terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Gustavo Duarte e seu primor espacial




E a Graphic Msp chega ao seu terceiro álbum... Sidney Gusman, editor responsável pela empreitada, não poderia estar mais satisfeito diante do sucesso da série. Para quem está desatualizado com o mercado de quadrinhos brazucas, a Graphic Msp é um projeto no qual artistas nacionais reinterpretam personagens do Maurício de Souza em álbuns de aproximadamente 80 páginas. Já foram publicados Astronauta: Magnetar, escrito por Danilo Beyruth e protagonizado pelo solitário viajante espacial e Turma da Mônica: laços, feita a quatro mãos pelos irmãos Vitor e Lu Cafaggi, apresentando o quarteto da rua do Limoeiro no centro da trama.
Contando já com um quarto trabalho, uma interpretação do Shiko para o Piteco, chega a hora de comentar a realização mais esperada por mim: Pavor espaciar, leitura de Gustavo Duarte a respeito do Chico Bento (semi-inédita, uma vez que o autor já desenhara o roceiro no projeto MSP 50 artistas). É impossível deixar de lê-lo à luz de seu predecessor, principalmente levando-se em conta que sua comparação com Laços é inquietante, já que o trabalho de Gutavo Duarte é em tudo oposto ao feito por Vitor e Lu (com exceção, claro, na qualidade).
Se no trabalho anterior o ponto forte era a carga emocional, a psicologia dos personagens e os diálogos espertos, aqui o traço é limpo, cirúrgico, objetivo e os seres são basicamente físicos, ou seja, boa parte da história não tem diálogos. Isso não é surpresa, visto que Duarte é especialista em enredos mudos, como prova seu álbum anterior Monstros!, seus trabalhos de menor extensão, e os oito HQMix que tem na estante. Todo este aparato diferenciado é usado para contar uma história tipicamente caipira de abdução.
Sim, Chico Bento, Zé Lelé, o porquinho Torresmo e a galinha “Gicerda” devem enfrentar seres de outro planeta que pretendem estudá-los. E este interesse científico é um pouco transposto para a técnica de Duarte, que disseca os protagonistas, examinando suas possibilidades por todos os lados. Além disso, há uma inteligente atualização do personagem, tradicionalmente associado ao típico herói nacional, como Jeca Tatu de Lobato e a mítica criada por Mazaroppi, cuja sabedoria não-oficial pode superar a mente mais civilizada (e tal conexão direta com um ambiente inculto e campesino é representado pela tranquila troca de mentes entre Zé Lelé e um certo animal). Ou seja, esta história do Duarte pode ser lida como uma versão das histórias em que Chico tem de lidar com o mundo de seu primo citadino Zeca, tão ligado às novas tecnologias. Contudo, ao invés de estranhar a nova realidade - o que é feito em histórias famosas, como “Chico no Shopping”, na qual até mesmo uma escada rolante ou uma fonte são objetos de outro planeta - aqui os roceiros rapidamente apreendem a interagir com os enigmas do outro mundo. Sendo assim, de certa forma, a clareza e retidão do cenário reflete a naturalidade com a qual os meninos lidam com a insólita aventura.
Na primeira imagem do álbum, vemos a casa de Chico submersa em um céu repleto de estrelas que domina todo o horizonte. Este onipresente céu anuncia a visita inesperada dos seres intergalácticos e estará presente em muitas das cenas iniciais da obra. No segundo quadro, por exemplo, ele é visto novamente, pela porta aberta da casa, imagem simbólica da desproteção do ambiente e da invasão que será vista a seguir.  O aparecimento dos ETs é feito com intenso suspense, em uma cena que dura duas páginas, vista do mesmo ângulo e cujo andamento é dado pelas mudanças de expressão do porquinho Torresmo, que parece ver algo escondido por trás da porta da geladeira aberta por Chico. Esta ideia da presença de coisas desconhecidas no interior das coisas visíveis será uma das profissões de fé do álbum que, como nos dois trabalhos que lhe precederam, aposta com força nas referências à cultura pop.
Temos, assim, desde referências a personagens do próprio Maurício (Jotalhão, roupa do astronauta), menções ao trabalho do próprio Duarte (até o velho Pinô, de Monstros! dá as caras na página 31), a óbvias relações com a cultura pop, como a aparição de certo cantor no interior da nave alienígena (p. 42), passando por referências mais sutis (algumas mencionadas nos extras do volume), como o uso de aviões e navios conhecidos por terem desaparecido misteriosamente. Além disso, seguindo mais uma vez os trabalhos com Astronauta e com a Turma da Mônica, o roteiro investe em uma série de referências cinematográficas que aproveitam películas diversas, sendo Sinais, de M. Night. Shyamalan (p. 20-21), e Guerra dos mundos, o antigo e o novo (já na capa), os mais evidentes. Até mesmo reler o quadrinho à procura de Gicerda, depois que sabemos como termina a história, se aparenta à revisão de certos filmes do cineasta indiano (repare na dissimulada galinha ao lado da porta bem no início do volume). O único ponto negativo aqui reside no fato de a maioria destas referências serem explícitas demais, diminuindo o gosto da procura. Contudo, isto está em sintonia com o traço claro e limpo do artista.
Duarte possui uma visão geométrica de mundo, o que rende passagens excepcionais e ângulos extremamente criativos (cito a passagem da página 37 a 38 para ficar em um exemplo). Essa geometrização atua em par com a limpeza do traço e a economia dos meios, além de criar surpreendentes níveis de profundidade espacial, como aqueles exigidos no início da fuga de Chico Bento, após sua casa ser invadida (p. 17). Sendo assim, o autor se diverte (algo já feito em Monstros!) em obrigar os personagens a percorrer este universo tão milimetricamente planejado, mas assolado por um mal imprevisível (p. 27-30), estratégia responsável por grande parte do suspense. Mais do que isso, há todo um trabalho de oscilação entre as duas dimensões e a terceira, com um exercício de profundidade que confunde os dois níveis, o mais próximo e o mais distante, recurso que acaba reforçando o conteúdo, ao substituir constantemente uma perspectiva mais superficial por outra.
Além disso, e trabalhando na mesma linha, a escolha dos ângulos regularmente investe na apresentação da pequenês dos personagens diante dos fatos ocorridos, o que pode ser visto em muitas páginas (p. 18, 23, 28, 38, 46, 53, 68). Todas estas cenas demonstram graficamente o sentimento dos meninos e seus acompanhantes, perdidos contra um fenômeno muito maior que eles e cujo entendimento completo é ainda inacessível.
Por estas questões, o espaço é o grande protagonista desta Hq, primoroso na sua concepção. E, quando se resume a uma simples cor (algo muito presente nas histórias originais de Maurício), é ajudado pela qualidade narrativa de Duarte, como na cena em que os quadros caem ao longo da página, simulando a queda dos próprios personagens (p. 44). Ou ainda na cena em que Duarte abdica das linhas que formam o quadro para mostrar a desestabilização de Chico e Torresmo.
Antes de terminar, contudo, proponho um enigma presente neste álbum cheio de detalhes que certamente nos escaparam. Na página 11 e na página 56 há uma inversão na ordem dos quadros aparentemente gratuita. Quando Chico oferece água a Zé Lelé, o quadro da resposta vem antes da pergunta. Da mesma forma, no momento no qual Chico e Torresmo (na realidade Zé Lelé) fogem dentro de um navio, vemos a parte inferior dos quadros, ou seja, suas pernas, antes da superior, tronco e cabeça. O recurso certamente pode ser interpretado como um vislumbre da alteração da ordem no mundo dos caipiras. Ou até mesmo, no caso da perseguição, como uma forma de criar mais suspense, já que a sequencia de quadros não significa avanço temporal da história. De qualquer forma, fica um dos enigmas de mais uma obra-prima de um projeto ainda impecável, atestando que, por mais que falemos dela, a arte sempre estará a um passo a frente de nossa vã compreensão.

Autor: Daniel Baz

2 comentários:

  1. Olá!!

    Seu relato da obra está incrível.

    Já tenho a obra embora ainda não tenha lido. A graça desses MSP, seja do astronauta, laços e piteco e justamente ver as personagens criado por Maurício de Sousa por outro ângulo, outra perspectiva e consequentemente outra arte.

    Vou prestar atenção nos itens citados por você com relação à história e a partir daí criar meus próprios argumentos....

    Até mais

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    1. Olá, Natália. Muito obrigado pelo seu comentário. Em breve publicaremos a crítica de "Piteco: Ingá". Aguarde!!!!

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