quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Consolo metalingüístico, poética azarenta



Paulo Henriques Britto, no seu último e excelente livro de poemas, se arriscando na metalinguagem:

Poética prática

A realidade é um calhamaço insuportável?
Tragam-me então resumos.
A vida que se leva é um filme inassistível?
Vejamos só os anúncios.

São os limites do corpo intrusões malignas
de um demiurgo escroto?
O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso:
eu não é um nem outro.

Anda inconveniente a tal da poesia,
a significar?
Nada como um bom significante vazio
para abolir o azar.

(BRITTO, 2012, p. 18)

O eco final do poema guia, inevitavelmente, o primeiro esforço do intérprete. Mallarmé e seu “Um coup de dés”, poema-constelação em que, entre outras coisas, os limites semânticos do verso extrapolam os contornos da palavra e afetam a disposição do léxico na página, o uso do signo branco – vazio – da folha de papel. A frase-eixo do poeta francês, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” pontua um experiência técnica em que o uso preciso de todos os níveis da materialidade da obra literária procura fundar um lirismo consciente de todos os seus horizontes, onde nada pode ser aleatório. Nem mesmo o suporte deve sugerir ingenuidade/aleatoriedade. Entretanto, a ênfase no aspecto verbal, ilumina uma série de áreas significantes e possibilidades expressivas que passam a comportar múltiplas alternativas de sentido, o que promove uma maleabilidade semântica livre o suficiente para incorporar a imprevisibilidade de seu uso. Quem levanta a mão e diz o sentido preciso de “The waste land”?
Guardando essas informações em mente, é necessário pensar que a discussão do eu-lírico em “Poética prática” começa pela indagação da natureza do real, logo no primeiro verso. Contrariando as expectativas, a complexa dubitação, que poderia render um livro inteiro, é logo seguida de solução apropriada. Esta sinaliza para uma forma alternativa de se apreender um mundo amplo demais para o sujeito. Assim, uma consciência se expressa na tensão de perceber e criar molduras de apreensão do real, o que poderia nos lançar a uma discussão fenomenológica. Entretanto, parece ser mais eficaz interpretar o poema ainda pela manifestação mais óbvia de sua produção, a dicotomia expressa no título “Poética/prática”, que tenta harmonizar o Poiein (fazer-criar), isto é, a natureza da criação e da feitura do texto, com a prática, com o processo, uso e difusão do produto lírico. O conceito de poesia elaborado é, portanto, gêmeo da concretude da própria expressão.
Para entender esta última, o primeiro passo é refletir acerca da rítmica e métrica, dimensão essencial de qualquer teoria do verso. As perguntas, no poema de Brito, são feitas em dodecassílabos,  alguns atingidos por intermédio de muitas junções na leitura (a união de “de-é-um”, lidos como uma única sílaba, no primeiro verso é ilustrativa disso); já as respostas são menores, logo, mais rápidas. Servem para diminuir a dubitação metafísica a partir de versos com a metade da duração (seis sílabas) dos anteriores. A tensão da dúvida, mais extensa, é transposta para a musicalidade harmônica do ritmo na resposta. Talvez por isso, o primeiro verso da segunda estrofe já se organize em doze sílabas, de forma muito mais natural. Afinal, é também nela que se admite a presença fundamental do eu textualizado.
A segunda estrofe é, por isso, a mais obscura de todo o poema. Conceptista, num jogo de idéias que enfatiza seu aspecto logopéico, é nela que se define o sujeito, a partir da definição da poesia. Sendo assim, o processo de descoberta de um, revela o outro. Isso já está manifesto no último verso do primeiro poema do livro - “e todo consolo é metalingüístico”- onde já se anunciara a tônica de uma obra preocupada com a utilidade e motivação da poesia, ainda que estes tenham um efeito tautológico. O texto que precede a “Poética/prática” - na realidade um conjunto de poemas, unificados pelo título “Oficina” - começa questionando a necessidade da autoexpressão para terminar questionando a precisão do vocabulário utilizado, num exercício de justa preocupação com a importância da poesia no mundo.
Assim, quando o eu-lírico fala de si, está naturalmente falando também da poesia: “O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso: eu não é um nem outro”. As duas primeiras orações não apenas se referem a dois conteúdos antagônicos, como sua organização sintática revela a dualidade presente no poema. Sua lógica interna é oposta,  uma vez que, segundo outro poema, qualquer “pensamento pensado/ até a total exaustão/ termina no mesmo exato lugar/ sua exata negação.” (p. 42). Em “Poética prática”, contudo, uma das ideias aposta na negatividade do dado negado, enquanto a outra investe na positividade do dado expresso. Os dois extremos denunciam uma reflexão polarizada, cujo mote é revelado no final do poema, em que a significação é, ironicamente, vista como inconveniência. Ironicamente, pois, mesmo o paradoxal/redundante trecho antes analisado, é extremamente preciso no plano de seu ritmo. “O corpo não é preciso, e o espírito impreciso”. O que parece ser um desengonçado verso de quinze sílabas é lido, ritmicamente, como a junção de duas redondilhas maiores. O andamento popular evoca familiaridade na epifania do ser, ou seja, na indefinição do lugar do eu, afinal, os limites indefiníveis do sujeito são a tônica da linguagem metapoética, da também indefinida arte poética.
“É tudo que me resta do começo disso que agora pensa, fala e sente que pode ser denominado 'eu'” (p. 29), diz o autor em outra obra, e fica mais fácil entender como a precisão que não se encontra nem no corpo, nem no espírito, pode ser atingida na métrica, numa síntese dos dois lirismos “inspirado” e “construtivo”, que João Cabral já anunciara como componentes da lírica. Por causa disso, as correspondências sonoras, terreno firme para um padrão conceitual abstrato, adquirem uma importância muito maior. Ecos sonoros como “inassistível” “insuportável”, “escroto”, “outro”, “poesia” “vazio” são escolhas precisas, manifesto do legítimo versus, o qual exige que se guarde as informações anteriores e se retorne aos sons e ritmos já usados para construir o todo da significação. Estes atingem seu ápice na rima franca final “significar” “azar”, que acerta ao dar relevância fônica ao campo semântico “abolir o azar-acaso”, já que o cerne da poética e de sua prática recai justamente no caráter construtivo e, ao mesmo tempo, gratuito que pode envolver a poética e prática da poesia.
O momento em que o eu-lírico menciona diretamente seu ofício, o faz mencionando “a tal da poesia”. Portanto, a “poesia” surge como complemento nominal de uma estrutura tipicamente oral, vulgar (“tal da”). Num jogo de espelhos deformados, ela complementa sintaticamente uma função da língua que geralmente é associada ao seu oposto. O que nos leva a outro grande debate do lirismo moderno e após ele, o lugar de comunicantes unilaterais, de expressões sem complexidade conotativa, na poesia. A comunicação, que, na prática e na crítica da poesia, não raras vezes é admitida unicamente como ironia (mais uma vez remetendo à Mallarmé), está também no ótimo texto “Um pouco de Strauss”:

UM POUCO DE STRAUSS

Não escreva versos íntimos, sinceros,
como quem mete o dedo no nariz.
Lá dentro não há nada que compense
todo esse trabalho de perfuratriz,
só muco e lero-lero.

Não faça poesias melodiosas
e frágeis como essas caixinhas de música
que tocam a “Valsa do Imperador”.
É sempre a mesma lenga-lenga estúpida,
sentimental, melosa.

Esquece o eu, esse negócio escroto
e pegajoso, esse mal sem remédio
que suga tudo e não dá nada em troca
além de solidão e tédio:
escreve pros outros.

Mas se de tudo que há no vasto mundo
só gostas mesmo é dessa coisa falsa
que se disfarça fingindo se expressar,
então enfia o dedo no nariz, bem fundo,
e escreve, escreve até estourar. E tome valsa.

Além de semelhanças que denunciam um repertório semi-inconsciente de artifícios (“escroto” novamente ecoa em “outro”), o poema discute o mesmo problema de “Poética prática” por outro prisma. Quanto mais hermético, mais individual é o texto. Michel Hamburger é um dos teóricos que, refutando as idéias principais de clássicos como Estrutura da lírica moderna, de Hugo Friedrich, demonstram como, mesmo na grande poesia simbolista/modernista, começando por Baudelaire, há grande preocupação com o aspecto comunicacional do lirismo. Uma linguagem rebuscada nada mais é do que a ênfase em uma consciência humana particular. O trabalho extremo com a linguagem é atestado de uma voz que quer ser ouvida. Um poema deste tipo pode não ter utilidade imediata (o que produz a tropologia da negação deste segundo poema), mas não deixa de ser uma dimensão essencialmente social do homem.
O “eu” mais uma vez está carregado de negatividade e positividade, pois à união de ambos cabe dar forma ao nada. Realmente, todo o livro de Paulo Henriques Britto investe na retomada de ritmos metrificados, versos rimados e acentos precisos como um manifesto a favor do diálogo a partir do uso consciente da técnica. O verso se afirma ainda que aborde o vazio. Num dos poemas em que o eu-lírico tenta se definir, por exemplo, tem-se o seguinte resultado:

ECCE HOMO

Não ser quem não ser é é coisa trabalhosa.
Exige a disciplina austera e rigorosa.

de quem, achando pouco simplesmente ser,
Requer o luxo adicional de parecer.

As essências enganam, e o eu é tão escasso
que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço,

e nada como a negação da negação
para efetuar ta delicada operação

e pronto: está completo. O homem mais o andróide,
Imune a suave mari magno e Schadenfeude,

Ser e não ser na mais perfeita sintonia.
Use e abuse. A coisa vem com garantia.

O “ocupar com alguma coisa tanto espaço” complementa o “consolo metalingüístico” de “Poética prática”. Comunicar é um risco? Não ser ouvido também? Basta investir no verbo artificioso, motivado, polivalente. Basta uma tentativa e o azar, muito azar.



BRITTO, Paulo Henriques. As formas do nada. Companhia das Letras, 2012.

Autor: Daniel Baz

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