segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Entre a inquietude e a acumulação: O sentido de um fim, de Julian Barnes



“A que propósito evolucionário a nostalgia poderia servir?” pergunta Tony Webster, narrador memorialista sexagenário do romance O sentido de um fim, de Julian Barnes. O questionamento torna-se crítico quando pensamos no transtornado percurso de um herói que busca se (re) descobrir lembrando a vida que teve, na esteira do filão de livros rememorativos sempre tão populares, não importando a época. O principal diferencial de O sentido de um fim é o peso dado a não-confiabilidade do narrador, que torna o processo de leitura muito mais acidentado e escorregadio.
O romance se divide em duas partes. Na primeira - que já começa com significativa indicação dos limites da memória, em que a lembrança ocorre de forma “aleatória” – o narrador lembra o grupo de três amigos que o acompanharam quando era um estudante, com especial atenção para o genial colega Adrian Finn, o rápido namoro com a misteriosa Veronica (acrescido do tratamento desdenhoso que a família dela lhe oferece) e, por fim, a entrada no mundo adulto, ao casar-se com Margaret, de quem se divorcia anos depois.
Até este ponto do romance, a ênfase recai na admiração/inveja que o narrador sente pela inteligência do amigo Adrian, sua mágoa quando este começa a sair com Veronica e sua surpresa quando ele se suicida aos 22 anos. Quando consegue esquecer o velho colega, a história parece perder a razão de ser e salta no tempo, resumindo décadas da história do narrador: “Então conheci Margaret; nos casamos e três anos depois nasceu Susie. Nós compramos uma pequena casa com uma grande hipoteca; eu viajava para Londres todo dia. Meu estágio se transformou numa longa carreira. A vida foi passando. Algum inglês disse que o casamento é uma refeição comprida e sem graça onde servem o pudim primeiro. [...] Depois de doze anos, Margaret foi viver com um cara que gerenciava um restaurante.” (p. 62)
O que parecia ser mais uma história de “A vida que podia ter sido e que não foi” se torna algo muito mais enigmático a partir da segunda parte do livro, em que o narrador recebe da mãe de Veronica o testamento do amigo, envolvendo uma quantia de dinheiro (prontamente recebida) e o diário de Adrian, ainda em posse de Veronica. Além disso, esta etapa do romance insere o imaginário contemporâneo nos limites da obra e acompanhamos as incessantes mensagens de e-mail do narrador para seus conhecidos, em busca de recuperar o diário e entender questões abertas desde o passado.
Por esta via, a narrativa trabalha a inscrição de dois tempos diegéticos em destaque, o do século passado, anos sessenta, e os presentes anos dois mil. Dois recortes de tempo muito específicos que são subseqüentes na narrativa sem a oportuna observação dos momentos que lhe foram intermediários. Este tratamento anômalo do tempo alia-se à capacidade seletiva da memória que controla a sintaxe narrativa. O próprio personagem recorre a uma imagem interessante para tentar explicar isso: “Mais tarde, a memória vira uma coisa feita de retalhos e remendos. É um pouco como a caixa preta que os aviões carregam para registrar o que acontece num desastre. Se nada der errado, a fita se apaga sozinha. Então, se você se arrebenta, o motivo se torna óbvio; se você não se arrebenta, então o registro da sua viagem é muito menos claro.” (p. 113)
Quem conhece a obra-prima de Proust sabe que lá o autor explora dois aspectos da retenção representativa operada pela memória. Refiro-me à percepção e à rememoração (cujo ápice ocorre na discussão da retenção da percepção estética de O tempo redescoberto). Na primeira experiência, o foco está na presentificação do objeto enquanto sentido, efeito extremamente particularizado. Já na outra relação com os fenômenos, trata-se de uma espécie de resumo lógico empreendido pela memória, e que geralmente tende a retirar as particularidades pessoais da experiência passada para incorporá-las à cadeia genérica da narrativa de uma vida. Ora, o narrador de O sentido de um fim está a todo o momento partindo do segundo tipo de experiência para o primeiro. Prova disso é uma das cenas mais impressionantes do livro em que o narrador ao ler uma carta enviada por si mesmo no passado percebe o quanto pode ser cruel. A percepção de um objeto que vivia na memória como reminiscência, pode redefinir a identidade do sujeito e interferir na sua relação com o mundo e com seu interlocutor (afinal, há um receptor implícito textualizado em muitos momentos do texto).
A ambigüidade da identidade do protagonista surge em uma série de textos em que o narrador se contradiz ou relativiza, no momento da enunciação, o conteúdo do enunciado. Um dos momentos mais explícitos acontece quando o narrador revela: “Mais uma vez, devo enfatizar que esta é a minha leitura atual do que aconteceu na época. Ou melhor, minha lembrança atual da leitura que fiz então do que estava acontecendo na época.” (p. 49); ou quando se põe sumariamente em dúvida “Os Ford eram mais elegantes do que os Webster naquela época, e eles iam continuar sendo para sempre. Ou isso era mera paranóia da minha parte?” (p. 81)
Todo este tratamento ambíguo está relacionado com uma percepção do tempo também na sua perspectiva histórica. Em determinado momento, Tony atesta que “a maioria das pessoas nos anos 1960 ainda estava experimentando os anos 1950 – ou, no meu caso, pedaços de cada década lado a lado. O que tornava as coisas um tanto confusas” (p. 47). Desta forma, a história, assim como o indivíduo, também é feita de percepções que envolvem anacronias necessárias para o desenvolvimento da compreensão do que se viveu. A disritmia (nostálgica ou não) torna-se sim um motor da evolução narrativa (e de sua interpretação), por intermédio da pré-seleção e interpretação dos eventos.
Também por isso a linguagem da obra investe na errância de motivos, que, de um momento para o outro, podem perder todo o sentido ou ganhar novos. O deslizamento de interpretações cria um tipo de obra memorialista, como em clássicos do tipo de Tristan Shandy, em que se oferece a imagem de um embate, do homem e sua capacidade dinâmica de narrar com as relações petrificadas que estabelece no mundo e aquelas que a própria memória cria.
A palavra passa a admitir que “não foi bem assim”, desde o momento de sua enunciação. O autor do monólogo interior, que, geralmente, é dono de um gesto preciso, ao não se distanciar esteticamente do que conta, está fadado a experimentar o julgamento da interlocução. A sociedade, por sua vez, neste tipo de romance, se resume a poucas relações motivadas pelas situações que se firmaram no passado, inscrevendo a trama no terreno da (re) apresentação do mundo (basta reparar como o narrador não consegue mais se relacionar com ninguém no presente). Nesse sentido, quando o narrador, ao fim do romance, descobre que uma personagem é na realidade outra bem mais nova do que a primeira que ele supora, podemos finalmente perceber melhor o teatro trágico da vida de Tony preso à outra temporalidade.
Assim, o sentido de um fim torna-se o sentido do próprio tempo. Descontínuo, o tempo, por sua vez, é uma matéria ineficaz. Como última menção, basta notar como os personagens são desenhados em rápidas pinceladas pelo narrador, que nunca oferece uma imagem definida e concentrada dos coadjuvantes. Desta forma, o tempo interno do eu constrói uma narração que não tenta a fixação de identidades externas a si, ainda que a verdade resida também ali. Por isso, o sentido do fim é ainda um sentido de acumulação e inquietude, numa paráfrase do lamento final de Tony: “Existe acumulação. Existe responsabilidade. E além de tudo isso, existe inquietude. Existe grande inquietude.” (p. 159)

BARNES, Julian. O sentido de um fim. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.


Autor: Daniel Baz

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