terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O som ao redor: Demolidor, de Mark Waid




O novo arco de histórias do Demolidor, ganhador do Eisner de Melhor Série, roteirizada por Mark Waid (também vencedor do Eisner por este trabalho), com desenhos de Paolo Rivera e Marcos Martin, e cores de Javier Rodriguez e Muntsa Vicente, reinsere o herói no seu lugar de direito: a nata das publicações da casa das ideias. A abordagem de Waid é extremamente inteligente, se contrapondo à paradigmática leitura feita por Frank Miller, que investiu (como de costume na década de 80) na amargura, nas perdas pessoais e crises existenciais causadas por elas como motivos centrais para os enredos do homem sem medo. Aqui, logo no primeiro volume, uma brecha de seu passado surge para ser abandonada quando o herói se mostra determinado em “começar de novo” para não acabar “ficando louco” (p. 14).
Dessa forma, o herói volta a rir, em histórias mais leves e que resgatam duas de suas características mais distintas, a fisicalidade icônica de seu comportamento e sua audição superaguçada. Desde suas primeiras histórias, nas quais o herói era desenhado em poses extravagantes, fruto de movimentos impossíveis que poderiam se ligar em contiguidade com o quadro seguinte, a acrobacia era uma maneira de inovar na dinâmica das cenas, assim como na excentricidade do “heroísmo”, expresso em posições corporais jamais reproduzidas por humanos normais (algo que Todd Macfarlane bem compreendeu na sua fase com o Homem-aranha).
A primeira cena investe nesta reinterpretação ao expor quadros soltos e pequenos, posicionados uns ao lado dos outros, e repletos de recordatórios que relatam a origem de Matt Murdock. A fragmentação do mundo em certas metonímias (olho, balança) terá relação com a forma fragmentada como o sonar do herói capta o mundo. A representação visual do sentido auditivo do Demolidor será só uma das ferramentas de experimentalismo gráfico da obra. Outras virão dos vilões, a exemplo do momento em que o poder do Mancha suga até mesmo os quadros para dentro de si (p. 10-11); ou quando, no segundo volume, surge um obscuro vilão do Quarteto Fantástico e Pantera Negra feito de... ruído.
De fato, são as experimentações com o nível sonoro da trama que se destacam neste encadernado. Principalmente, no trabalho com as Onomatopéias, poucas vezes visto em histórias deste tipo. Na página 57, por exemplo, quando o herói berra e se liberta, seus gestos são desenhados dentro delas, num jogo interessante de material sonoro e ação, que enfatiza a ensurdecedora situação do protagonista, preso pela sua própria habilidade (recurso repetido na página 123). Em outro momento, em que o herói está transtornado em um trânsito convulsivo e quase sendo atropelado, as onomatopéias são grafadas sem o preenchimento que formam as letras, tornando-se apenas contornos recheados de branco, de forma a mostrar a desorientação de Matt. Em outro momento, para marcar o impacto de certo ataque, o som é grafado nos lados de um navio, mais uma vez enfatizando as troca de níveis entre algo imaterial, o som, e sua materialização. Por fim, não se pode ignorar a página dupla (p. 138-139), na qual quadros dentro do quadro maior focalizam o sentido de Matt trabalhando, numa fragmentação relacionada com a forma na qual o álbum é aberto.
O trabalho conta ainda com ótimas escolhas narrativas, a exemplo do traço leve e claro que combina com o novo tom empregado. Além disso, Waid acerta ao mostrar a ambiguidade da ação de Matt na sociedade, já que ele executa os dois lados da lei, denunciando criminosos como advogado e os esmurrando de madrugada enquanto super-herói. Entre outras técnicas de composição certeiras, o final do volume 4 é um primor de suspense ao utilizar uma informação visual que nós temos, mas que Murdock e outro cego que o acompanha não podem ter. Fecha o cardápio a maneira na qual o Demolidor e o Capitão América entram em combate e trocam de armas, numa boa tradução da inversão de valores operada durante a cena. Certamente, muito mais poderia ser dito a respeito desta revitalização do homem sem medo, mas que fique o principal: Waid, Rivera, Martin e os demais responsáveis pelo título trazem uma das melhores versões de um personagem, enfatizando o ônus e bônus da supersensibilidade do herói.

Autor: Daniel Baz

Nenhum comentário:

Postar um comentário