segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Mary: uma tragédia sem palavras




A HQ de Magno Costa, Mary, tem apenas 34 páginas e 33 quadros. Sim, com exceção de uma página dupla milimetricamente pensada, todos os demais quadros ocupam a extensão completa da folha. Dessa forma, o autor exige um olhar mais apurado do leitor e empresta uma carga simbólica mais densa a cada imagem demonstrada, principalmente devido ao fato de Mary não ter texto.O enredo é aparentemente simples. Uma mulher é acusada de bruxaria e será queimada em praça pública por aldeões conservadores e furiosos. No ato punitivo, empreendido pelo protagonista masculino (típico herói trágico que, por intermédio de uma falha, perderá a posição de prestígio que tem), a feiticeira aparentemente lança uma maldição que afeta a todos no lugarejo.
Apesar da simplicidade do plot, é na condução da história que Mary apresenta uma qualidade narrativa incomum. O primeiro quadro mostra, de um plano inferior, os galhos sombrios das árvores, cujo caminho levam à casa da bruxa. Nenhuma figura humana é vista. Estamos em terreno selvagem e isso evidencia a dualidade (enfatizada também pelo uso do P&B) da bruxaria, que consiste em tomar as rédeas das forças naturais em prol de interesses pessoais.
A seguir, a única página dupla do álbum apresenta a frente da casa da acusada. Mais uma vez, a ausência de cores garantem o ar sombrio do cenário, assim como a largura do enquadramento intensifica o mistério de seu interior. O leitor está prestes a adentrar em um mundo desconhecido e antipático. Apesar disso, o desenho da acusada é genial, pois mostra uma mulher cabisbaixa e visivelmente fragilizada. Pega de surpresa, uma de suas mãos segura as costas da cadeira, enquanto a outra repousa inofensiva sobre um prato vazio. Contudo, ao redor da sala, há um contorno negro que recorta a figura feminina indiciando sua verdadeira natureza.
A história começa, portanto, com uma invasão de domicílio privado e esta conduta estará presente também na resolução da história, onde a tragédia coletiva e as decisões tomadas em espaço público é também um drama familiar e íntimo. Durante a cena da queima da bruxa, é mantida a representação inofensiva da misteriosa mulher, especialmente na página em que ela surge prostrada em segundo plano atrás dos punhos cerrados do povo que a condena. Em vários pontos, a página da esquerda dialoga de forma interessante com a da direita, não necessariamente apenas dando sequencia a trama, mas complementando o sentido exposto na cena anterior. Isso ocorre, por exemplo, no momento em que o homem e a bruxa se encaram, ou quando as mãos dos aldeões que rezam são retratadas como lanças ameaçadoras contra a face demoníaca da acusada.
A bíblia, no momento da execução da pena, aparece aberta e com as páginas viradas para o personagem que a lê de frente para o leitor. Não vemos sua face. A palavra religiosa no seu ícone mais poderoso e sumário retorna ao fim, no velório dos filhos da autoridade, mas, dessa vez,podemos a face de tristeza do religioso e o livro sagrado que ele segura já não tem mais a mesma força, destituído inclusive de título. O fogo opressor nas tochas que queimam a mulher também surge agora domado nas velas que ardem em primeiro plano ao lado do cadáver das crianças.
O chão aparece em Mary em apenas dois quadros. Na cena da morte do gado, representando a consciência dura da realidade maléfica que assola o povoado, e na página final, em que um ângulo superior narra o derradeiro êxodo do vilarejo, adensando, mais uma vez em bases concretas, a desgraça. Bachelard em dois livros excepcionais explica como as imagens relacionadas ao solo formam dois sistemas, um que se relaciona com os devaneios da vontade outro que remete ao sonho do repouso. O autor ao erradicar o solo de praticamente toda sua trama e desenhá-lo unicamente nos dois exemplos citados nega as duas saídas aos aldeões que desafiaram a bruxa. A terra se associa com a morte e com a derrota representada pela fuga e pela desmotivação.
No restante do álbum, por sua vez, os personagens são vistos geralmente em planos italianos, do peito para cima, nos quais o solo nunca é mostrado, o que intensifica a efemeridade da existência e situa os conflitos no espaço do inefável e do transitório. O drama, portanto, é social, visto que Costa segue a tradição das obras que vem no mal uma forma de renovação do status quo. O signo da transformação rege a última imagem do trabalho e marca a derrota das pessoas que desafiaram um mal que não compreendiam e, como o autor não permite que elas falem, sua tragédia torna-se ainda mais intensa, porque jaz eternamente dentro de si.

Autor: Daniel Baz

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