É difícil
analisar Laços. Os irmãos Cafaggi o
produziram covardemente. Produto de uma nova etapa no projeto (ainda impecável e
já um marco) Graphic MSP, em que autores relêem os personagens clássicos de
Maurício de Souza, a exemplo do Astronauta no primeiro volume, esta história é
uma dos melhores trabalhos feitos com a turma da Mônica (e não julgo quem
considerá-lo “O” melhor). Mas é
covarde. Quem leu a versão feita por Vitor de Chico Bento, uma das melhores
histórias do projeto MSP 50 (embrião da Graphic MSP), na qual o famoso caipira
conhece Rosinha, já sabia que podia esperar um trabalho incrível como este.
Contudo, covarde.
Covarde
porque todas as suas escolhas linguísticas prezam por uma das faces da função
discursiva, a emotividade. Covarde porque esta emoção vem não só de forma
nostálgica, mas aliada a sentimentos confortáveis demais para serem
contrariados. As cores, o traço, o enredo evocam candura, delicadeza, meiguice.
Dessa forma, das cinco dimensões componentes do processo de leitura
(neurofisiológica, cognitiva, afetiva, argumentativa e simbólica), é a
afetividade que, num primeiro contato, rege nossa percepção. Sabendo disso,
passemos, meio a contra gosto, à análise de Laços,
dos (covardes!) irmãos Vitor e Lu Cafaggi.
Após um breve
preâmbulo, no qual conhecemos a origem de Floquinho, o álbum introduz uma cena
ícone dos quadrinhos nacionais: Cebolinha e Cascão (fantasiados de Peter Pan e Capitão
Gancho) fugindo de uma furiosa Mônica e seu centrífugo Sansão. Cebolinha grita,
aos que se interpõe em seu caminho, a tônica do álbum: “Crianças passando”.
Vitor e Lu, por intermédio do esperto troca-letras, pedem licença para a
infância, para o desejo de contar uma história feita pelo viés do olhar
inocente da turminha.
A perseguição
é funcional para dar uma panorâmica na rua do limoeiro, introduzindo uma série
de personagens de Maurício, como Xaveco e sua irmã Xabéu, Titi, Jeremias... Ao
fim, fica evidente a ênfase no imaginário infantil explorada pelo álbum, quando
Cebolinha termina de contar seu plano absurdo para capturar Sansão e ao fundo
vemos o balão que seria usado por ele no intrincado projeto, indício gráfico que
legitima a delirante imaginação do personagem (influência das tiras de Calvin e
Haroldo, fortemente presentes também em Punny Parker, de Vitor e na primeira parte de Duo.tone). Além
disso, a cena carrega duas características que se seguirão ao longo do álbum, o
movimento e a fantasia, e serão exploradas a seguir.
Toda a sequência
é um show de perspectiva e traço, enfatizando a fluidez dos movimentos dos personagens.
Além da leveza dos contornos, isso é transmitido com perfeição pela escolha de
retratar a turminha no meio de alguma ação duradoura (corrida, conversa,
mastigação). O gerúndio reina nesta primeira cena de laços (interessante que o
único quadro que investe na estática é aquele quando Cascão e Cebolinha vêem a
deslumbrante irmã de Xaveco, como se sua beleza estagnasse o tempo). O início in media res tem um efeito preciso, caímos de pára-quedas num território já conhecido
e que repete em looping as suas ações
desde a última vez em que foi visitado. Além disso, como é comum em outros
trabalho de Cafaggi e Lu, os ângulos também favorecem a movimentação (veja o
último quadro da página 13).
Além destes
aspectos, os desenhos (ainda que deslumbrantes) são econômicos e eficazes na
condução da história, principalmente na forma como eles figuram os personagens,
grande força deste quadrinho. Como diz Paulo Ramos, em A leitura dos quadrinhos, a sobrancelha e a boca são a chave para a
expressividade emocional das personagens e isso é explorado largamente pelos
Cafaggi, algo que fica mais evidente nas cenas em que as crianças descobrem o
sumiço de Floquinho (p. 19) e nas passagens sem balões em que eles procuram
pelo cão (p. 25; p. 29).
As
onamatopéias são empregadas com elegância, remetendo por um lado ao seu uso nas
histórias originais, mas com maior atenção para sua necessidade (a cena do
ronco da barriga de Magali é genial, ao dar função narrativa ao som). Em
determinada perseguição, que põe em risco todo o percurso dos heróis, o som de
choques e de objetos sendo arremessados não é reproduzido, mas apenas sugerido
pela imagem, dando concretude gráfica a algo que é abstrato (p. 38). O
resultado é (através de uma espécie de silêncio gráfico) a valorização do
instante perigoso, e a suspensão da expectativa, já que as onomatopéias
poderiam alterar o tom da sequência permitindo conclusões perceptuais
diferentes, provocando o humor, por exemplo, ou servindo como linha cinética –
o que impediria a ideia de “suspensão” - algo que ocorre em outros trechos do
álbum.
Quanto à
coloração, assinada por Vitor e Priscilla Tramontano, tem-se, a
exemplo do feito em Astronauta: Magnetar,
o favorecimento da expressão psíquica e emotiva das personagens. A paleta
alegre e viva da perseguição inicial é substituída pelos tons escuros (da
noite), assim que se descobre o desaparecimento de Floquinho. Além disso, a saturação
dos trechos desenhados por Lu no início e fim da trama formam uma moldura ainda
mais nostálgica, devido ao aspecto de foto envelhecida e o tom etéreo da cor.
Estes dois momentos (acompanhados de uma homenagem ao Maurício de Souza no meio
do álbum) servem também para produzir no interior da obra, o movimento feito
pelo seu leitor, ou seja, o salto temporal repleto de relações e memórias entre
o passado e o presente.
Outros
componentes também são muito bem pensados, como os rabichos dos balões que desenham
curvas, voltas, laços entre a expressão verbal e o personagem que fala. Mais
uma forma de materializar a conexão entre a turma e a ternura com que seu
discurso está circundado. Por fim, o álbum contém inúmeras referências que
convidam a diversas releituras: No quarto de cebolinha, há sua versão tocador
de pífaro, presente no projeto “História em quadrões”, além disso, esse espaço
está cheio de bonecos que marcaram a infância da década de 80. Esta década está
presente também nas referências cinematográficas (mais uma vez, seguindo a
linha de Astronauta: magnetar): “Conta
comigo” e “Os goonies” fitam o clima de toda a história. Em um determinado momento
(lindo!) a turma passa de bicicleta na frente de uma enorme lua, remetendo a
“E.T.”. A cena mais icônicas de “Warriors” (ou “Os selvagens da noite”) é
reencenada. Contudo, há muitas outras referências, como no trecho em que eles
encontram um esquilo morto (p. 44), óbvia alusão a uma das tiras mais clássicas
de Calvin e Haroldo; e um estranho
mendigo que cruza o caminho da turma, lembrando muito aquele aparecido em Duo. Tone de Vitor Cafaggi.
Além disso,
os autores revisitam situações clássicas da própria turma: todas as histórias
contadas na frente da fogueira (p. 46) - com ênfase no desenho animado em que
Mônica sai só de toalha do banheiro e cruza com o menino mais lindo do bairro,
Ronaldinho, que a espera na sala; e até mesmo o fato de somente Cebolinha usar
sapato é explicado.
Na cena final,
o vilão que prendeu Floquinho está disposto a tudo para se livrar do quarteto,
ao que um assustado Cebolinha, vestido de emblemático Peter Pan, argumenta
“Moço, você não pode... Nós somos clianças”.
A infância pede passagem no início do álbum e pede clemência ao final. Ficamos
tocados, pois a turma da Mônica, a exemplo de outros clássicos protagonizados
por crianças (Os sobrinhos do capitão, Mafalda, Peanuts,...), forma um
microcosmo da nossa sociedade, com a diferença de “as crianças dessas
narrativas agirem de forma pró-ativa em relação ao meio e às pessoas com quem
convivem, funcionando como catalisadores para os anseios e frustrações dos
pequenos leitores, muitas vezes socialmente contidos por pais, avós ou
professores.” (p. 166), ideia exposta por Waldomiro Vergueiro, no ensaio “Quadrinhos
infantis”. Como, na sua maioria, essas histórias permitem uma “dupla leitura”, o
adulto também pode fruir o texto, percebendo certa transgressão operada por
estas crianças. Na sua pureza e inocência, elas podem criticar tudo com uma consciência
maturada, ainda que iconicamente imune aos efeitos dessa maturação (malícia,
ironia, imoralidade). Obviamente, nada acontece com cebolinha, mas a face de
uma sociedade problemática não deixa de ser entrevista.
Por todos
estes componentes, Laços torna-se a
segunda parte magistral de um projeto já espetacular. Ao lado de Astronauta: magnetar, pertence ao que de
melhor foi publicado no país nos últimos anos. Se aquele escolheu uma
característica chave do protagonista e a potencializou (no caso, a solidão do
viajante espacial), aqui o elemento eleito é o companheirismo. Tudo conspira
para isolar a amizade como motor do ser humano do mundo. Assim, as crianças
passam e os adultos se encantam com uma mensagem utópica, ainda que passível de
fruição.
Autor: Daniel Baz
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