotos, do arquivo pessoal do autor, são utilizadas para, contrapostas ao texto, ajudar no exercício de recuperação do passado. Ainda que no resultado final, ambos os registros sejam complementares para entendermos o complexo de sensações envoltas na história narrada.
A ficção de Le Clézio já começa com um mapa - medical area - de Banso, e é pontuado por imagens que rompem com a lógica interna da sintaxe verbal, como que pontuando os limites do signo lexical. O que é reforçado pelo fato de lermos as descrições antes de termos acesso as imagens descritas, o que sempre resulta numa quebra brutal de expectativa e nos coloca no impasse memória e imaginação, que é central para o texto. Em outros trechos, o autor questiona a legitimidade do próprio discurso “Mas pode ser que, ao descrevê-lo, eu torne por demais literário, por demais simbólico, o furor que animava nossos braços, quando atacávamos os cupinzeiros”  (p. 27). É ainda neste capítulo que o narrador assume como aprendeu a esquecer os rostos para conhecer os corpos, numa ligação direta com o sugestivo último capítulo, “Esquecimento”, e que enfatiza mais ainda um tipo de experiência física aparentemente irrecuperável pela palavra.
A simbologia é admitida como forma para recuperar campos semânticos de difícil apreensão. Minha parte predileta consta no segundo capítulo “Cupins, formigas etc.” em que a relação das crianças européias e os resignados cupins, que sofrem sem retrucar, as violentas formigas, que sabem se defender e o fascinante escorpião, morto pelo pai, moldam as relações sociais, principalmente entre colônia e metrópole. Além disso, diferem os brancos dos negros, já que estes não ousam atacar a fauna local.
Tudo compõem um espaço mítico, quase paradisíaco: “Uma terra original, de alguma forma, onde o tempo teria dado marcha a ré, desmanchando a trama de erros e de traições” (p. 66) A passagem dos dias estagnava, ou até regredia. Mas a dubiedade regresso e progresso torna a categoria temporal muito mais interessante já que  o solo africano é também um espaço de iniciação, uma “antecâmara do mundo adulto” (p. 47), deste forma, move também o sujeito para o porvir.
Para os que acompanham o jargão de algumas tendências atuais de estudo da literatura, ao longo do livro, alguns dos temas principais do cardápio da crítica contemporânea são desbravados, como, por exemplo, o exílio do pai desterrado, o choque de culturas, a colonização e o imperialismo, a autoficção. Mas, agrada-me observar mais a fundo o duelo entre memória e narrativa como espaço da construção de uma identidade dupla, narrativa e pessoal, ambas envolvendo um estilo específico e um conjunto de experiências particulares. Por isso, opto por encerrar minhas reflexões com o complexo memória/imaginação que foi deixado em aberto anteriormente. Complexo qu efunciona de forma complementar e que é dividido em dois aqui com fins práticos-analíticos.
O texto de Le Clézio não tem medo de ser determinista. Foi o meio, a raça e o momento histórico, mais especificamente a guerra, que fizeram com que seu pai se tornasse quem foi. A reverência decorre justamente do sentimento de pertença a essa mesma trajetória, cujo acesso envolve a união de forças entre imaginação e memória. “É escrevendo que agora o compreendo. Essa memória não é somente a minha. E também a memória do tempo anterior ao meu nascimento, quando meu pai e minha mãe andavam juntos pelas estradas do planalto, nos reinos do oeste de Camarões.” (p. 115) A memória, permite que se habite espaços imaginários, ficcionais e tomá-los mesmo que a força. Além disso, a narrativa é o meio do memorialista fingir a organização natural dos fatos. A sintaxe narrativa permite ao escritor e ao leitor a sensação de domínio, da fuga da aleatoridade, pela construção de coerências semânticas internas.
Ficamos, portanto, no impasse da primeira pessoa, visto que não se sabe qual referente buscar. O interno que garante uma estrutura narrativa particular, pontilhada e limitada, ou o externo, que permite admitir no texto um campo semântico experiencial e que ressignifica a narrativa pela ordenação dos efeitos na realidade da vida. Atestado disso, seriam novamente aqueles vários momentos em que se reclama a limitação da palavra escrita. Antes de serem metaficcionais, estes comentários estão medindo a experiência do texto por outra que não lhe diz respeito.
Tudo isso nos remete ao final do século XIX, e a crença ainda presente em textos como este de que a memória poderia ser o eixo de ligação entre corpo e mente, um lugar privilegiado da epistemologia. Por outro lado, para autores como Paul Ricouer, em A memória, a história, o esquecimento, expressa-se a opinião de que na fenomenologia da memória a pergunta “Quem lembra?” é subordinada a “O que se lembra?”, deixando de lado a tradição filosófica e sua ênfase no lado egológico da experiência mnemônica. Quando o narrador descobre que estavam comprando as estátuas, máscaras e tronos que ele usava no cotidiano, isso fica ainda mais evidente, pois, a compra envolve pessoas  “para quem essas máscaras e esses tronos não eram coisas vivas, mas sim a pele morta do que se chama com frequência arte” (p. 69). O objeto da memória é definitivo para construirmos uma identidade móvel, mas passível de exame. Uma identidade narrativa viva e que busca a autenticidade artística num exercício de linguagem carregado de experiências eticamente plausíveis.
No final do texto, o narrador vê nos jornais as fotos das guerras em Biafra e da Argélia e não reconhece, na África que o mundo começa a descobrir, a sua querida terra da infância. Essa é a diferença básica da autoridade da memória quando esta subordina a si a imaginação. Não importa o que aconteça, a carga da distância temporal será essencial para o entendimento dos fatos e dos homens neles envolvidos.


CLÉZIO, Le. O africano. São Paulo: Cosac Naify, 2012.



Daniel Baz

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