Um espião é
um bom observador. Carrega identidades moventes e um arcabouço inumerável de
segredos. Um espião transita por, pelo menos, dois níveis distintos da
realidade e deve impor a autenticidade de ambos, mesmo que um deles (ou os
dois) seja ficção. Um espião é um mestre na criação de novas vidas. Um escritor
também. Desta associação óbvia, se não fosse incomum, surge o estofo de Serena, novo romance de Ian McEwan.
Após começar uma
relação amorosa com um homem mais velho e casado, Serena Frome é indicada por
ele a ingressar no MI5, o serviço de inteligência britânico, nos anos “frios”
da década de 70. A
partir daí, acompanhamos as desventuras da jovem, que incluem o fim da sua relação
com Tony Canning (o tal homem citado), o início da sua relação com o colega de
MI5, Max e, principalmente, a tarefa delegada a ela de contratar o escritor Tom
Haley, dentro da iniciativa Tentação (Sweet tooth, no original, expressão que
dá nome ao romance). O escritor será pago para publicar obras cuja orientação
estejam afinadas com a do serviço de inteligência em troca de estabilidade
financeira. Serena não pode permitir que Tom, por quem logo se apaixona, tenha
noção da origem do dinheiro e descubra seu real emprego, o que inicia o jogo de
esconde-esconde, responsável pela complexidade e beleza do livro.
O romance é
narrado em primeira pessoa por Serena. Seu lugar discursivo situa-se muito
depois dos acontecimentos relatados, o que faz da trama um longo flashback. A autoridade narrativa da
protagonista lhe garante total controle sobre a ordem e seleção dos fatos, o
que justifica uma série de sínteses feitas logo no início da história. “Nada de
estranho ou terrível aconteceu comigo durante os meus primeiros dezoito anos e
é por isso que eu vou pular esse período.” (p. 8), diz a narradora já nas cenas
iniciais, para em seguida decretar uma segunda justificativa: “Se eu passei
correndo pela minha infância e adolescência, então certamente vou condensar o
meu tempo de aluna de graduação.” (p. 12)
A relação de
Serena com o escritor Tom Haley é marcada pela sua postura de leitora muito
particular. A heroína diz em certa ocasião que “Acreditava que os escritores
eram pagos para fingir, e deveriam usar o mundo real onde coubesse, aquele que
nós todos compartilhávamos, para dar plausibilidade ao que inventam. Então,
nada de palavrório chique sobre os limites da arte, nada de demonstrar
deslealdade para com o leitor ao parecer cruzar e recruzar sob algum disfarce
as fronteiras do imaginário.” (p. 85). Sendo assim, Serena se posiciona na
contramão das novas correntes da literatura metanarrativa e de artifícios
distanciadores que ressaltam o caráter ficcional da matéria literária. Somos
levados a considerar a comunhão entre a preferência de Serena e o texto de
McEwan, que também se constrói de forma límpida, clara e garante qualidade
estética pelo esforço realista da organização fabular.
Mas não
poderíamos estar mais enganados... No último capítulo do livro, Serena, após
uma série de idas e vindas da trama, encontra uma carta de Haley em que ele
revela que já sabia de toda a situação em que estavam envolvidos e que decidira
escrever um romance sobre ela. O escritor diz também que ainda a ama e que, se
o sentimento for recíproco, ela deve publicar o livro. Sim, a obra que você tem
em mãos foi escrita por Haley, cuja decisão de mimetizar a amada, tentando
conhecê-la, age de forma retroativa no texto, ressignificando tudo que havia sido
lido anteriormente. Já a primeira frase do romance atesta isso, ao ressaltar a
forma como a heroína quer que se pronuncie seu nome (“Frum”). Ora, isso por um
lado revela a dupla face (sujeito/objeto narrativo) que a personagem
representa, mas por outro, demonstra já a representação de Haley agindo sobre a
identidade da protagonista, visto que a correção na pronúncia do sobrenome faz
parte do diálogo do primeiro encontro entre os dois.
Além disso, no
início do romance são muitas as situações em que Serena se vê em situações que
não sabe como reagir, ou não sabe o que dizer (p. 103). O que parecia antes ser
imaturidade ou falta de discernimento da jovem adentrando o mundo da política
internacional e aprendendo a experimentar novos sentimentos, passa também a significar
a inabilidade do narrador em busca de sua personagem. É irônico que Serena, na
segunda metade do livro, tenha influenciado contos de Haley e até mesmo
reescrito um deles - usando de seus conhecimentos matemáticos (p. 256). A
protagonista tentara também interpretar o homem por detrás dos textos, ou seja,
conhecer o amante por intermédio de sua obra, numa relação determinista que a
própria estrutura do livro desfaz. Mesmo
os esforços empreendidos por ela em interpretar os personagens de Haley são
inúteis, pois Serena está na mesma categoria que eles, ou seja, todos frutos da
criatividade do escritor. Além disso, os trechos resumidos do início do livro
passam a significar, ao invés de autoridade narrativa de Serena, a submissão da
relevância dos acontecimenso da vida da heroína, a partir da capacidade de
compreensão de seu autor/amante.
Sendo assim, Haley
é um eu intercalado entre McEwan e o espaço diegético, um engenho técnico
presente na literatura desde Don Quixote,
quando, no capítulo nove, o historiador muçulmano Cide Hamete Benengeli surge
como aquele que teria escrito boa parte do livro. O artifício evoca também as
histórias de Chaucer e Bocaccio, em que narradores interpostos assumem a
autoria das informações que compõe o nível principal da história. Contudo, as
semelhanças com Quixote não terminam por aí. Serena, como o fidalgo alucinado,
também enfrenta a forma literária que a circunscreve. A lógica formal do livro
é oposta à sua maneira de ver a ficção e vai contra o uso que dela ela faz. Em
muitos momentos, inclusive, Serena assume dizer saber coisas que na realidade
não sabe - e Max chega a criticá-la por isso, mencionando que tal comportamento
pode ser sua perdição (p. 163). Cria-se assim uma larga distância de tipo
lucaksiano entre a consciência do herói e o mundo que lhe cerca.
O jogo de
esconde-esconde encontra sua síntese na imagem final do livro, que resume tudo
a uma grande história de amor. Haley (narrador) diz a Serena que ela publique o
romance apenas se aceitar continuar a história amorosa entre os dois, o que o
classificaria o trabalho de “obra conjunta”. Assim, terminar o livro é não
apenas um ato de recepção, mas um ato de ação. Somos nós, ao acabarmos a
história, que permitimos que os conflitos sejam resolvidos e que a obra,
portanto, adquira sua verdadeira face. Dos espiões, o mais poderoso é o leitor,
voyeur ditatorial, sob as ordens do próprio prazer.
MCWEAN, Ian. Serena.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Autor: Daniel Baz
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