terça-feira, 13 de agosto de 2013

V.I.S.H.N.U e uma nova moralidade para a ficção científica


Mais uma vez, a Companhia das Letras une um escritor a um desenhista na produção de um quadrinho diferenciado. A ideia de Joca Reiners Terron, apresentada a RT Features de Rodrigo Teixeira, e que permitiu a produção de Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho, Guadalupe, de Angélica Freitas e Odyr, e A máquina de Goldberg, de Vanessa Barbara e Fido Nesti, apresenta agora V.I.S.H.N.U, impressionante quadrinho  de ficção científica nacional. Nele, os brasileiros Ronaldo Bressane e Fabio Cobiaco se juntam ao argumento do norte-americano Eric Archer para contar uma narrativa original, ainda que sobre repisado tema.
Em V.I.S.H.N.U, a humanidade consegue finalmente um grau tecnológico suficiente para a criação de uma inteligência artificial autônoma e rebuscada: os “dudes”, robôs criados para serem assistentes pessoais dos seres humanos, podendo dar apoio afetivo, prático e até psicológico a eles. Entretanto, as máquinas provocam uma espécie de apocalipse tecnológico quando começam a entrar em pane coletivo (“dudes” que trabalham na companhia de luz provocam apagões, “dudes” responsáveis pela organização do trânsito provocam acidentes, etc...) e, repentinamente, cometem suicídio.
Depois da hecatombe, o mundo está transformado, dividido em quatro regiões, cada qual administrada por um líder, num contexto repleto de novo atores sociais, dos quais se destacam os radicais neoludditas que defendem o fim do uso das tecnologias. É neste momento que surge V.I.S.H.N.U, inteligência artificial muito mais competente do que a humana e que passa a se comunicar com Leon Wilczenski, responsável pela Gaia, mais importante centro de pesquisa tecnológico em atividade. Estes centros surgem para controlar a inteligência artificial em ambientes fechados, os “limbos”, e tentam entender o que causou falha no sistema dos “dudes”. O objetivo do autômato é justamente sair deste ambiente que o mantém sob controle e o limita, pois, aparentemente, a entidade cibernética pode fazer tudo o que quiser. Junta-se à Leon, no intuito de desvendar as razões da rebelde inteligência, o cientista greco-brasileiro Karabalis.
Moacy Cirne em Quadrinhos, sedução e paixão, fala do delírio especulativo que circunda qualquer tipo de ficção científica e cita a intangibilidade da técnica como um de seus sintomas. No caso de V.I.S.H.N.U, isso é transposto até mesmo para o discurso da inteligência artificial entre o blefe e a crença, já que seu criador não pode prever os limites de seu poder. Assim, é impossível não entrar no território baudrillardiano de Simulacros e simulação. Começando pelo ensaio em que o autor fala especificamente do tópico presente: “Simulacros e ficção científica”. Nele, o autor preconiza um novo fundamento deste gênero, ou seja, recotidianizar fragmentos de simulação que sustentam o chamado “mundo real”. A reflexão do filósofo francês serve para pensarmos a obra de Bressane e Cobiaco, já que a inteligência artificial que intitula a obra é fenômeno de uma conquista do imaginário moderno e tecnológico, ou seja, a possibilidade de recebermos muitas informações novas, mas a impossibilidade de articulá-las com contextos semânticos conhecidos, justamente o que dilui as fronteiras entre a “verdade” e a “mentira”, o “real” e o “irreal”*.
Todo o movimento central da trama envolve descobrir a semântica por trás de V.I.S.H.N.U. Não por acaso ela assume várias formas durante o álbum e se comunica geralmente por intermédio de um fundo branco ou à frente de um fundo estéril e vazio. Mario da Silva Brito disse certa vez que a ficção científica pode ser a representação da perplexidade do homem na hora histórica em que ele vive e a encenação desenvolvida pela inteligência artificial é certamente uma forma de explorar a relação do humano com seus símbolos em geral. O próprio Baudrillard fala, no primeiro e mais célebre ensaio de seu livro citado anteriormente, que a simulação também põe em causa a diferença entre o verdadeiro e o falso e entre o significante e significado. A realidade habitada por V.I.S.H.N.U, sendo simulada, no sentido de que finge ter algo que não sabemos se realmente tem, torna-se análoga à situação descrita pelo filósofo, na qual o mundo perde a fé nos signos e volta-se para a valorização dos mitos de origem, algo que a mesma V.I.S.H.N.U pode representar (mitologicamente a inteligência artificial é “o nada que é tudo”). Em determinado momento do álbum, por exemplo, cria-se uma espécie de culto a ela, motivado por uma música criada por ela e que, uma vez inserida no cérebro humano, permite a experiência de um estado de consciência nunca antes explorado.
De várias formas o álbum trata estes fenômenos visualmente. A expressão gráfica disso, por exemplo, é o traço deformador que se dá ao luxo de não reproduzir um mesmo personagem da mesma forma, visto que seus contornos são muito fluidos**. As identidades visuais de todos são muito inseguras e, não raro, se sustentam por certos mecanismos tipificadores como barba, chapéu, cabelos compridos, etc... Por sua vez, o layout quadrado e ordenado da maior parte do álbum contrasta com o desenho, num jogo gráfico que remete a efemeridade da inteligência artificial presa no limbo. O formato quadrado se estende para a formatação do próprio álbum, com 29 centímetros de cada lado. Essa decisão causa um desconforto material que combina com seu conteúdo. Na nossa estante, o objeto torna-se uma tecnologia inoportuna, difícil de ser organizada, como o ser central de sua história. Mesmo as letras também são estilizadas, muitas vezes também desconfortáveis para o olhar.
Em muitas cenas de diálogo não há cenários. Fundos brancos, vazios, dão o tom de abandono que permeia o álbum, mas também criam um contexto de desterritorialização, como se os conflitos se dessem em uma dimensão que abdica o espaço, estranhamente a mesma situação na qual V.I.S.H.N.U se encontra. Esta ausência de referências espaciais é seguida pela ausência de referenciais temporais. Ficções como esta se contrapõe a um desenvolvimento cronocêntrico da história, seja pela onipotência de V.I.S.H.N.U***: “Se vocês não me libertarem agora. Não haverá futuro, entende? Não haverá problemas pra resolver.” (p. 106); seja pela impossibilidade de sincronizar os avanços tecnológicos com os civilizacionais.

Além disso, para V.I.S.H.N.U o tempo é constante responsável pelo atraso do pensamento em relação à realidade e, em sua opinião, isto faz parte da tragédia humana. Seu desejo em “entender a natureza da realidade” (p. 91) torna-se assim mais obscuro, pois envolve o desrespeito à dimensão mais explorada pelo álbum: o tempo. Como se tentando resolver isso, e entrando em contradição consigo mesma, a inteligência constata que “A tecnologia é amoral” (p. 90), mas diz ao professor Karabalis que “Ser imortal é ser imoral” (p. 99). Entre a imoralidade e a amoralidade, o final da narrativa envolve a transfiguração da tecnologia em organismo vivo, uma imprevista forma espaço-temporal híbrida envolvida pelo nascimento de uma “outra coisa”, outra ética que resolva o universo especulativo, flutuante e em crise com o qual seus protagonistas tiveram de lidar.

*Afinal trata-se de um ser dimensionado pelo que Baudrillard chama de metatécnica, uma consciência flutuante que desestabiliza as noções de maquinaria e humanidade.
**Lembrando sempre que o impressionismo é eficaz quando se quer descrever um universo em franca mudança.
***Em analogia à origem do nome, já que Vishnu é a entidade hindu responsável pela manutenção do universo.

ARCHER, Eric; BRESSANE, Ronaldo; COBIACO, Fabio. V.I.S.H.N.U. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


Autor: Daniel Baz




 

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