quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O código binário do terror



 Toda grande obra de terror investe na dualidade, pois o que assusta mais é aquilo que não pode ser resumido unilateralmente, ou seja, o que não pode ser completamente compreendido. O caráter dual do terror/suspense está na dupla personalidade de herói e heroína em “Vertigo” ou no negro da silhueta contra o branco do espaço em “O mensageiro do diabo”. Está no moralismo sexagenário do sanguinário Jason, e fatalmente na consciência melódica que John Williams deu ao semi-invisível tubarão de Spielberg. Os dois acordes - ritmo binário que materializa a dualidade - equivalem à dupla face do medo, tã dã tã dã tã dã, bem, mal, certo, errado, morto, vivo. Ah, Alan Moore, mais uma vez tu já o sabias!


Seu novo trabalho, o quadrinho de terror Neonomicon, investe nesta mesma abordagem durante toda a primeira história, aquela que estabelece o tom de toda a trama sequencial. Nela, o agente do FBI Aldo Sax decide investigar uma série de crimes cometidos por diferentes pessoas, mas que seguem o mesmo padrão. Logo, o sujeito estará envolvido numa trama que envolve letras enigmáticas de rock, seitas secretas e seres sobrenaturais, todos remetendo a obra de H. P. Lovecraft.
 A dupla face do mundo, que esconde literalmente no seu subterrâneo um universo que lhe subverte está expresso no ritmo binário da história de sax. Adequado para um percurso polarizado, de alguém que passa de um lado do espectro social para o outro - de investigador para investigado. Como em qualquer história de suspense bem contada em quadrinhos, Alan Moore e Jacen Burrows (o infame desenhista) deixam que o ato de virar a página se torne o verdadeiro compasso da história. Isso permite que nos acostumemos com um padrão rítmico, ainda que nada saibamos do conteúdo enigmático do enredo, e essa familiaridade com algo ainda desconhecido rende a maior parte da tensão produzida nesta primeira história. O final desta etapa investe na ênfase das transições, um dos pontos mais abordados pelo próprio Moore quando escreve sobre quadrinhos. Uma sucessão de quadros idênticos, em que o protagonista não muda de posição (mesma posição do quadrinho que começa a história). A força da transformação recai justamente no espaço da sarjeta, entre um quadro e outro. É ele que atesta (aliado logicamente ao texto) a transformação do sujeito no seu duplo. Fim do binarismo.
O restante da história se centra em dois agentes do FBI que, após Sax ter se tornado também um assassino, passam a investigar o tal culto a Lovecraft. Lovecraft mais do que sustentar a obra com sua mitologia de seres e línguas ancestrais, rende também um contexto extra-icônico de referências fluídas, o que aumenta a expectativa, pois denuncia a insuficiência de nossa iconografia para entender o mundo diegético. Os autores brincam com isso ao, na cena mais impactante e polêmica da história (em que uma orgia ocorre), acompanharmos a visão de uma agente míope e que acaba de perder os óculos, o que torna tudo opaco e indefinível (indefinição em sintonia com trecho de “O chamado de Cthulhu” em que o narrador não consegue definir uma das criaturas e atesta o tratamento impressionista dado a ela, ou seja, com contornos indistintos e forma indefinida). O próprio conceito de ancestralidade é alterado nesta história, pois se descobre que os monstros são seres do futuro. Vale mencionar que esta ideia está latente já em “O chamado de Cthulhu”, quando o narrador compara as estruturas da cidade das criaturas com as descrições dos artistas futuristas.
Neste ponto, a leitura da história mais uma vez sofre um impacto. Se lemos toda a primeira parte seguindo os quadros da esquerda para a direita, agora temos que lê-los de cima para baixo. Se o espaço do quadrinho era, por sua vez, inspecionado verticalmente, na segunda parte, fazemos isso horizontalmente. A inversão técnica acompanha claramente uma inversão de tom, mas este não é o único efeito. A partir da segunda história a temporalidade dos quadros, incorporada horizontalmente, permite uma série de experiências, como entender as tediosas conversas entre os dois agentes no quarto, enquanto se vestem, o que cria um contraste impactante com a violência que vem depois. Esta, como envolve muitos personagens aproveita a largura dos quadros para explorar simultaneamente o desespero da vítima e a alegria de seus algozes. Da mesma forma, os quadros verticais da primeira história confinam o protagonista em um mundo estreito (após usar a droga, o plano se abre), mas que permite vários níveis intercalados, o “sub” e o “sobre” servem ao mesmo ato contemplativo (algo visível em cenas como da página 24 e 52).
Apesar da fala de personalidade dos desenhos de Burrows, o quadrinho tem algumas boas soluções. Uma delas refere-se ao momento em que a personagem acima citada tem que lidar com uma criatura além de sua compreensão. Aqui, a dobra da parede (formando um “l”) separa os dois seres, mas também as enquadra em dois contextos distintos, como se fossem quadros autônomos. Isto marca o momento em que a agente tenta se comunicar com a criatura e um item diegético (dobra da parede), ao poder ser lido como metadiegético (sarjeta), revela a distinção entre o universo do compreensível e daquele além de nossas molduras conceituais.
A história ainda envolve perversão sexual, se valendo da assexuada figura de Lovecraft, mas a grande ideia é mesmo a que esta no início da obra. Quem não leu, ainda dá tempo de deixar o texto aqui, pois irei revelá-la: A droga que faz as pessoas mudarem seu comportamento trata-se na realidade de uma nova língua. Sim, aquela presente nas obras do contista norte-americano. A emergência de uma língua dentro do homem provoca uma revolução na sua personalidade. As novas associações semânticas, fônicas e sintáticas disponíveis lhe permitem atingir um novo estatuto existencial, ligado a algo que a realidade ainda está para se tornar. “Só a poesia ou a loucura poderiam fazer justiça aos clamores ouvidos pelos homens de Legrasse enquanto abriam caminho através do negro lodaçal em direção ao fulgor rubro e ao som dos tamborins”, diz o narrador de “O chamado de Cthulhu”. Como alguém que aprendeu a lição, Alan Moore empresta à linguagem a base de novas formas de percepção. Lírico e louco. A última dualidade do terror de Neonomicon. O derradeiro binarismo da cosmovisão de Lovecraft + Moore.

Autor: Daniel Baz 


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