sábado, 27 de julho de 2013

Crianças passando, adultos pirando: Laços, de Vitor e Lu Cafaggi



É difícil analisar Laços. Os irmãos Cafaggi o produziram covardemente. Produto de uma nova etapa no projeto (ainda impecável e já um marco) Graphic MSP, em que autores relêem os personagens clássicos de Maurício de Souza, a exemplo do Astronauta no primeiro volume, esta história é uma dos melhores trabalhos feitos com a turma da Mônica (e não julgo quem considerá-lo “O” melhor). Mas é covarde. Quem leu a versão feita por Vitor de Chico Bento, uma das melhores histórias do projeto MSP 50 (embrião da Graphic MSP), na qual o famoso caipira conhece Rosinha, já sabia que podia esperar um trabalho incrível como este. Contudo, covarde.
Covarde porque todas as suas escolhas linguísticas prezam por uma das faces da função discursiva, a emotividade. Covarde porque esta emoção vem não só de forma nostálgica, mas aliada a sentimentos confortáveis demais para serem contrariados. As cores, o traço, o enredo evocam candura, delicadeza, meiguice. Dessa forma, das cinco dimensões componentes do processo de leitura (neurofisiológica, cognitiva, afetiva, argumentativa e simbólica), é a afetividade que, num primeiro contato, rege nossa percepção. Sabendo disso, passemos, meio a contra gosto, à análise de Laços, dos (covardes!) irmãos Vitor e Lu Cafaggi.
Após um breve preâmbulo, no qual conhecemos a origem de Floquinho, o álbum introduz uma cena ícone dos quadrinhos nacionais: Cebolinha e Cascão (fantasiados de Peter Pan e Capitão Gancho) fugindo de uma furiosa Mônica e seu centrífugo Sansão. Cebolinha grita, aos que se interpõe em seu caminho, a tônica do álbum: “Crianças passando”. Vitor e Lu, por intermédio do esperto troca-letras, pedem licença para a infância, para o desejo de contar uma história feita pelo viés do olhar inocente da turminha.
A perseguição é funcional para dar uma panorâmica na rua do limoeiro, introduzindo uma série de personagens de Maurício, como Xaveco e sua irmã Xabéu, Titi, Jeremias... Ao fim, fica evidente a ênfase no imaginário infantil explorada pelo álbum, quando Cebolinha termina de contar seu plano absurdo para capturar Sansão e ao fundo vemos o balão que seria usado por ele no intrincado projeto, indício gráfico que legitima a delirante imaginação do personagem (influência das tiras de Calvin e Haroldo, fortemente presentes também em Punny Parker, de Vitor e na primeira parte de Duo.tone). Além disso, a cena carrega duas características que se seguirão ao longo do álbum, o movimento e a fantasia, e serão exploradas a seguir.
Toda a sequência é um show de perspectiva e traço, enfatizando a fluidez dos movimentos dos personagens. Além da leveza dos contornos, isso é transmitido com perfeição pela escolha de retratar a turminha no meio de alguma ação duradoura (corrida, conversa, mastigação). O gerúndio reina nesta primeira cena de laços (interessante que o único quadro que investe na estática é aquele quando Cascão e Cebolinha vêem a deslumbrante irmã de Xaveco, como se sua beleza estagnasse o tempo). O início in media res tem um efeito preciso, caímos de pára-quedas num território já conhecido e que repete em looping as suas ações desde a última vez em que foi visitado. Além disso, como é comum em outros trabalho de Cafaggi e Lu, os ângulos também favorecem a movimentação (veja o último quadro da página 13).
Além destes aspectos, os desenhos (ainda que deslumbrantes) são econômicos e eficazes na condução da história, principalmente na forma como eles figuram os personagens, grande força deste quadrinho. Como diz Paulo Ramos, em A leitura dos quadrinhos, a sobrancelha e a boca são a chave para a expressividade emocional das personagens e isso é explorado largamente pelos Cafaggi, algo que fica mais evidente nas cenas em que as crianças descobrem o sumiço de Floquinho (p. 19) e nas passagens sem balões em que eles procuram pelo cão (p. 25; p. 29).
As onamatopéias são empregadas com elegância, remetendo por um lado ao seu uso nas histórias originais, mas com maior atenção para sua necessidade (a cena do ronco da barriga de Magali é genial, ao dar função narrativa ao som). Em determinada perseguição, que põe em risco todo o percurso dos heróis, o som de choques e de objetos sendo arremessados não é reproduzido, mas apenas sugerido pela imagem, dando concretude gráfica a algo que é abstrato (p. 38). O resultado é (através de uma espécie de silêncio gráfico) a valorização do instante perigoso, e a suspensão da expectativa, já que as onomatopéias poderiam alterar o tom da sequência permitindo conclusões perceptuais diferentes, provocando o humor, por exemplo, ou servindo como linha cinética – o que impediria a ideia de “suspensão” - algo que ocorre em outros trechos do álbum.
Quanto à coloração, assinada por Vitor e Priscilla Tramontano, tem-se, a exemplo do feito em Astronauta: Magnetar, o favorecimento da expressão psíquica e emotiva das personagens. A paleta alegre e viva da perseguição inicial é substituída pelos tons escuros (da noite), assim que se descobre o desaparecimento de Floquinho. Além disso, a saturação dos trechos desenhados por Lu no início e fim da trama formam uma moldura ainda mais nostálgica, devido ao aspecto de foto envelhecida e o tom etéreo da cor. Estes dois momentos (acompanhados de uma homenagem ao Maurício de Souza no meio do álbum) servem também para produzir no interior da obra, o movimento feito pelo seu leitor, ou seja, o salto temporal repleto de relações e memórias entre o passado e o presente.
Outros componentes também são muito bem pensados, como os rabichos dos balões que desenham curvas, voltas, laços entre a expressão verbal e o personagem que fala. Mais uma forma de materializar a conexão entre a turma e a ternura com que seu discurso está circundado. Por fim, o álbum contém inúmeras referências que convidam a diversas releituras: No quarto de cebolinha, há sua versão tocador de pífaro, presente no projeto “História em quadrões”, além disso, esse espaço está cheio de bonecos que marcaram a infância da década de 80. Esta década está presente também nas referências cinematográficas (mais uma vez, seguindo a linha de Astronauta: magnetar): “Conta comigo” e “Os goonies” fitam o clima de toda a história. Em um determinado momento (lindo!) a turma passa de bicicleta na frente de uma enorme lua, remetendo a “E.T.”. A cena mais icônicas de “Warriors” (ou “Os selvagens da noite”) é reencenada. Contudo, há muitas outras referências, como no trecho em que eles encontram um esquilo morto (p. 44), óbvia alusão a uma das tiras mais clássicas de Calvin e Haroldo; e um estranho mendigo que cruza o caminho da turma, lembrando muito aquele aparecido em Duo. Tone de Vitor Cafaggi.
Além disso, os autores revisitam situações clássicas da própria turma: todas as histórias contadas na frente da fogueira (p. 46) - com ênfase no desenho animado em que Mônica sai só de toalha do banheiro e cruza com o menino mais lindo do bairro, Ronaldinho, que a espera na sala; e até mesmo o fato de somente Cebolinha usar sapato é explicado.
Na cena final, o vilão que prendeu Floquinho está disposto a tudo para se livrar do quarteto, ao que um assustado Cebolinha, vestido de emblemático Peter Pan, argumenta “Moço, você não pode... Nós somos clianças”. A infância pede passagem no início do álbum e pede clemência ao final. Ficamos tocados, pois a turma da Mônica, a exemplo de outros clássicos protagonizados por crianças (Os sobrinhos do capitão, Mafalda, Peanuts,...), forma um microcosmo da nossa sociedade, com a diferença de “as crianças dessas narrativas agirem de forma pró-ativa em relação ao meio e às pessoas com quem convivem, funcionando como catalisadores para os anseios e frustrações dos pequenos leitores, muitas vezes socialmente contidos por pais, avós ou professores.” (p. 166), ideia exposta por Waldomiro Vergueiro, no ensaio “Quadrinhos infantis”. Como, na sua maioria, essas histórias permitem uma “dupla leitura”, o adulto também pode fruir o texto, percebendo certa transgressão operada por estas crianças. Na sua pureza e inocência, elas podem criticar tudo com uma consciência maturada, ainda que iconicamente imune aos efeitos dessa maturação (malícia, ironia, imoralidade). Obviamente, nada acontece com cebolinha, mas a face de uma sociedade problemática não deixa de ser entrevista.
Por todos estes componentes, Laços torna-se a segunda parte magistral de um projeto já espetacular. Ao lado de Astronauta: magnetar, pertence ao que de melhor foi publicado no país nos últimos anos. Se aquele escolheu uma característica chave do protagonista e a potencializou (no caso, a solidão do viajante espacial), aqui o elemento eleito é o companheirismo. Tudo conspira para isolar a amizade como motor do ser humano do mundo. Assim, as crianças passam e os adultos se encantam com uma mensagem utópica, ainda que passível de fruição.


Autor: Daniel Baz

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