Paulo Henriques Britto, no seu
último e excelente livro de poemas, se arriscando na metalinguagem:
Poética prática
A realidade é um calhamaço insuportável?
Tragam-me então resumos.
A vida que se leva é um filme inassistível?
Vejamos só os anúncios.
São os limites do corpo intrusões malignas
de um demiurgo escroto?
O corpo não é preciso, e o espírito é impreciso:
eu não é um nem outro.
Anda inconveniente a tal da poesia,
a significar?
Nada como um bom significante vazio
para abolir o azar.
(BRITTO,
2012, p. 18)
O eco final do
poema guia, inevitavelmente, o primeiro esforço do intérprete. Mallarmé e seu
“Um coup de dés”, poema-constelação em que, entre outras coisas, os limites
semânticos do verso extrapolam os contornos da palavra e afetam a disposição do
léxico na página, o uso do signo branco – vazio – da folha de papel. A
frase-eixo do poeta francês, “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” pontua
um experiência técnica em que o uso preciso de todos os níveis da materialidade
da obra literária procura fundar um lirismo consciente de todos os seus
horizontes, onde nada pode ser aleatório. Nem mesmo o suporte deve sugerir
ingenuidade/aleatoriedade. Entretanto, a ênfase no aspecto verbal, ilumina uma
série de áreas significantes e possibilidades expressivas que passam a comportar
múltiplas alternativas de sentido, o que promove uma maleabilidade semântica
livre o suficiente para incorporar a imprevisibilidade de seu uso. Quem levanta
a mão e diz o sentido preciso de “The waste land”?
Guardando essas
informações em mente, é necessário pensar que a discussão do eu-lírico em
“Poética prática” começa pela indagação da natureza do real, logo no primeiro
verso. Contrariando as expectativas, a complexa dubitação, que poderia render
um livro inteiro, é logo seguida de solução apropriada. Esta sinaliza para uma
forma alternativa de se apreender um mundo amplo demais para o sujeito. Assim,
uma consciência se expressa na tensão de perceber e criar molduras de apreensão
do real, o que poderia nos lançar a uma discussão fenomenológica. Entretanto,
parece ser mais eficaz interpretar o poema ainda pela manifestação mais óbvia
de sua produção, a dicotomia expressa no título “Poética/prática”, que tenta
harmonizar o Poiein (fazer-criar),
isto é, a natureza da criação e da feitura do texto, com a prática, com o
processo, uso e difusão do produto lírico. O conceito de poesia elaborado é,
portanto, gêmeo da concretude da própria expressão.
Para entender
esta última, o primeiro passo é refletir acerca da rítmica e métrica, dimensão
essencial de qualquer teoria do verso. As perguntas, no poema de Brito, são
feitas em dodecassílabos, alguns atingidos
por intermédio de muitas junções na leitura (a união de “de-é-um”, lidos como
uma única sílaba, no primeiro verso é ilustrativa disso); já as respostas são
menores, logo, mais rápidas. Servem para diminuir a dubitação metafísica a
partir de versos com a metade da duração (seis sílabas) dos anteriores. A
tensão da dúvida, mais extensa, é transposta para a musicalidade harmônica do
ritmo na resposta. Talvez por isso, o primeiro verso da segunda estrofe já se
organize em doze sílabas, de forma muito mais natural. Afinal, é também nela que
se admite a presença fundamental do eu textualizado.
A segunda
estrofe é, por isso, a mais obscura de todo o poema. Conceptista, num jogo de
idéias que enfatiza seu aspecto logopéico, é nela que se define o sujeito, a
partir da definição da poesia. Sendo assim, o processo de descoberta de um,
revela o outro. Isso já está manifesto no último verso do primeiro poema do
livro - “e todo consolo é metalingüístico”- onde já se anunciara
a tônica de uma obra preocupada com a utilidade e motivação da poesia, ainda
que estes tenham um efeito tautológico. O texto que precede a “Poética/prática”
- na realidade um conjunto de poemas, unificados pelo título “Oficina” - começa
questionando a necessidade da autoexpressão para terminar questionando a
precisão do vocabulário utilizado, num exercício de justa preocupação com a
importância da poesia no mundo.
Assim, quando
o eu-lírico fala de si, está naturalmente falando também da poesia: “O corpo
não é preciso, e o espírito é impreciso: eu não é um nem outro”. As duas
primeiras orações não apenas se referem a dois conteúdos antagônicos, como sua
organização sintática revela a dualidade presente no poema. Sua lógica interna é
oposta, uma vez que, segundo outro poema,
qualquer “pensamento pensado/ até a total exaustão/ termina no mesmo exato
lugar/ sua exata negação.” (p. 42). Em “Poética prática”, contudo, uma das ideias
aposta na negatividade do dado negado, enquanto a outra investe na positividade
do dado expresso. Os dois extremos denunciam uma reflexão polarizada, cujo mote
é revelado no final do poema, em que a significação é, ironicamente, vista como
inconveniência. Ironicamente, pois, mesmo o paradoxal/redundante trecho antes
analisado, é extremamente preciso no plano de seu ritmo. “O corpo não é preciso,
e o espírito impreciso”. O que parece ser um desengonçado verso de quinze
sílabas é lido, ritmicamente, como a junção de duas redondilhas maiores. O
andamento popular evoca familiaridade na epifania do ser, ou seja, na
indefinição do lugar do eu, afinal, os limites indefiníveis do sujeito são a
tônica da linguagem metapoética, da também indefinida arte poética.
“É tudo que
me resta do começo disso que agora pensa, fala e sente que pode ser denominado 'eu'” (p. 29), diz o autor em outra obra, e fica mais fácil entender como a
precisão que não se encontra nem no corpo, nem no espírito, pode ser atingida
na métrica, numa síntese dos dois lirismos “inspirado” e “construtivo”, que
João Cabral já anunciara como componentes da lírica. Por causa disso, as
correspondências sonoras, terreno firme para um padrão conceitual abstrato,
adquirem uma importância muito maior. Ecos sonoros como “inassistível” “insuportável”,
“escroto”, “outro”, “poesia” “vazio” são escolhas precisas, manifesto do
legítimo versus, o qual exige que se
guarde as informações anteriores e se retorne aos sons e ritmos já usados para
construir o todo da significação. Estes atingem seu ápice na rima franca final
“significar” “azar”, que acerta ao dar relevância fônica ao campo semântico
“abolir o azar-acaso”, já que o cerne da poética e de sua prática recai
justamente no caráter construtivo e, ao mesmo tempo, gratuito que pode envolver
a poética e prática da poesia.
O momento em
que o eu-lírico menciona diretamente seu ofício, o faz mencionando “a tal da
poesia”. Portanto, a “poesia” surge como complemento nominal de uma estrutura
tipicamente oral, vulgar (“tal da”). Num jogo de espelhos deformados, ela
complementa sintaticamente uma função da língua que geralmente é associada ao
seu oposto. O que nos leva a outro grande debate do lirismo moderno e após ele,
o lugar de comunicantes unilaterais, de expressões sem complexidade conotativa,
na poesia. A comunicação, que, na prática e na crítica da poesia, não raras
vezes é admitida unicamente como ironia (mais uma vez remetendo à Mallarmé), está
também no ótimo texto “Um pouco de Strauss”:
UM
POUCO DE STRAUSS
Não
escreva versos íntimos, sinceros,
como
quem mete o dedo no nariz.
Lá
dentro não há nada que compense
todo
esse trabalho de perfuratriz,
só
muco e lero-lero.
Não
faça poesias melodiosas
e
frágeis como essas caixinhas de música
que
tocam a “Valsa do Imperador”.
É
sempre a mesma lenga-lenga estúpida,
sentimental,
melosa.
Esquece
o eu, esse negócio escroto
e
pegajoso, esse mal sem remédio
que
suga tudo e não dá nada em troca
além
de solidão e tédio:
escreve pros outros.
Mas
se de tudo que há no vasto mundo
só
gostas mesmo é dessa coisa falsa
que
se disfarça fingindo se expressar,
então
enfia o dedo no nariz, bem fundo,
e escreve, escreve até estourar.
E tome valsa.
Além de
semelhanças que denunciam um repertório semi-inconsciente de artifícios
(“escroto” novamente ecoa em “outro”), o poema discute o mesmo problema de
“Poética prática” por outro prisma. Quanto mais hermético, mais individual é o
texto. Michel Hamburger é um dos teóricos que, refutando as idéias principais
de clássicos como Estrutura da lírica
moderna, de Hugo Friedrich, demonstram como, mesmo na grande poesia
simbolista/modernista, começando por Baudelaire, há grande preocupação com o aspecto
comunicacional do lirismo. Uma linguagem rebuscada nada mais é do que a ênfase
em uma consciência humana particular. O trabalho extremo com a linguagem é
atestado de uma voz que quer ser ouvida. Um poema deste tipo pode não ter
utilidade imediata (o que produz a tropologia da negação deste segundo poema),
mas não deixa de ser uma dimensão essencialmente social do homem.
O “eu” mais
uma vez está carregado de negatividade e positividade, pois à união de ambos
cabe dar forma ao nada. Realmente, todo o livro de Paulo Henriques Britto investe na retomada
de ritmos metrificados, versos rimados e acentos precisos como um manifesto a
favor do diálogo a partir do uso consciente da técnica. O verso se afirma ainda que aborde o vazio. Num dos poemas em que o
eu-lírico tenta se definir, por exemplo, tem-se o seguinte resultado:
ECCE HOMO
Não ser quem
não ser é é coisa trabalhosa.
Exige a
disciplina austera e rigorosa.
de quem,
achando pouco simplesmente ser,
Requer o luxo
adicional de parecer.
As essências
enganam, e o eu é tão escasso
que há que
ocupar com alguma coisa tanto espaço,
e nada como a
negação da negação
para efetuar
ta delicada operação
e pronto:
está completo. O homem mais o andróide,
Imune a suave mari magno e Schadenfeude,
Ser e não ser
na mais perfeita sintonia.
Use e abuse.
A coisa vem com garantia.
O “ocupar com
alguma coisa tanto espaço” complementa o “consolo metalingüístico” de “Poética
prática”. Comunicar é um risco? Não ser ouvido também? Basta investir no verbo
artificioso, motivado, polivalente. Basta uma tentativa e o azar, muito azar.
BRITTO, Paulo
Henriques. As formas do nada.
Companhia das Letras, 2012.
Autor: Daniel Baz
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