A capacidade
de absorver em sua estrutura narrativa as características da sociedade de massa
contemporânea é um dos diferenciais das ficções pós-modernas. No mínimo desde a
década de 50, estas ficções tornaram-se capazes
de alegorizar sua própria situação, ao mesmo tempo em que representam o
mundo que as contextualizam. Neste processo, Don DeLillo nunca foi autor de
pouca importância e seu romance Cosmópolis,
que agora recebe uma nova interpretação – cinematográfica – nas mãos de David Cronenberg,
é uma obra emblemática de relevo.
Eric Parker, 28
anos, gênio da especulação financeira, o que o torna bilionário, decide cortar
o cabelo. O fato de o presidente estar na cidade, seguido da morte de uma expoente
astro do rap, transformam a cidade em um caos, tornando a banal decisão do
protagonista o início de uma epopéia pelas ruas engarrafadas e hostis da
cidade. Boa parte do romance se passa na limusine de Parker, espaço artificial
que permite o movimento do personagem enquanto este garante sua estaticidade, o
que converte o automóvel no símbolo da pós-industrialização e da lógica mínimo
esforço/máximo de resultados – além de ser índice explícito da alienação que o
fará cair antes do fim da história.
Durante o
dia, Eric irá se envolver em uma série de diálogos reveladores do absurdo de
sua existência, como o médico que constata que sua próstrata é assimétrica ou a
excitação sexual atingida sem contato físico e com a participação de uma
garrafa de plástico. Para piorar sua situação, alguém está decidido a matá-lo, crise
que o torna ainda mais paranóico e ajuda na reflexão do seu modo de existência.
Consciente disso, o autor estabelece dois tipos de narração, uma em terceira
pessoa - que acompanha Eric - e outra em primeira pessoa – usada para seguir o
raciocínio de seu assassino. Dessa forma, a única consciência a que temos
acesso é a do antagonista do herói, o que também enfraquece a mundivivência de
Parker .
DeLillo,
assim, explora o absurdo dos acontecimentos para erigir uma alegoria precisa de
certas características, para as quais ele lança um olhar cáustico, do mundo
atual, na velha tradição de Jonathan Swift. O interessante de Cosmópolis é que o absurdo atinge até
mesmo os menores organismos do discurso, começando pelas comparações
artificialmente alusivas em que um carro é grande como metástase (p. 18) e deve
ser “prousteado” (alongado) (p. 73). A impertinência semântica é visível ainda em
certas frases que não se ligam com qualquer informação precedente, o que é
ilustrado pelo momento em que o narrador diz do protagonista “Ele gostava de
manter o volume baixo, ou tirar o som” (p. 41).
O auge deste
tipo de procedimento é atingido em passagens que sinalizam para a discrepância
entre os atos e suas causas, criando sintagmas em que as ações se alienam de
suas motivações: “Ela mergulhou o dedo no drink depois esqueceu de lambê-lo” (p.
111). Para finalizar, certas informações não acrescentam absolutamente nada ao que
foi dito anteriormente e garantem o lugar de elementos sintáticos que já não
tem nenhuma função, mas que nem por isso são descartados: “O que faz as pessoas
espirrarem? Um reflexo protetor das mucosas nasais, para expelir material
estranho.”
O que torna
todos estes exemplos citados eficazes é a maneira como eles se articulam com a
atividade responsável pela situação de Parker, ou seja, a especulação
financeira. A ideia principal deste tipo de atividade é justamente consistir em
um trabalho sem ato, feito em um tempo indissociado das ações humanas. Por isso,
este tipo de atividade econômica, característica dos tempos atuais, estipula
uma nova dimensão humana do tempo, em que as ações presentes estão desvinculadas
de suas conseqüências imediatas. Por outro lado, a especulação deposita valor
temporal humano em um futuro ainda não vivido, mas que já está cheio de ações
transcorridas em um tempo ainda inexistente. Assim, o futuro, carregado de
responsabilidade, se torna urgente e algo precisa acontecer para compensar a
disritmia. A narrativa é uma forma de ressincronizar o tempo ao presente. Sendo
assim, a lógica do novo capitalismo flutuante insemina o discurso também com
sua qualidade gratuita e disfuncional.
Em
determinado momento, uma personagem menciona a perda da qualidade narrativa do
dinheiro, o que faz pensarmos em como a relação humana com este objeto tão
presente no romance, no mínimo desde o século XIX, e na mudança de sua função
na estrutura romanesca. Em autores do tipo de Balzac, por exemplo, o dinheiro é
o grande motor da ação e os conflitos e reviravoltas da narrativa transcorrem
ao seu redor. Em Cosmópolis o
dinheiro ainda é fundamental, mas não surge concatenado a uma série de ações.
Muito pelo contrário. Pode aparecer em grande escala ou sumir em um Deus ex machina importando a sua lógica
na sociedade atual para dentro da narrativa. DeLillo faz seus personagens
mencionarem a afinidade entre movimentos do mercado e mundo natural (p. 87).
Não podemos deixar de notar uma analogia imposta entre o mercado e este tipo de
mundo ficcional, onde o supérfluo é o padrão de mesura e a existência dos
objetos precedem sua função.
DELILLO, Don. Cosmópolis. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
Autor: Daniel Baz
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