sábado, 24 de agosto de 2013

Narrar ou não narrar: fora de questão




 Já falamos aqui no Pato Fáustico de Bonsai, de Alejandro Zambra, livro em que o autor associa o cuidado com o arbusto japonês ao relacionamento amoroso entre dois sujeitos. Voltando às analogias vegetais no seu novo livro, A vida privada das árvores, o autor chileno utiliza da imagem de um álamo e de um Baobá para contar uma história imóvel, onde o tempo parece estático, sob o signo da inércia plasmada no caule das grandes árvores.
Para isso, Zambra investe em um enredo simples: o escritor Julián espera a chegada de Verónica, sua esposa, enquanto conta histórias sobre a vida privada das árvores para fazer a filha dela (e sua enteada), Daniela, dormir. Esta ideia da “história dentro da história” ilumina o caráter autorreflexivo e significante do texto, o que se alia ao seu teor metalinguístico, algo claro desde suas primeiras páginas, quando o narrador se protege da expectativa do leitor, anunciando que não há um antagonista para movimentar a narrativa: “Pois não há, na verdade, um inimigo. E o problema é justamente este, não haver inimigos nesta história: Verônica não tem inimigos, Julián não tem inimigos, Fernando não tem inimigos, e Daniela, descontando um coleguinha folgado que vive fazendo caretas para ela, também não tem inimigos.” (p. 12). Por este caminho, explorando a literatura dita “de criação”, o narrador mantém a história e o seu exercício em sincronia, numa refração que irá ser coerente com a temática principal da obra, tornando sua experiência mais angustiante:

“Por enquanto Verónica é alguém que não chega, que ainda não voltou de sua aula de desenho. Verônica é alguém que falta, levemente no cômodo azul – o cômodo azul é o quarto de Daniela [...]” (p. 12)

A ausência da mulher, que se encontra na sua aula de desenho, é a condição para a existência do romance: “O romance continua, embora só para render-se ao capricho de uma regra injusta: Verônica não chega.” (p. 52). Este, por se fundar em uma ausência corre o risco de se desfazer a qualquer momento. A exemplo do que ocorre na maior obra a respeito de uma espera da literatura ocidental, Esperando Godot, de Samuel Beckett, o livro é repleto de tempos mortos e situações arbitrárias que existem quase sem motivo a não ser manter a narrativa viva: “Adiante, a história se dispersa e quase não há maneira de continuá-la [...]” (p. 17); algo também presente quando o narrador fala do romance anterior de Julián com Carla, o qual era preenchido pela “possibilidade do amor”, ou “a iminência do amor” (p. 35). Junta-se a este coro, o trecho no qual, comparando seu relacionamento pregresso com o atual, o narrador conclui por Julian: “Verônica é uma mulher que não chega, Karla é um mulher que não estava” (p. 42)

Correlato a isso são as histórias inventadas por Julián e o romance que está sendo escrito por ele. Inicialmente de trezentas páginas, a obra foi reduzida até sobrar apenas quarenta, cujo núcleo envolve um jovem ocupado em cuidar de um Bonsai, estabelecendo um interessante nível metaléptico entre esta obra e a predecessora. A fuga para níveis narrativos diferenciados é diegeticamente associada à amplitude temporal da narrativa, apesar de sua breve extensão. A consciência de Julián é extremamente retentiva e protensiva ocupando-se do tempo passado (principalmente de seu relacionamento anterior) e futuro (quando imagina uma Daniela crescida), enquanto o presente permanece vazio. Esta ausência de referenciais presentes, preenchidos basicamente pela tentativa de adormecer a menina é a falência da narrativa ocupada com um propósito direto e objetivo.
Ironicamente, Julián defende-se contra o vazio existencial que esta situação cria, imaginando o paradeiro de Daniela, o que o obriga a se movimentar pelo território da narrativa tradicional, elucubração que resulta na criação de um possível antagonista, desdenhado no início do texto:

“Verónica não está presa numa avenida distante, está na casa de um homem que desta vez a convenceu a não voltar mais. [...] É uma explicação redonda, inquestionável: Verônica não chega porque está na cama com o professor de desenho, era uma transa rápida que se transformou numa transa demorada.” (p. 59)

Este futuro próximo imaginado se junta ao futuro hipotético (ou não!) estabelecido para Daniela. Mais uma refração de um narrador que não se relaciona diretamente com o vivido: “De forma quase automática, a vida começaria a penetrar nos dados seguros, objetivos, que ele iria coletando.” (p. 38). Todas estas estratégias se situam num projeto presente na obra de Zambra desde Bonsai, desconfortável com as zonas textuais legadas pela narrativa tradicional e que busca novos modelos estruturais.
Se pensarmos na forma como a cultura contemporânea tem obsessivamente censurado o artifício nas artes, em busca de um naturalismo que torne o objeto estético mais eticamente manipulado, fruto principalmente do documentalismo literário presente no período ditatorial, obras como as de Zambra são um alento. O jogo temporal é só mais um indício disso, já que, negando o andamento natural do tempo, nega-se a racionalidade burguesa e as conquistas culturais de sua civilização, num projeto comum na América Latina, mas que tem em Zambra um expoente incômodo, ainda inclassificável, perdido entre o desejo de narrar e a desconfiança com os resultados deste exercício. Ao confrontar o cânone e o tempo, os romances de Zambra demonstram formalmente esta crise entre o cinismo com a narrativa e a impossibilidade de abandoná-la.

ZAMBRA, Alejandro. A vida privada das árvores. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

Autor: Daniel Baz


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