sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Tangolomango decifrado e devorado


 
A família é a expressão de um modo de distribuição, não de produção, como já expressou Ferenc Féher na sua, hoje pouco lida, crítica a Lukács. Para ser inserida na lógica degradada do romance (independente de Lukács, esta é uma característica da romanesca moderna), a família deve também perder seus valores. A qualidade comunitária da família, ilusória da proteção do indivíduo diante do mundo exterior é destruída. Romper com os laços familiares é, portanto, uma forma de emancipação do indivíduo, parafraseando mais uma vez Fehér. 
Todas estas questões parecem pertinentes ao exame de Tangolomago: ritual das paixões deste mundo, do pernambucano Raimundo Carrero, autor que viveu um trauma pessoal recentemente, quando, em outubro de 2010 sofreu um AVC (acidente vascular cerebral). Dois meses antes o romancista havia vencido o Prêmio São Paulo de Literatura pelo romance "A Minha Alma É Irmã de Deus". Em 2011, sai o romance "Seria uma Sombria Noite Secreta", terminado antes do AVC, e agora, com este novo título, podemos finalmente comemorar a recuperação deste notável autor brasileiro. Nele, acompanhamos um dia na vida de Tia Guilhermina que aparecera em Maçã Agreste (1989) e O amor não tem bons sentimentos (2007) e cuja história se insere na saga da família de Ernesto e Dolores, que já conta com mais de meia dúzia de livros. Em pleno carnaval de Recife, a mulher decide extravasar anos de pudismo e de reclusão, “Não dava bom dia, não conversava com ninguém” (p. 28), enquanto se relaciona com o sobrinho Matheus, por quem é apaixonada e que matou e estuprou a mãe e a irmã.
O romance relata, com narração onisciente, o périplo da velha mulher, intercalando trechos de sua história passada, principalmente relacionados a um antigo carnaval. A rotina de caçoadas a qual está sujeita pelos vizinhos é precisamente retratada pelo andamento sintático e repetição vocabular, a exemplo do trecho: “Os meninos gritavam o apelido: puta de anjo! E diziam, e diziam. As moças, as mulheres fechavam os olhos para não ouvir. Fechavam os olhos.” (p. 31) A incoerência perceptiva, de um momento festivo experimentado como tristeza, expressa na passagem será a profissão de fé do fim de seu percurso, como veremos.
Nesse sentido, Luís Agusto Fischer, ao comentar o livro para a Folha de São Paulo, acerta ao falar da mescla de carnaval e melancolia como fator de estranheza, mas não comenta a mudança de perspectiva dada ao senso comum relacionado ao imaginário da festa popular. Aqui, o carnaval não vem como corpo coletivo, mas como violência provocada pela liberação do corpo individual, cujo efeito mais impactante é a alienação:

“Tia Guilhermina parece triunfar com os cabelos brancos e os olhos verdes, e uma estranha sombrinha feito uma bengala, dando breves passos de dança. É recebida com apupos, palmas, e ela, pela primeira vez exposta à multidão, não sabe como se comportar, talvez pudesse ficar ali se tivesse um piano, ou, quem sabe, em companhia de Matheus, para cantar um bolero ou um tango ao violão. Pura exibição desabrigada.” (p. 64)

No trecho acima, a conversão da “sombrinha” em “bengala” e a antitética composição da aparência física de Guilhermina (“cabelos brancos”, “olhos verdes”) são algumas das manifestações carnavalizadas da própria linguagem que subverte o sentido das imagens que ela mesma referencia, corroendo qualquer possibilidade de unilateralidade discursiva. Neste contexto de inversões semânticas é fundamental o trecho no qual, em pleno Carnaval, os crimes da ditadura são representados (p. 72), convertendo a temporalidade icônica da carnavalesca (o eterno presente) nos fragmentos benjaminianos da história a contrapelo.
Seguem-se a isso, as imagens corporais, alçando a carne e sua sensualidade aos redutos mais profundos da semântica da obra, cenas das quais os banhos da tia com Matheus são as mais emblemáticas, tendo o ápice no êxtase exibicionista, quando fica nua diante da multidão.  A paixão carnal chega a alterar a narração, quando a protagonista assume rapidamente a primeira pessoa durante um delírio erótico (p. 39). Contudo, mesmo esta ode às imagens fisiológicas recebe sua contraparte grotesca em trechos como “Assim, ofereceu a tia Guilhermina um velho penico para que possa tomar cerveja, diz. E ela ri, ri com o sorriso que parece carregar sempre naquelas ocasiões. Mas antes de beber, ergue o penico com as duas mãos e se coroa.” (p. 81); ou quando a velha apanha de um grupo de jovens mais ao fim do romance.
O desejo corpóreo também é vivenciado de forma traumática, pois se relaciona com a desestruturação dos laços familiares, o que nos permite voltar ao postulado inicial desta resenha. O romance enquanto gênero tem a consciência pesada por se relacionar intimamente com a ética contemporânea e seus valores. Na sua tradição e relação com a formação do homem moderno, o “romance familiar” foi uma das formas do imaginário que mais o preencheu de fôlego, seja pela sua manutenção (cuja vertente mais célebre é a “educação sentimental”), ou na sua ruptura (Robinson Crusoé, Moll Flanders, etc...). Tangolomango pode ser lido nessa perspectiva, pois usa da desintegração familiar para estabelecer a alienação como valor, cuja lógica corrosiva renega até mesmo o eterno presente carnavalesco. Contudo, o faz pela sensualização da vida familiar, mantendo essa mesma desassociação no terreno do trauma e na inscrição moral da anormalidade, na linha do que fez Flaubert com Bovary e tentou Tosltói com Karênina.
O impacto da obra segue ainda a trajetória de Carrero, ligada ao movimento armorial de Ariano Suassuna, na década de 70, buscando equacionar as manifestações populares da arte com as formas eruditas. Ainda que não seja o ponto alto desta semiestética, o livro ganha interesse também por ter rendido uma discussão entre o escritor e o crítico, também pernambucano, Cristiano Ramos, que teceu severas reservas à obra e recebeu as defesas do responsável no Facebook, num clima que lembra as famosas discussões oitocentistas que marcaram nossa literatura e a ajudaram no seu pensamento autocrítico. Como num dos títulos de Tangolomango seja na sua personagem decadente, seja na sua recepção ora fria, ora positiva, este romance é certamente aquele tipo de obra crítica que devora a si mesmo, decifrando-se.

 Autor: Daniel Baz

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