sábado, 13 de julho de 2013

Herta Müller e sua ferocidade libertária



O homem é um grande faisão no mundo e Fera D`alma, de Herta Müller - publicados recentemente no Brasil pela Companhia das Letras e pela Globo, respectivamente – provam duas coisas: que a autora romena não deixa por menos o Nobel que recebeu em 2009; e que ainda temos autores em quem confiar o território frio e, às vezes, inóspito de nossas cabeceiras.
O primeiro título é de 1986 e explora a situação da Família Windisch (mãe, pai e, coitada, filha). De origem alemã, os três aguardam liberação para sair de um país deformado pela ditadura de Nicolae Ceausescu. Aqui começam as relações biográficas, já que o regime totalitário (1967-1989) foi responsável pela migração da família de Müller, pertencente à minoria alemã vítima da violência cada vez mais constante das autoridades. Com maior carga autobiográfica, Fera D`alma (199?) aposta na visão de um grupo de jovens a respeito do mesmo regime.
Mas, se o caminho do espelhamento do tipo “tal vida, qual obra” é tentador, principalmente neste último romance, no qual as situações biográficas são mais explícitas e facilmente rastreáveis, prefiro abordar em panorâmicas linhas as características da prosa da premiada escritora e do imaginário por ela explorado. Esta se caracteriza pelo viés combativo e denunciador, ainda que não panfletário. Aliás, longe de organizar seu discurso pela facilitação do mecanismo transmissor (característica comum em obras com o intuito moralizador ou simplesmente didático) e evitando entender o processo sócio-histórico pela perspectiva coletiva, a autora opta pela construção de um mundo refratado pela experiência subjetiva, no qual todas as referências são motivadas por uma consciência dotada de uma sensibilidade muito particular.
Contudo, a técnica compositiva de cada uma das obras é bastante diferente. Em O homem é um grande faisão no mundo temos o conflito central vivido pela filha da família, cujo corpo é negociado pelos pais para a aquisição de um documento, uma certidão de batismo, necessária para a migração. O papel é simbólico: a perda do direito ao próprio corpo vem acompanhada da legitimação de sua existência. Para certificar a nascença, o sujeito precisa primeiro subordiná-la ao poder. Além disso, os direitos humanos são conseguidos por meio da degradação do homem, esta sendo a maior metáfora do regime opressor. O próprio título O homem é um grande faisão no mundo vem de um provérbio romeno que associa a maneira desajustada do faisão voar com os atos humanos sobre a terra, remetendo à desastrada forma como o homem gerencia sua existência.
O livro é composto de frases curtas e secas, organizadas em vinhetas, capítulos também curtos. Esta orientação dos sintagmas é extremamente importante para o efeito da obra, já que a linguagem parece não se permitir a liberdade da frase longa, isto é, do texto solto e fluido, livre (como se o policiamento começasse no discurso) - além de produzir a secura própria do terreno miserável em que vivem os personagens. Contudo, se a sintaxe está presa à concisão, as escolhas metafóricas permitem que o imaginário do livro alce vôos mais ambiciosos, por vezes lembrando o automotismo psíquico dos surrealistas (a seguir, explicaremos porque não julgamos “surrealista” um termo apropriado para descrever a linguagem da autora, como alguns intérpretes vêm fazendo).
Vê-se esse proceder bem no início do livro, na genial associação que molda a relação entre o pai e a mãe da família Windisch. Quando este surpreende a mulher se masturbando, registra o narrador: “Por trás da porta do quarto Windisch ouviu a respiração persistente e ritmada da mulher. Parecia uma máquina de costura.” (p. 20). O procedimento fica ainda mais realçado, quando utilizado para “situar” o leitor no espaço e na ação:

“Windisch senta-se diante da xícara de chá. O vapor devora sua cara. O vapor de hortelã- pimenta evola pela cozinha. Windisch contempla seu olho no chá. O açúcar escorrega da colher para o olho. A colher está no chá.” (p. 60)
Em certas cenas, a autora oferece duas explicações aos fenômenos, uma realista e outra insólita, como que contrastando ambas as abordagens e demonstrando as vantagens, em sua poética, desta: “As mãos estão atadas por cordões brancos para que não deslizem. Para que rezem quando ela chegar lá no alto, às portas do céu.” (p. 64)
Nota-se que as imagens são relacionais e seja uma coruja, uma sopa vomitada dentro da própria sopa, ou um chupão no pescoço mais vermelho que um vestido vermelho, nenhuma delas se perde na aleatoriedade do discurso e ganham mais força se relacionadas ao todo que lhes dá sentido. O impacto deste recurso, ao fim do romance, é eficaz. Tratar itens comumente desassociados em sintagmas (metafóricos, metonímicos, comparativos) únicos, permite a revelação de um mundo que também se desarticula, eticamente, politicamente, moralmente:

“O policial beija os ombros de Amalie. O crucifixo de prata vem-lhe à boca. O padre acaricia as coxas de Amalie. Tire a combinação, diz.
Pela porta aberta Amalie vê o altar. Em meio às rosas vê-se um telefone preto.” (p. 125)

Outra imagem desta natureza, por exemplo, explora outro conceito central no romance, o de tempo:

“O tempo está dependurado ao lado da estufa. Windisch fecha os olhos. ‘O tempo acabou’, pensa Windisch. Ouve o tique-taque da mancha branca deixada pelo relógio de parede e vê o mostrador do relógio feito de manchas pretas. O tempo está sem ponteiros.” (p. 22)

Todo o romance irá expressar uma ideia de tempo que foge à sua materialidade, apostando na representação psicológica e metafísica dele. Algo que a relação livre entre os capítulos (que montam uma narrativa cronológica, sim, mas não teológica, visto que a estrutura de suas relações pode dizer mais sobre a significação de sua sequência do que a sucessão de episódios). Ao fim, a ideia que prevalecerá é a de ciclo, o tempo estagnou no pequeno vilarejo (p.128). A claustrofobia do regime não é apenas espacial, mas temporal, logo, pode ser compreendida de forma histórica. Contudo, evitando ser desesperançoso, o romance narra o aparecimento de uma jovem coruja na sua última página. Caprichos de uma autora que se recusa a tratar o mundo unilateralmente.
O homem é um grande faisão no mundo pode ainda ser relacionado com Bola de sebo, de Maupassant, já que a família vende a filha em troca de favores na mesma medida em que a despreza por ela o aceitar, algo que é sentido pelo pai, antes mesmo do acontecido: “Amalie ainda vai nos envergonhar” (p. 46). A ironia presente no clássico francês retorna como um olhar ácido a respeito da sociedade que, vítima da ditadura, produz vítimas arbitrárias de dentro de si, portanto, não sendo melhores que o ditador. A hipocrisia, não por acaso, é escolhida como tônica da última imagem do romance: os Windisch indo à comunhão, sem terem se confessado (p. 128).
Fera d`alma, por sua vez, apresenta a história de quatro jovens tentando escapar da ditadura romena. Nos anos 80, a personagem narradora, tradutora romena de livros técnicos, proveniente da minoria alemã (tal qual Herta Müller), conhece três jovens, Edgar, Kurt e Georg, com os quais passa boa parte de seu tempo descrevendo a realidade do regime em poemas combativos e vivendo a rotina de vigia e punição próprias de uma ditadura, enquanto seus amigos se sustentam trabalhando em fábricas.
O primeiro acerto do livro é começar contando a história da jovem Lola, colega da tradutora que vai para a cidade grande estudar russo e nutre o desejo de retornar acompanhada de um marido rico e respeitado. Nas primeiras páginas, nada pode garantir que não será Lola a protagonista do romance até que ela, sufocada pelas condições do regime (repetindo a perda de liberdade que caracterizou a filha dos Windisch em O homem é um grande faisão no mundo), se suicida (ainda que pairem dúvidas a respeito de sua morte ter sido mesmo auto-estimulada). A personagem morre logo no início do romance e isso serve para simbolizar a inconstância de um regime em que todos podem desaparecer, além de nos manter receosos com relação ao nosso apego pelos personagens.
Como em O homem é um grande faisão no mundo, a prosa de Müller opta pelo registro antinatural. A força das passagens não está na busca da fidelidade referencial, mas na antinaturalização da violência e da situação dos que a ela sucumbem. Novamente, isso levou alguns a aproximarem seu estilo ao surrealismo, ainda que a base do método artístico desta vanguarda – o automotismo psíquico – esteja longe de suas extremamente motivadas analogias, metáforas e comparações. As relações são bem pensadas, ancinhos são usados para verduras e túmulos (p. 148), o céu pode ser careca (p. 176), e as associações são responsáveis pela construção da realidade e sua experiência. Basta notar trechos emblemáticos como:

“Então o pai morreu. Por causa da bebedeira, o fígado está tão grande quanto o de um ganso obrigado a comer, disse o médico. Ao lado de seu rosto, no armário de vidro, havia pinças e tesouras. Eu falei: O fígado está tão grande quanto as canções para o Führer. O médico colocou o indicador sobre os lábios. Ele pensou nas canções para o ditador, mas eu estava me referindo ao Führer. Com o dedo na boca, ele disse: Um caso perdido. Ele estava se referindo ao pai, mas eu pensei no ditador.” (p. 69)

Aqui fica visível o movimento motivado do signo, tentando embaralhar os diferentes níveis da realidade da protagonista, já que, na prática, eles realmente repercutem de forma decisiva uns nos outros.
Em outras passagens, a livre associação dos itens serve para desorientar os valores de um mundo decadente:

“Por causa do atraso do aluguel, a senhora Margit vai fazer carinho na minha cabeça, eu disse para Tereza. Ela se dá o direito. Como não recebe dinheiro pelo quarto, ela exige sentimentos. Se eu conseguir pagar o aluguel rapidamente, suas mãos não vão chegar na minha cabeça.” (p.  186)

Pelas vias do estranhamento, a autora pode também adentrar no cerne dos conceitos com os quais trabalha, veja-se o medo:

“Comíamos juntos à mesa, mas o medo permanecia individualmente na cabeça de cada um, do jeito que o trazíamos quando nos encontrávamos. Ríamos muito para escondê-lo uns dos outros. Mas o medo escapa. Quando conhecemos o seu rosto, ele entra na voz. Quando conseguimos imobilizar o rosto e a voz feito algo que morreu, ele escapa até pelos dedos. Atravessa para fora da pele. Fica solto por aí, enxergamos o medo nos objetos que estão perto.” (p. 81)

Uma das principais preocupações de Müller é mostrar como o ser individual lida com o regime, o que a obriga a mostrar como o sujeito se relaciona com a coletividade que o cerca. É interessante notar, por exemplo, que, inicialmente, a personagem narradora não se distingue das demais, primeiro indício de que a coletividade é um desafio para o ser individual. Contudo, o decisivo aqui é a representação da impossibilidade de um testemunho puro, totalmente identificável, num clima de perseguição e confinamento, mesmo que a cena transgressora observada seja exclusivamente íntima, a exemplo da seguinte passagem

“Lola meteu uma garrafa vazia entre as pernas, ela agitou a cabeça e a barriga. Todas as moças estavam em volta da sua cama. Alguém puxou seus cabelos. Alguém riu alto. Alguém colocou a mão na boca e ficou assistindo. Alguém começou a chorar. Não sei mais qual dessas era eu.” (p. 25)

Ao longo do romance, até mesmo as cartas pessoais devem ser repletas de códigos e planejadas para que revelem sua violação – como sendo enviados com fios de cabelos no interior. Daí surge um dos efeitos do subtexto político e sociológico da prosa de Herta Müller: dele não escapa nem a mais pura intimidade do homem.
Outra forma de lidar com o espaço coletivo é a importância do nativo e do telúrico em muitas das metáforas e imagens do livro “Carregamos no rosto o que levamos de uma terra”, mas acompanhadas de inúmeras técnicas narrativas que desestabilizam o determinismo esquemático (até porque é impossível ser definido por um espaço controlado e alienador), seja na troca de terceira para primeira pessoa, seja no estilo de narração (como já foi visto).
Repleto de cenas impactantes (cito apenas a cena em que capitão Pjele obriga a tradutora a compor e cantar), Fera D`alma forma par com O homem é um grande faisão no mundo no que tem de combativo, libertário e lírico. O melhor emblema para si talvez seja mesmo o que nomeie o primeiro romance, a "fera d`alma", gêmea do "coração selvagem" que Lispector tomou emprestado de Joyce. Trata-se da inquietude da personalidade e a rejeição de uma vida acomodada e passiva, conseqüente de uma literatura também inconformada, plasmada em um signo liberto, como compensando o aprisionamento dos personagens que ele constrói.


MÜLLER, Herta.  O homem é um grande faisão no mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
MÜLLER, Herta. Fera d'alma. São Paulo: Editora Globo, 2013.



Autor do texto: Daniel Baz





Nenhum comentário:

Postar um comentário