sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O mágico de Oz entre o cotidiano e o fantástico




O mágico de Oz foi publicado originalmente em agosto de 1900, com ilustrações de W.W.Denslow, artista com quem Baum passaria a brigar pelos direitos do universo fantástico do livro. A história conquistou o mundo ao relatar uma fábula simples, passível de inúmeras leituras. Dorothy e seu cãozinho Totó são arrancados do Kansas, onde viviam com os tios da menina, e acabam chegando na terra maravilhosa de Oz. Nela, a desterrada garota parte em busca do mágico que dá nome ao local para que ele lhes envie de volta para casa. No caminho, Dorothy conta com três ajudantes improváveis: O espantalho, que deseja que Oz lhe dê um cérebro; o lenhador de lata, que almeja receber um coração do famoso mago; e o leão covarde, ansioso por adquirir coragem do renomado feiticeiro.
Ao final do livro, descobrimos que Oz é um farsante, vindo também do mundo de Dorothy. Por intermédio de sua palavra, aprendemos também que todos os personagens já possuíam, no início de sua trajetória, aquilo que almejavam conquistar durante ela. Aqui, é possível pensar em muitas ironias trabalhadas nas entrelinhas do texto. O embusteiro forasteiro nomeia a terra fantástica, o que sinaliza para a semelhança entre ambos e abre para as interpretações alegóricas. Contudo, há outra característica que mais impressiona na organização do romance.
Ela se sustenta a partir da grande mensagem do livro (certamente irônica também, se pensada de forma estrutural), pois, mesmo tornando o percurso das personagens inúteis (o espantalho sempre fora inteligente; o leão, valente; o lenhador, emotivo; e Dorothy já tinha os meios para voltar para casa), a aventura foi genuína, na medida em que narra a aquisição de três atributos sustentáculos da formação do humano, como é comum neste tipo de literatura, e é isso que vale. A alegoria dessa organização dos dados é forte e supõe que os sujeitos já têm as ferramentas para adquirir o que desejam, independente das figuras de poder que os cercam (não à toa, muitos leem O mágico de Oz por intermédio da associação de Baum ao movimento populista). Isso se torna mais forte ainda, se repararmos que os amigos de Dorothy acreditam em tudo que o mágico lhes dá, mesmo sabendo que ele não passa de um engodo.
Junta-se a este centro nevrálgico do livro, a instigante utilização daquilo que pode ser chamado de “tempo de aventuras” por Baum. A heroína é retirada do tempo da vida cotidiana para adentrar em um mundo onde as aventuras se seguem em cadeia ininterrupta, simulando infinitude e desconectadas de qualquer lógica histórica tradicional, já que nunca existem causas predecessoras para os acontecimentos.  Pelo contrário, as ações são regidas pelo signo da repentinidade, nos moldes da interpretação feita por Bakhtin a respeito do romance aventuresco. O ciclone (p. 15), os encontros com os amigos, os ataques de lobos (p. 125), ou a ajuda da cegonha (p. 81) fazem parte de uma série de encontros fortuitos que valorizam a simultaneidade do tempo e carregam cada instante de valor. Em contrapartida, a duração longa da temporalidade é negligenciada e não há qualquer transformação interior dos personagens.
Apesar disso, o romance está repleto de repetições, situações que estruturalmente são as mesmas e ocupam função exatamente igual na sequência dos elementos narrativos. Os vários encontros com o mago, os vários usos dos macacos alados, as perdas seguidas de companheiros, os retornos subsequentes de cada um deles, as ameaças surgidas e o enfrentamento individual de cada uma delas; tudo isso oferece certa unidade a um mundo imprevisível e desconhecido, além de permitir que o hábito adentre a própria estrutura episódica do enredo, algo natural em uma aventura que tem a moralização entre os objetivos principais.
Também para atingir esta meta, Dorothy é composta como uma personagem mediana, que serve para interligar todos os outros elementos da trama. A personagem sequer se espanta com situações que provavelmente escapariam ao seu cotidiano natural, como atesta o trecho final do primeiro encontro de Dorothy com uma bruxa “Mas Dorothy, sabendo que ela era uma bruxa, já esperava que desaparecesse sem aviso, e não ficou nem um pouco impressionada” (p. 30).
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Esta apresentação rápida do livro original é necessária para interpretarmos a Hq de Eric Shanower e Skottie Young, publicada pela Marvel. Esta segue a rigor a narrativa original, explorando algumas de suas potencialidades, mas adicionando um nível ao espaço tão discretamente imaginado pelo narrador original: a exuberância. A linguagem de Baum, propositalmente, não é exuberante, nem grandiloquente, sendo prática e direta, o que favorece os episódios abruptos que marcam o desenvolvimento da aventura. Contudo, já na obra original, as cores são extremamente importantes. Não apenas a esverdeada cidade esmeralda, mas também a cinzenta terra natal de Dorothy, o azulado território dos Muchkins, o amarelo espaço ocupado pelos Winkies e o vermelho característico dos Quadlings. Paletas que destoam do cinzento Kansas, algo grafado em nossa memória também pela transição genial do filme de Victor Fleming e que retorna aqui.
De fato, a obra original e a adaptação dinamizam dois espaços. A casa onde Dorothy vive é um local paupérrimo e triste, caindo aos pedaços, feito com madeira velha, pois esta fora trazida de muito longe, o que insere o peso dos lugares distantes e desconhecidos na arquitetura cotidiana da menina, ainda antes de sua jornada ter início. A casa é tão prosaica que o narrador faz questão de revelar que não tinha nem sótão nem porão, ou seja, possuía um único e modorrento nível, ausente de qualquer possibilidade de escape ou mistério. O narrador faz questão de ressaltar também que a paisagem ao redor é plana e sem árvores, condizente com este mundo miserável e sem fantasia, longe dos centros e da imprevisibilidade que marcará o percurso da heroína em Oz. Neste lugar em que o sol comera a cor das tintas, os tios da menina também eram tristes e cinzentos, e somente Totó trazia alguma alegria  (por isso é ele que a acompanha até Oz).
Sendo assim, para traduzir em imagens este território, a primeira parte do álbum investe em cores cinzas e terrosas, que vão sendo substituídas aos poucos pelas vibrantes cores do universo fantástico. A diferença de cor é acompanhada por um uso diferenciado também da perspectiva, feita por ângulos deslocados ou postos em lugares provisórios, como se acostumassem nosso olhar para o insólito universo, o que traduz a experiência de Dorothy (p. 16).  Logo, percebemos também que os contornos dos objetos e dos seres são curvos, sinuosos, rebeldes, muitas vezes combinando com um cenário feito a partir de mais de um ponto de fuga, o que reforça a experimentação com a perspectiva (p. 23), algo que a linguagem direta e franca do original não explorava.
A estrada, por exemplo, muitas vezes se curva no meio do caminho e some, reaparecendo em outra direção, criando outro horizonte de medida, indício gráfico do inesperado trajeto a ser percorrido (exemplos: p. 30-34-35); isso se repete em outros espaços como na escada da bruxa (p. 109). As curvilíneas formas se manifestam também em galhos e protuberâncias, o que empresta vitalidade e imprevisibilidade ao mundo. Isso pode ser visto na pelo cenário florestal (p. 40); no pescoço da gaivota que salva espantalho (p. 65); na rocha onde fica bruxa (p. 98); no pescoço do corvo morto pelo Espantalho (102); entre muitos outros exemplos. Todos estes recursos são estratégias de composição que prezam por certo teor expressionista, presente também nas cores do álbum. Sendo assim, na floresta, as árvores parecem ameaçar os protagonistas, se inclinando em um gestual ameaçador (p. 45). Da mesma forma, quando o Leão afugenta os Winkies, a composição do espaço o mantém em posição elevada e ilumina apenas seus poderosos dentes (p. 104);
Todo este repertório expressionista, ou seja, que expressa com signos externos o interior das personagens - a exemplo do trecho no qual o Espantalho fala de seu medo fósforos acesos e as cores do horizonte representam seu temor (p. 30) - combina com o sentido da aventura, ou seja, encontrar o mago que fará brotar atributos humanos de dentro dos seres, mesmo que utilize, para isso, de ferramentas ficcionais, como um coração cheio de serragem, ou colocando pregos e agulhas na cabeça para simular o intelecto.
Para dar uma última palavra a respeito do teor expressionista da coloração é necessário falar da composição cromática da cidade de esmeralda, toda feita em tom esverdeado. A coloração artificial, desde o livro original, funciona de duas maneiras. Primeiro, para mostrar, por intermédio da artificialidade, a farsa presente dentro deste espaço (lembrando que todos usam óculos verdes para vê-la como ela é). Preenchendo tudo de forma antinatural, ela se conjuga com o farsante mago que a habita. Por outra via, os óculos verdes também servem de metáfora para o olhar fantástico e o valor do “faz de conta” que, por vezes, deve ser motivado pelo próprio sujeito. A hiperficção de uma cidade toda verde é muito melhor que a realidade.
Dentre os inúmeros outros acertos da obra, destaca-se o leiaute muito bem organizado, com a oscilação precisa entre quadros horizontais e verticais, visando expressar a sensação de tempo transcorrido (p. 58-61). Outra cena bem construída é aquela quando o Homem de lata mata um determinado gato e os quadros abusam da elipse para representar, sem mostrar, a força do ato violento (p. 68). As onomatopeias, também muito bem pensadas e pontuais, chegam ao seu auge quando servem de linha cinética e representação gráfica de impacto durante um rugido do Leão (p. 132).
Pode-se dizer, antes de encerrarmos, que a principal preocupação desta linda adaptação da Marvel é parecida com a intenção do autor original: trazer para um novo tempo o prazer de ler as fábulas infantis, mas que mantém a carga existencialista da história primeira. Logo que chega à terra estranha, é dito a Dorothy que Oz não é uma terra civilizada (p. 26), talvez por isso seus personagens sejam pura potência de agir, sejam a manifestação acional de seus objetivos. Além disso, a bruxa em certo momento chega a mencionar que nenhum deles presta para trabalhar (p. 125), o que reduz o “eu” dos personagens a suas ações genuínas, desvinculadas de qualquer ação socializada e funcional (no caso, o trabalho).
Dorothy, vindo de fora e detentora de uma conduta que agrega outros ao seu redor, é funcional também nesse aspecto, tanto no livro quanto no quadrinho. Uma cena emblemática disso é aquela na qual, enquanto o Leão e o Espantalho discutem a respeito da importância de corações e cérebros, a menina só pensa e em arrumar pão para se alimentar (p. 58). Entre um princípio de realidade limitador e a pura vontade sem freios de ser, O mágico de Oz é uma história de humanização na qual os seres se tornam o que são no ato mesmo de viver o que se tornarão. A consciência de Dorothy ao fim é um misto do fantástico e do cotidiano, razoavelmente desinteressada, e, por isso, apta a nos oferecer um ideal formativo mais convincente do que simplesmente didático.

Autor: Daniel Baz

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