sábado, 27 de julho de 2013

Um livro despretensioso e bom: Trash, de Andy Mulligan



A teoria clássica da literatura sempre observou a divisão vertical entre obras que tratassem das camadas populares e menos favorecidas da população e aquelas que observassem as classes sociais mais altas. Desde Aristóteles, inclinou-se a orientar o segundo tipo de trabalho pelo viés do sublime, do trágico e do sério; enquanto ao primeiro cabia o tom do ridículo, do cômico e do riso. Esta divisão chega até nós por outros projetos, como a Anatomia da crítica, de Northrop Frye, no qual a poética ainda se define, entre outros fenômenos, pela escolha dos objetos e dos “tons” apropriados a eles.
A tradição do que seria o “imitativo baixo” é reexplorada pelo romance de estréia do inglês Andy Mulligan, Trash. Desta vez, no entanto, ligado a uma tonalidade incomum: a da história infanto-juvenil. Na trama três crianças, Raphael, Gardo e Rato vivem a vida, sozinhos ou com seus familiares, em Behala, um lixão localizado em algum país do terceiro mundo. Suas vidas são transformadas quando encontram no lixo uma carteira com dinheiro, um mapa e uma chave dourada, pertences logo procurados pela polícia e que os leva a uma intriga de dupla natureza, já que devem fugir dos oficiais da lei ao mesmo tempo em que tentam descobrir o histórico por trás do objeto perdido.
Tendo como base a estrutura típica de um conto aventuresco e policial (herói, vilão, adjuvantes, objetos “mágicos”, pistas), a trama captura o leitor pela movimentação da história e sua imprevisibilidade. A naturalidade da primeira frase, por exemplo, é imprevisível e dá o tom do livro: “Meu nome é Raphael Fernández e sou um garoto do lixão”. Assim, situações nada cotidianas são descritas pelo olhar constatativo das crianças, que, muito aos poucos, conquistam na narrativa um relacionamento mais emotivo com o que lhes cerca. Este talvez seja o maior acerto narrativo do livro, pois consegue produzir uma espécie de humanização ao permitir que seus protagonistas se envolvam com uma trama que foge ao seu cotidiano.
Para isso, é interessante notar como o enfoque policial, em que a ênfase recai na investigação por trás do tesouro encontrado, desloca a ênfase na pobreza e no tratamento da miséria, que aqui é só o cenário da ação. Além disso, diferente das fábulas clássicas, a importância dos episódios não está em simplesmente obter a recompensa, mas em descobrir seu histórico e seu valor real. Assim, Trash se torna um exame de personagem, em que o mais importante é a forma como os seres se relacionam com os objetos e com as instituições que, geralmente, detém o poder sobre eles (e sobre o seu histórico). Aí está a principal expressão política do livro, a inserção de consciências antes excluídas das instâncias legitimadas, por intermédio de uma informação que escapa ao centro. É dentro deste espiral que a aventura avança e é a ela que o final humilde e singelo se refere.
Dentre as técnicas narrativas utilizadas por Andy Mulligan, destacam-se a mudança no tipo de letras, numa tentativa de particularizar cada um dos garotos, o que funciona em conjunto com a narração também individual. Cada um dos meninos (e alguns outros personagens) narram partes distintas do romance, entretanto, não percebemos uma mudança significativa na entonação dada a cada voz, o que anula, em termos, a decisão narrativa. As trocas são tão artificiais que são introduzidas por expressões como “Aqui é o Gardo, vou continuar a história que Raphael estava contando” (p. 32), “Aqui é Raphael de novo” (p. 40) ou “Ainda é a Olivia” (p. 100). Isto é, por um lado, explicado intradiegeticamente pela figura do padre Julliard, quem reuniu os fragmentos da história, entretanto, não deixa de parecer o receio de um autor com medo que os leitores mais jovens se percam no meio das idas e vindas da trama. Contudo, o caráter oral torna-se fundamental quando, mais ao fim da história, o personagem mais desprovido de bens, Rato, adquire direito a escrita e a registro de sua história (p. 119), um movimento consciente das poéticas ocidentais, como explícito na abertura deste texto*. Além disso, ao construir capítulos narrados pelos três ao fim do livro, a narrativa sinaliza novamente para certa despersonalização da história, o que torna sua focalização mais ambivalente do que se espera para um conto desta natureza.
Sendo assim, com muitos pontos positivos e alguns poucos problemas de ritmo e focalização, Trash é uma boa obra para os públicos mais jovens e uma diversão agradável e inteligente para qualquer um. Stephen Daldry já está preparando a adaptação cinematográfica. Que seja como o livro. Despretensioso e bom.


*Interessante também notar que num dos pontos chaves da trama, um dos meninos deve memorizar uma carta para adquirir certas informações, o que é uma forma de valorizar e expressar a função do conhecimento oral da comunidade representada.


MULLIGAN, Andy. Trash. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

Autor: Daniel Baz

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