quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O valor do supérfluo em Cosmópolis




A capacidade de absorver em sua estrutura narrativa as características da sociedade de massa contemporânea é um dos diferenciais das ficções pós-modernas. No mínimo desde a década de 50,  estas  ficções tornaram-se capazes de alegorizar sua própria situação, ao mesmo tempo em que representam o mundo que as contextualizam. Neste processo, Don DeLillo nunca foi autor de pouca importância e seu romance Cosmópolis, que agora recebe uma nova interpretação – cinematográfica – nas mãos de David Cronenberg, é uma obra emblemática de relevo.
Eric Parker, 28 anos, gênio da especulação financeira, o que o torna bilionário, decide cortar o cabelo. O fato de o presidente estar na cidade, seguido da morte de uma expoente astro do rap, transformam a cidade em um caos, tornando a banal decisão do protagonista o início de uma epopéia pelas ruas engarrafadas e hostis da cidade. Boa parte do romance se passa na limusine de Parker, espaço artificial que permite o movimento do personagem enquanto este garante sua estaticidade, o que converte o automóvel no símbolo da pós-industrialização e da lógica mínimo esforço/máximo de resultados – além de ser índice explícito da alienação que o fará cair antes do fim da história.
Durante o dia, Eric irá se envolver em uma série de diálogos reveladores do absurdo de sua existência, como o médico que constata que sua próstrata é assimétrica ou a excitação sexual atingida sem contato físico e com a participação de uma garrafa de plástico. Para piorar sua situação, alguém está decidido a matá-lo, crise que o torna ainda mais paranóico e ajuda na reflexão do seu modo de existência. Consciente disso, o autor estabelece dois tipos de narração, uma em terceira pessoa - que acompanha Eric - e outra em primeira pessoa – usada para seguir o raciocínio de seu assassino. Dessa forma, a única consciência a que temos acesso é a do antagonista do herói, o que também enfraquece a mundivivência de Parker .
DeLillo, assim, explora o absurdo dos acontecimentos para erigir uma alegoria precisa de certas características, para as quais ele lança um olhar cáustico, do mundo atual, na velha tradição de Jonathan Swift. O interessante de Cosmópolis é que o absurdo atinge até mesmo os menores organismos do discurso, começando pelas comparações artificialmente alusivas em que um carro é grande como metástase (p. 18) e deve ser “prousteado” (alongado) (p. 73). A impertinência semântica é visível ainda em certas frases que não se ligam com qualquer informação precedente, o que é ilustrado pelo momento em que o narrador diz do protagonista “Ele gostava de manter o volume baixo, ou tirar o som” (p. 41).
O auge deste tipo de procedimento é atingido em passagens que sinalizam para a discrepância entre os atos e suas causas, criando sintagmas em que as ações se alienam de suas motivações: “Ela mergulhou o dedo no drink depois esqueceu de lambê-lo” (p. 111). Para finalizar, certas informações não acrescentam absolutamente nada ao que foi dito anteriormente e garantem o lugar de elementos sintáticos que já não tem nenhuma função, mas que nem por isso são descartados: “O que faz as pessoas espirrarem? Um reflexo protetor das mucosas nasais, para expelir material estranho.”
O que torna todos estes exemplos citados eficazes é a maneira como eles se articulam com a atividade responsável pela situação de Parker, ou seja, a especulação financeira. A ideia principal deste tipo de atividade é justamente consistir em um trabalho sem ato, feito em um tempo indissociado das ações humanas. Por isso, este tipo de atividade econômica, característica dos tempos atuais, estipula uma nova dimensão humana do tempo, em que as ações presentes estão desvinculadas de suas conseqüências imediatas. Por outro lado, a especulação deposita valor temporal humano em um futuro ainda não vivido, mas que já está cheio de ações transcorridas em um tempo ainda inexistente. Assim, o futuro, carregado de responsabilidade, se torna urgente e algo precisa acontecer para compensar a disritmia. A narrativa é uma forma de ressincronizar o tempo ao presente. Sendo assim, a lógica do novo capitalismo flutuante insemina o discurso também com sua qualidade gratuita e disfuncional.
Em determinado momento, uma personagem menciona a perda da qualidade narrativa do dinheiro, o que faz pensarmos em como a relação humana com este objeto tão presente no romance, no mínimo desde o século XIX, e na mudança de sua função na estrutura romanesca. Em autores do tipo de Balzac, por exemplo, o dinheiro é o grande motor da ação e os conflitos e reviravoltas da narrativa transcorrem ao seu redor. Em Cosmópolis o dinheiro ainda é fundamental, mas não surge concatenado a uma série de ações. Muito pelo contrário. Pode aparecer em grande escala ou sumir em um Deus ex machina importando a sua lógica na sociedade atual para dentro da narrativa. DeLillo faz seus personagens mencionarem a afinidade entre movimentos do mercado e mundo natural (p. 87). Não podemos deixar de notar uma analogia imposta entre o mercado e este tipo de mundo ficcional, onde o supérfluo é o padrão de mesura e a existência dos objetos precedem sua função.


DELILLO, Don. Cosmópolis. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


Autor: Daniel Baz

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