segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A tradição quixotesca como contraideologia em A infância de Jesus



John Maxwell Coetzee é um dos meus autores contemporâneos preferidos. O autor já estabeleceu sua qualidade em obras impecáveis como A espera dos bárbaros, Desonra e projetos impertinentes, a exemplo de Elizabeth Costello. Li seu mais novo romance, A infância de Jesus, na época de seu lançamento, mas esperei algum tempo para estar apto a falar sobre ele. Ficará claro o porquê.
A história acompanha dois personagens, um homem e um menino que, chegados do mar à Novilla, recebem novos nomes e tem de se adaptar a novas vidas. O menino, que agora se chama David, trazia uma carta contando sua origem, mas a perdeu no navio, lugar em que conheceu o homem (agora denominado Simon), e que, a partir de então, passa a ser seu responsável e protetor. Ambos devem falar espanhol, língua usada nesse novo mundo, e recebem novas datas de nascimento como indício máximo de que sua vida pregressa ficou para trás. Simon se engaja então a encontrar a mãe do menino, ainda que David não lembre nem do nome nem do rosto dela.
Logo, o estranhamento da adaptação é sentido na nova terra. Os habitantes de Novilla não sentem desejo sexual, não almejam nada em suas carreiras, vivem, portanto, uma existência sem pulsões. A comida não tem sal, assim como a linguagem não tem ironia. Os prazeres são praticamente inexistentes e o ideal da moderação, da vida regrada e ordenada a partir da recusa da desmedia, rege o mundo. Sendo assim, a trama do romance une a simbologia bíblica que intitula a obra com certos traços de romance distópico:

“A música que ouvimos não tem peso. Nosso ato sexual não tem peso. A comida que comemos, nossa dieta enfadonha de pão, não tem substância – falta a substancialidade da carne animal, com toda a gravidade do sangue derramado e do sacrifício por trás. Nossas próprias palavras não têm peso, essas palavras do espanhol que não brotam do nosso coração” (p. 75)


Como ocorre neste tipo de romance, os dois protagonistas irão desafiar, de formas diferentes, as normas vigentes. Simon tentará melhorias na relação inter-humana (geralmente, por intermédio de chistes e do sexo) e no trabalho. Neste espaço, por exemplo, afronta a realidade ao redor quando sugere a solicitação de um guindaste na estiva para que os trabalhadores possam fazer as tarefas em menos tempo, ao que um colega responde: “‘Dava, sim’ o capataz concorda. ‘Mas para quê? Para que fazer as coisas em um décimo do tempo? Nem tem nenhuma emergência acontecendo, nenhuma falta de nada, por exemplo’” (p. 22); deixando claro que um mundo sem aspirações é também um mundo sem urgência.
Para propormos, entretanto, um esquema conceitual que permita a interpretação, ainda que aberta, de A infância de Jesus é necessário ver a forma pela qual David também subverterá as regras da sociedade, principalmente quando passa a frequentar a escola. Apesar de ser mais inteligente e sensível que o normal, o menino não consegue ler, nem contar, o que revela sua insubordinação aos códigos estabelecidos. Ao invés de ler, prefere abrir os livros e inventar suas próprias histórias. Sendo assim, o romance traçará um paralelo entre ele e Don Quixote, já que o menino só começa a se interessar pela instrução quando tem contato com o clássico de Cervantes. Assim como ocorre no clássico espanhol, na obra de Coetzee há uma série de níveis entre a perspectiva dos protagonistas e o mundo que os cerca, sendo que o romancista pode brincar com a discrepância entre a determinação emotiva-volitiva do herói e a formatação de seu ambiente. Em casos como este, o ambiente não apenas transcende a consciência do herói como a critica ou a ironiza. Além disso, Quixote é um modelo de espontaneidade e libertação em um mundo marcado pela obediência e medida, o que o erige como paradigma do tipo encarnado pelos personagens de A infância de Jesus.
 Contudo, o enredo dá outra pista acerca de suas intenções, algo que, infelizmente, os comentadores do romance vêm ignorando. Nocilla, a nova terra onde se localiza a narrativa, está livre da história, como dizem os personagens em um dos muitos diálogos filosóficos que constituem a obra: “‘Se a história, como o clima, fosse uma realidade superior, então a história teria manifestações que conseguiríamos perceber em nossos sentidos. Mas onde estão essas manifestações?’ Ele olha em torno. ‘Quem de nós já viu seu boné sair voando por causa da história?  Houve um silêncio. ‘Ninguém. Porque a história não tem dessas manifestações. Porque a história não é real. Porque a história é apenas uma estória inventada [...] A história é simplesmente um padrão que vemos no que passou. Não tem nenhum poder para atingir o presente” (p. 128-129).  Além disso, os personagens não recebem e nem se importam com as “notícias do mundo” (p. 74).
Ora, se não há referenciais históricos precisos, então todos os sentidos ainda são possíveis e, por isso, este romance é tão polêmico e muitos reclamam da dificuldade de construir uma interpretação coesa dele. Estamos no terreno descrito por certos textos de Frederic Jameson no qual o passado nada mais é do que uma realidade alternativa e não mais um ponto fixo de onde emerge o presente. Da mesma forma, as referências históricas que temos são insuficientes para construirmos um sentido ideológico estável a respeito do livro, ainda que possamos falar em Marx, em Foucault, em Freud, e, especialmente, Tomás de Aquino, para quem a verdade é a conformidade da “coisa” com a “inteligência”. Em certa passagem do romance, lemos: “Não tem lugar para a Inteligência aqui, só para a coisa em si.” (p. 126). E essa ausência de transcendência marca justamente o mundo abandonado por Deus que, para Lukács, possibilita os tipos que preenchem a forma romanesca.
 Ao lermos A infância de Jesus sabemos que os acontecimentos históricos que munem nossa enciclopédia de leitor pouco afetam Nocilla. Sequer o passado dos protagonistas a afeta, em um interessante espelhamento. “O preço da nova vida é o esquecimento” (p. 71); é o que se lê em dado momento. Por isso, o autor investe na presença farta de diálogos, já que eles performam a imediaticidade da ação e do mundo ficcional. Isso também aparenta longas passagens de A infância de Jesus com o gênero do romance de ideias, explorado fartamente por Coetzee em Elizabeth Costello e A vida dos animais.
Sendo assim, pode-se concluir que aquilo que mais desconcerta neste novo livro de Coetzee é que nenhum dos campos semânticos abrangidos pelo livro permite que o incluamos na nossa noção fluida e geralmente agregadora de “progresso”. Extremamente contraideológicos, já que seus personagens não conseguem se adequar a sociedade, ocupando funções e aceitando padrões de comportamento delineáveis (mais uma vez rendendo tributos ao cavaleiro da triste figura), Simon e David conseguem se configurar como “sujeito” sem determinantes ideológicos precisos e rastreáveis, já que até mesmo certos ideais revolucionários de ambos terminam sem efeito e contundência. Percebemos os opostos, entendemos certos subtextos, mas nem paradoxos, nem a dialética pode configurar uma leitura completa desta estranha aventura de J.M Coetzee.

Autor: Daniel Baz




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