quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Ximerix: arcaísmo e jovialidade




Zuca Sardan é um poeta carioca octagenário, nascido em 1933. Hoje é diplomata vivendo na Alemanha, mas sempre foi um poeta de interesse para os poucos que o acompanham. Seu trabalho caminha junto da lírica independente no Brasil. Nos anos 50, o autor já começara a fazer poesia e distribuir de forma alternativa, com um mimeógrafo, para amigos, às vezes produzindo apenas poucas dezenas de exemplares para estes afortunados escolhidos.
Na década de 70, foi finalmente abraçado pelos marginais, resultando na sua inclusão, em 1976, na célebre coletânea 26 poetas hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. No seu mais novo livro de poema, Ximerix, Sardan renova e inova seu repertório criativo. Tendo o significativo subtítulo decINCOcADERNOS DE REMIX RAPZ KOLAX, o trabalho traz uma poesia cheia de experimentações ortográficas e métricas que se sucedem em meio ao auxílio de imagens criadas pelo próprio autor.  A linguagem abusa da colagem, influenciando-se pelo rap e abusando dos arcaísmos e desvios gráficos, remetendo a um dos principais paradigmas da poesia moderna: o “lance de dados” de Mallarmé. O próprio autor aparece como um dos personagens do livro, tornando-se malarmek.
A respeito disso, é bom frisar que os personagens abundam na obra de Sardam, criando uma poesia que o próprio autor definiu como “sem eu”, repleta de sujeitos que traduzem o mundo para um eu que raramente se textualiza, a exemplo de “Capitão Busto”:

A Pomona sem braços
e a Vênus de Gesso
ledas passeiam
com Capitão Busto
Ai!,que bom...
no carrinho de mão
pelo fundo do quintal
à volta da carranca
do Fauno da Fonte
o vento ruge
geme...assovia...
Capitão Busto borbulha
Vênus gorgoleja
Pomona crocita
Que vamos fazer, Capitão?...
Vamos pescar no Mar Morto
algum caranguejo
Multimilenar que seja...
Algumas ostras
dopleistoceno
Sabe-se lá?...
Ai!,que bom... (p. 22)

Muitos também são os textos, como esse, em que a abundância de reticências, ironicamente usadas ao lado de pontos finais, sugerem a impossibilidade de determinar sentidos definitivos para os versos. Além disso, a maioria dos poemetos ganham significado apenas após a leitura do todo, já que seres e situações retornam em várias passagens, ideias se reciclam e voltam em poemas subsequentes, como o trio das paginas 12, 13,14, 16. Em cima das páginas, sílabas e letras se acumulam dando o tom do texto, ou simplesmente confundindo o leitor.
O teor ideológico dos textos, concordando com sua expressão, é também caótico e variado e pode, em dados momentos, ironizar antípodas como socialismo e capitalismo. A primeira imagem da obra, por exemplo, já é extremamente ambivalente como o distinto conde Lotrak tentando matar o “baratão voador” que pousa em sua lapela:

Conde

Conde Lotrak
nobre semblante...
cospe em cima mata
o baratão na lapela!...
Não adianta,Lotrak
lá se foi lá se foi ele...
zaft-zoft-zaft
o Baratão Voador

As reticências no segundo verso funcionam como dispositivo irônico e serão complementadas pela dualidade de um “nobre semblante” ligado aos verbos de ação absolutamente questionáveis “cospe” e “mata”. A consciência de um narrador que se dirige à personagem em segunda pessoa no quinto verso é o distanciamento paródico que empresta mais força ao universo criado pelo poema, solução amplamente usada por Sardan. O humor, por vezes, tateia grandes questões, mas desconcerta a própria temática dos poemas, por intermédio do tom empregado. Dessa forma, os próprios conceitos resultam inseguros em um exercício deliberdade e rebeldia poucas vezes visto. Veja-se o genial poema “Expresso”:

Na dialética os opostos
se tocam quem partiu
de Moscou pra Berlim acabou
chegando mesmo a Moscou
passaram a locomotiva
pro rabo do comboio


Esta insubordinação, própria da mítica marginal, foi aproveitada pela Cosac Naify de maneira inteligente, como costuma ser o design de suas produções, já que a editora reproduz o feeling descentrado em um livro pequeno e de aspecto artesanal. A intransigência é, portanto, oportunamente transposta para a apresentação material do livro, convidando o leitor ao desbravamento de uma lírica incomum, indomável, feita por um discurso octagenário, cheio de arcaísmos, mas detentor de um frescor e jovialidades incomuns.


Autor: Daniel Baz

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