terça-feira, 13 de agosto de 2013

Lolly Willowes e a liberdade hipotética



“É um momento enternecedor: ei-la em sua casa. Enfim, a pobre criatura já pode ser pura e santa. Ela pode meditar sobre as coisas e sonhar enquanto tece, sozinha, o pensamento solto pela floresta. Enquanto o vento do inverno assovia lá fora aqui dentro, nesta humilde cabana, em contrapartida, há silêncio. Ela possui certos recantos misteriosos onde a mulher deposita seus sonhos.” (p. 38) - Michelet

Sylvia Townsend Warner é uma das mais negligenciadas autoras do século XX. Suas inúmeras aptidões incluem música, tradução, jornalismo, escrita de contos, cartas, diários, poesias e romances, entre outras. Nascida em 1893 na região noroeste de Londres, obteve maior notoriedade pouco antes de sua morte na década de 70.  Lolly Willowes é seu primeiro romance, texto responsável por chamar atenção para seu talento literário. A obra também foi responsável por fazê-la ganhar notoriedade nos EUA, o que permitiu que fosse editora do New York Herald Tribune.
O romance, publicado originalmente em 1926, permite várias leituras, das quais a biográfica, a sobrenatural e a feminista são as que mais se destacam. Elas se sustentam em uma trama de duas facetas, uma prosaica e outra maravilhosa, ambas consumadoras do ideal simbólico conquistado pelo livro. Laura Willowes, a protagonista, é uma legítima solteirona. Depois da morte do pai, ela, com 28 anos, vai morar com a família de seu irmão, quando deixa de ser Laura para tornar-se simplesmente a “tia Lolly”. Depois de 10 anos sendo “útil” à casa, decide se mudar para o vilarejo de Great Mop e se torna bruxa. Ok, foi mesmo de supetão. Vamos com mais calma, vendo como a trama organiza tudo isso.
As primeiras páginas do romance são regidas pelo “ritmo regular dos dias e das refeições” (p.43). A leitura provoca no leitor a exata sensação de uma vida sem percalços ou qualquer fenômeno inesperado, estando a cargo de Lolly produzir o acaso neste mundo regrado. Aqui existe a primeira audácia temática do livro, já que a cultura geralmente associa, aos lugares longe dos centros urbanos, o ideal de paz, inocência, atraso e limitação, enquanto à cidade cabia a ambição, as oportunidades, a conturbação (basta ler a introdução de um clássico sobre o tema: O campo e a cidade, de Raymond Williams). Em Lolly Willowes, o espaço citadino de Londres é a morada do hábito e da paz, constante de uma vida sem reveses, enquanto somente no campo (e na natureza como um todo) há espaço para as mudanças, no caso, o real progresso da personalidade humana.
Obviamente, isso se incorpora ao conhecido arquétipo da “mulher selvagem”, mas preferimos relacioná-lo à ideia subversiva mais geral incorporada no percurso da protagonista. Para isso, é interessante notar  de que forma, durante todo o romance, as conexões entre Laura e o mundo natural são sutilmente demonstradas pelo livro. Desde jovem, Laura era leitora ativa e conhecia muito bem as plantas, duas atividades que se reúnem no livro que publicara quando nova, chamado A saúde à beira da estrada, sobre ervas medicinais.
Contudo, um trecho emblemático, mostra a ruptura com o referencial natural, após a morte da mãe, o que a insere em uma realidade absolutamente patriarcal:

“Laura pranteou a mãe usando saias que chegavam quase até o chão, pois a Srta. Boddle, a costureira da família, era dona de grande sensibilidade e não achava que pernas à mostra combinassem com luto. Com efeito, as de Laura eram muito esbeltas e ágeis e gostavam de subirem árvores e pular feixes de feno, não tendo desejo algum de se aposentar do mundo e pertencer a uma mocinha. Quando porém, vestiu as roupas novas de odor tão estranho e,  olhando para o espelho, se viu triste e adulta, Laura aceitou o inevitável. Mais cedo ou mais tarde, teria de se sujeitar à condição de moça respeitável [...] mais parecia significar uma espécie de aprisionamento.” (p. 20) (grifo meu)

Justamente por estar inserida em um universo urbano que destoa de sua real personalidade, o narrador evoca uma série de relações e analogias entre ela e o mundo natural, o que fica claro neste trecho em que seus sentimentos são traduzidos por fenômenos da natureza: “Agora ele  (o sofrimento) a visitava como súbitas tempestades de neve, um repentino escurecer do céu, uma brancura e um frio efêmeros que se abatiam sobre ela.” (p. 39)
Estas comparações são perseguidas pelo texto, seja quando Laura vê em um de seus pretendentes a figura do lobisomem, seja quando se colore como um gerânio colhido (p. 8), ou quando seu padrão comportamental repousa no ritmo natural:

“Com o passar do tempo, Laura se habituou a essa recorrente febre outonal, tão precursora da estação quanto as folhas mortas ou a primeira geada.” (p. 65)

 Contudo , o ponto alto deste recurso reside no momento em que a protagonista passa a transformar mentalmente os habitantes do vilarejo em animais, isso antes de descobrir que é uma bruxa.

“Para se distrair, moldara a massa na forma dos moradores da aldeia. Desdobramentos curiosos tiveram vez durante o processo. O porco-espinho da srta. Carloe inchara até ficar quase tão grande quanto sua dona. A massa escorrera, deixando um grande buraco no lado do corpo da srta. Carloe. O Sr Jones ficara corcunda, como se carregasse o diabo num saco. E o gracioso retrato da srta. Larpent, jovem e elegante em um traje justo de amazona, acabara torto e deformado até lembrar mais um tronco retorcido de árvore do que uma mulher.” (p. 115)

Desta forma, o romance interliga sua natureza selvagem à sua capacidade mágica/comportamental de transformar o mundo ao seu redor. Sendo assim, a necessidade de transmutação da realidade, antes de ser um fenômeno fantástico tematizado pela fábula, é a conquista de um imaginário livre e de uma nova perspectiva acerca da sociedade circundante, em um movimento alegórico do próprio papel da ficção.
Por conseguinte, quando descobre que o irmão perdeu metade de seu dinheiro investindo em negócios sem retorno, mais uma vez é o despojamento do mundo urbano e o contato com o mundo natural que a tranqüiliza:

“Laura se calou. Esquecera-se de Henry e das coisas desagradáveis que pretendia dizer a ele. Chegara às fímbrias do bosque e sentia a brisa fresca no rosto. Tanto se lhe dava o burro, ou a casa, ou mesmo o pomar ao crepúsculo. Se não pudesse colher as frutas de suas próprias árvores, não faltariam ervas comuns e frutinhos do bosque crescendo onde quer que fosse que ela houvesse por bem procurá-los. Quando se envelhece, o melhor é despir-se das posses, despojar-se como uma árvore, ser quase apenas terra antes de morrer.” (p. 87)


 Ao fim do livro, quando Laura descobre na comunidade de Great Mop outros indivíduos ligados à magia e encontra em pessoa o próprio diabo, todo nosso percurso parece finalmente encontrar um terreno hermenêutico firme, a partir de uma constatação da protagonista. Ao ver o ser das trevas, ela revela: “Você parece real demais para ser natural.” (p.183).
Ora, esta afirmação explora a ligação entre natureza e fantasia que coerentemente servirá de base para a conduta de Laura ao fim do livro. Entretanto, o conteúdo mais importante expresso pela passagem é a ênfase no olhar crítico e descortinador que Laura lança aquela criatura que ensaia ser uma figura paterna e tutorial na nova etapa de sua existência. Isso condiz com uma protagonista que, com muito custo, adquiriu direito ao seu próprio discurso e a um olhar mais criterioso para o mundo.
A obtenção de uma voz própria é engenhosamente trabalhada pela narrativa. Esta começa focalizando o olhar de Caroline (mulher de seu irmão e maior expressão da mulher comum, passiva e resignada do livro) sobre Lolly. Sendo assim, quando lemos que “Lolly era uma criatura meiga, e as meninas a adoravam; logo ela estaria adaptada ao seu novo lar. [...] Lolly estava com vinte e oito anos. Precisava se apressar se queria encontrar um marido antes dos trinta. Pobre Lolly!” (p. 8), estamos absorvendo uma personalidade sufocada pelo discurso convencional “de fora”. Entretanto, já na casa do irmão, a futura bruxa apresenta duas identidades: “Ou melhor, tornara-se duas pessoas distintas. Uma era a tia Lolly, uma senhora próxima da meia-idade, discreta ao subir escadas e indispensável aos preparativos da ceia de Natal e aniversários. A outra era a srta. Willowes, ‘minha cunhada, srta Willowes’, que Caroline apresentava para depois abandonar, deixando-a com a sensação de não ser nem discreta nem indispensável. Laura foi arquivada.” (p. 52)
A natureza indômita da mulher selvagem ligada à imprevisibilidade do contato com a magia permitem que Laura seja uma personagem ambivalente em todos os sentidos. Por isso, é impossível tratar de forma unilateral sua personalidade e a dimensão simbólica de sua situação. Um caminho que poderia se ensaiar é aquele que relaciona a situação de Lolly à das mulheres do pós-guerra. Sabe-se que, nos anos de 1910 e 1920, as questões de gênero estavam em alta, principalmente devido ao novo contexto da primeira guerra mundial em que as mulheres assumiram um novo papel na sociedade, empreendendo trabalhos antes feitos por homens, já que estes estavam na batalha. Ao fim da guerra, em 1918,  havia 400 mil novas operárias na Inglaterra, informação dada por Carlos Bauer em Breve história da mulher no mundo ocidental. Entretanto, lendo o romance, nos deparamos com o seguinte trecho:

“A guerra não trouxe as mesmas oportunidades excitantes para Laura. Quatro vezes por semana, ela freqüentava um armazém e se ocupava com empacotamento. Saía-se tão bem que ninguém pensou em lhe propor mudar de trabalho. A sala de embalagens era fria e entulhada, tendo sido decorada no início da guerra com cartazes incentivando o alistamento. Aos poucos, eles foram desbotando. O jovem corado e sua mãe espartana empalideceram, como se tomados de medo, e o manto escarlate de Britannia desbotou para um tom amarronzado de rosa. Laura acompanhou esse processo com o coração pesado. Não se permitiria ceder ao simbolismo fácil que ele evocava. O tempo podia desbotar o tom corado do rosto dos jovens, bem como o vermelho do manto da pátria, mas o sangue continuava escarlate como sempre e Laura acreditava que, por maior que fosse sua desaprovação, esse sangue estava sendo derramado por ela.” (p. 59)

Está-se em contato com uma personagem fadada à complexidade. Nenhum rótulo lhe compreende, nem o de mulher casada, nem o de solteirona dedicada à família e nem o de integrante padrão do culto ao demônio*. Cria-se assim uma nova etapa do imaginário da feiticeira como figura subversiva. Esta face é ressaltada no livro A feiticeira no imaginário ficcional das Américas, no qual a autora Nubia Hanciau conclui que

 “As forças telúricas da feitiçaria, o contato com a natureza, plantas e animais, asseguram ponto de equilíbrio das protagonistas. Herdado das figuras ancestrais, esse poder incorpora-se às heroínas por intermédio da memória e vem preencher o espaço deixado pela orfandade [...] Mesmo que atreladas a espaços limitantes, pelo recurso disfórico da revolta, as heroínas libertam-se para finalmente viver em novas cartografias.” (p. 348)

Tendo isto em mente, a ausência de contextos históricos seguros para interpretar o percurso de Lolly Willowes é também uma forma de manter a protagonista alienada do espaço em que transita, fora dos condicionantes culturais que lhe legaram. Por esta via sua figura deixa de ser somente arquetípica para inserir-se em uma modalidade antropológica. Como fica claro na página 120, Laura quer esquecer os pilares da antiga civilização, tornando-se uma espécie de Robison Crusoé (citado timidamente na página 170) às avessas, pois provoca o próprio naufrágio e pensa em reconstruir o mundo, ao invés de ambientar sua ilha com destroços do velho território perdido. Laura quer esquecer tudo. Por isso, o grande momento de tensão do livro (e a aparição do demônio) ocorre quando o sobrinho Titus lhe visita sem previsão de retorno, o que desestabiliza sua tia. Laura não quer mais ser Lolly e o jovem é a representação de um mundo que deveria ter ficado para trás. A força da rotina narrada nas primeiras páginas é tão presente (simbolizando a sociedade castradora) que a mulher ainda vive no ritmo antigo e teme ser subjugada a ele novamente:

“Mas o coração dela continuava a bater. A bater no mesmo ritmo cotidiano, uma pulsação regular que a impelia a prosseguir em direção à nova vida de feiticeira que se abria à frente. Como o corpo já aceitara a nova ordem das coisas e progredia tão metodicamente a caminho do futuro, cabia-lhe, pensou, tentar reajustar o espírito.” (p. 139)
Sendo assim, desesperada pela presença de seu sobrinho, assume, de uma vez por todas, a influência do demônio, fator que provoca uma instigante reflexão a respeito do gênero passível de unir as pontas soltas deixadas neste artigo tão errático. Em uma espécie de tese, ao fim do livro, Laura defende que as mulheres precisam mais do diabo, pois “tem um imaginação tão fértil e levam uma vida tão tediosa. O prazer que sentem pela vida acaba muito cedo. Dependem demasiado dos outros, e essa dependência logo se torna um estorvo.” (p. 184). Nesse sentido, ser bruxa é uma forma de se libertar de uma sociedade regida por modelos patriarcais, uma liberdade imaginada, conquistada da mimese para o mundo real: “Por isso nos tornamos bruxas: para mostrar nosso desdém pelo fingimento de que a vida é uma atividade segura, para satisfazer nossa paixão por aventura. Não é malícia nem maldade. Ora, talvez seja maldade, pois a maioria das mulheres adora isso.” (p. 187).
Sendo assim, o movimento feito pelo livro do cotidiano para o fantástico é uma forma irônica de trabalhar com uma liberdade hipotética, possivelmente fadada ao fracasso, pois exige criticar as diretrizes da experiência mundana na mesma medida em que cria representações diferenciadas dela. Mais uma vez, Nubia Hanciau, em seu livro citado acima, explica que entre alguns demonólogos, a rotina da bruxa (principalmente por meio dos sabás, a exemplo do que ocorre aqui) “retratam o quadro de uma sociedade desordenada” (HANCIAU, p. 79). Esta talvez seja a forma mais abrangente de entender o percurso de Laura Willowes. Na cena em que transmuta os seres ao seu redor em animais, a personagem está produzindo uma ficção em que possa se orientar com mais liberdade. Esta ferramenta de criação subjetiva produz um desvio na realidade, pela maneira como rearticula o mundo, optando pela atualização daquilo que se quer manter. Por esta via, a ficção de Sylvia Townsend Warner profere sua poética por intermédio da ação libertária de sua protagonista: independente da maneira como o mundo se sustenta, o ser humano sempre será livre se puder criar ambientes ficcionais e utilizá-los na construção de um imaginário libertador e revelador de sua desordem.

* Laura também não consegue se acostumar com a rotina social do Sabá (p. 152). A comunhão, o “um corpo só” de que fala Michelet, não satisfaz sua liberdade pessoalizada.
** Nunca esquecendo que uma das leituras mais populares e polêmicas de Robinson Crusoé é a de Ian Watt, quando este percebe no herói o abandono paulatino da religiosidade que passa a ser superficialmente sentida, “dominical”, no dizer do crítico.



WARNER, Sylvia Townsend. Lolly Willowes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.


Autor: Daniel Baz

Nenhum comentário:

Postar um comentário