Com o término
de algumas obras que marcaram a história recente da Vertigo no Brasil (Y – o último homem e Ex machina) chegaram neste ano às bancas
duas novas publicações: O inescrito e
Sweet tooth. Falarei hoje desta
última. Seu primeiro volume, Sweet tooth
– depois do Apocalipse, demonstra que há potencial na nova série, ainda que
somente o futuro possa dizer se alcançará a notoriedade de seus predecessores.
Escrita e
desenhada por Jeff Lemire (canadense lançado ao mundo por este trabalho e que,
em seguida, encabeçou títulos na DC como Liga da Justiça Dark e Homem-animal),
a narrativa explora um universo pós-apocalíptico em que parte da humanidade foi
dizimada por um tipo de epidemia nomeada “flagelo”, surgida na forma de um
incêndio. Em paralelo a isso, surgem
crianças híbridas (humano com animal) imunes à praga e, provavelmente,
provocadas por ela. Neste estado de coisas, Gus, um garoto híbrido, e seu pai
vivem isolados em uma floresta. O velho homem morre, não sem antes fazer o
filho prometer que não deixará jamais a cabana em que vivem. Promessa que deve
ser quebrada ainda na primeira edição, quando caçadores descobrem o local. Gus
só não é pego, devido à ajuda de Jepperd, um homem velho e truculento que o
acompanhará durante os próximos números até uma reserva onde residem crianças
híbridas. A partir daí a narrativa seguirá o tradicional modelo “de provas”,
com os personagens se deparando com uma série de obstáculos a serem superados,
um mais chocante que o outro, até o desfecho, no qual a relação de ambos terá
seu caráter totalmente transformado.
Contudo, se a
base é a mesma de tantas outras histórias (há referências explícitas a Bambi, por exemplo), os meios
encontrados para contá-la prezam pela inovação. O que primeiro chama a atenção
neste sentido são os traços de Jeff Lemire. A proposta do autor é desobedecer a
anatomia, abusar do expressionismo dos cenários e na simplicidade dos espaços
(o fundo às vezes se resume a uma cor como em boa parte da sequência na casa
das prostitutas). As deformações num primeiro momento causam um estranhamento
condizente com o clima do universo explorado. Entretanto, após estarmos
acostumados com elas, tais distorções passam a ser o objeto figurativo de um
mundo em que as referências estão totalmente diluídas (o que se comprova na
virada final da trama).
A disposição
dos quadros, os planos e a angulação seguem na mesma vertente modernista do
desenho. O autor abusa do uso de primeiros planos e closes, que representam,
neste início de história, a claustrofobia que envolve Gus, preso à cabana e,
depois, dependente de Jepperd. A perspectiva, também serve para ressaltar o
absurdo das coisas deste mundo. Um exemplo emblemático é o momento quando Gus
vê um veado morto (p. 26), se esconde e, na página seguinte, os caçadores se
encontram no exato lugar em que o menino estava. Tudo isso é visto de um ângulo
do chão tendo em primeiro plano o olho aberto do animal morto. A página dupla
em que Gus enfrenta dois inimigos e sofre um sério ferimento (p. 50-51) também
é exemplar da experimentação da perspectiva, principalmente, pois vem aliada à
posição absurda ocupada pelos personagens no quadro, num movimento nada natural.
Quanto à
disposição dos quadros, gostaria de ressaltar uma estratégia usada pontualmente
pelo autor e que revelam muito da concepção de mundo que ele expressa por meio
das escolhas técnicas de sua trama. Sabe-se que a ideia de narrativa seqüencial
(termo de Will Eisner) por quadros é a base de uma teoria atualizada dos
quadrinhos e em seus fundamentos (mais uma vez em Eisner, junto de Mccloud, Cirne
– com ressalvas – etc...) está o andamento do tempo diegético a partir dos
“cortes” de um quadro a outro e sua relação. São eles que definem o “timing”
narrativo, ou seja, um aspecto significante ao tempo. A linha que emoldura uma
determinada representação e forma o quadro é uma maneira de apreender o tempo
e, supostamente, o espaço lacunar entre um destes quadros e o próximo, a
sarjeta, envolve uma mudança espaço-temporal. Sendo assim, no dizer de Scot McCloud
“cada painel mostra um momento de tempo” (p. 94). Esta é a gramática básica da
narrativa em quadrinhos e mexer nela é buscar sentidos novos para os conteúdos
temporais. O que Lemire faz com brilhantismo.
Refiro-me
principalmente a um recurso empregado por ele na parte quatro deste volume,
quando os dois protagonistas encontram uma casa de prostitutas, ou seja, após
já estarem calejados da distopia em que vivem. Em um momento de alta tensão, as
mulheres ameaçam atirar em Gus e Jepperd negocia a devolução do garoto. Seu
rosto impassível é representado em dois quadros horizontais diferentes, mas que
juntos montam a face do homem (p. 86). O tempo representado é basicamente o
mesmo (somente os balões revelam que se passaram poucos segundos). Tudo poderia
tranquilamente vir exposto por apenas um quadro, mas Lemire opta por não
fazê-lo. Antes de interpretar o sentido disso, é importante dizer que, quando
Jepperd decide atacar um inimigo momentos adiante (p. 94), temos uma página
cheia em que o personagem desfere o ataque, mas o golpe em si é representado
por diversos quadros menores que descrevem seu trajeto. Mais uma vez o espaço
lacunar da sarjeta não está presente, tudo é engolido pela estática*.
Por fim, e
esse momento é decisivo, na parte seguinte, enquanto Jepperd ataca um conjunto
de inimigos, vemos o rosto de Gus ser representado de forma semelhante ao nosso
primeiro exemplo. Dezenove quadros dando closes em partes de seu rosto estão
unidos para formar a inteireza de sua cabeça ferida. Mais uma vez as sarjetas
não nos transportam para outro momento temporal e, de uma vez por todas,
entendemos o tratamento dado por Lemire ao seu mundo. Sua intenção é expressar
com efetividade a ideia de “futuro estagnado” presente em narrativas distópicas
e pós-apocalípticas. Os quadros não nos levam ao futuro próximo, mas estagnam
na mesma cena, como se temessem o que o tempo vindouro tem para oferecer. Eles não
fragmentam tempos diferentes, nem se relacionam de forma consequencial com os
anteriores, mas formam uma imagem instantânea em que os quadros menores estão
sem passado nem futuro – não há narrativa entre eles. A estática torna-se o
emblema de uma angústia que se forma no tempo, ou melhor, na passagem dele.
Sendo assim, o autor canadense consegue dar forma linguística ao sentimento de
seus heróis e produz uma empatia que só o bom uso da forma pode oferecer.
Autor: Daniel Baz
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