sexta-feira, 2 de março de 2012

Pataquada: O conflito das representações em pan Apoleck


Isaac Bábel
Isaac Bábel é um mestre do conto ocidental. Considerado como “paradigma do século XX” por Boris Schnaiderman, o autor torna-se popular por ter mapeado as transformações da turbulenta Rússia da década de 20, fundamentalmente em seu livro O exército de cavalaria, ambientado na guerra russo-polonesa, onde atuou como correspondente. O autor injustamente já não goza de muita popularidade entre nós (apesar de, por exemplo, estar no centro de Vastas emoções, pensamentos imperfeitos, de Rubem Fonseca) e quero me deter em um de seus contos menos famosos, onde está em plena forma.
Trata-se de "pan Apolek". Texto em que o narrador conta a história do sujeito que dá nome ao conto (pan, em russo, significa senhor), pintor diplomado que chega a Novograd e rapidamente recebe o encargo de pintar a nova igreja. Mais rapidamente ainda é acusado de sacrilégio por ter usado o rosto das pessoas do povoado para representar as cenas bíblicas. Se o delito ainda é considerado inofensivo, quando o padre se reconhece em um dos pastores retratados, torna-se herético no momento em que “Os cidadãos importantes, convidados pelo vigário, reconheceram Janek, o coxo convertido, no apóstolo Paulo, e em Maria Madalena a jovem judia Elka, filha de pais desconhecidos e mãe de muitas crianças abandonadas.” (43)
Após ser expulso da igreja, passa a oferecer suas habilidades a todos, podendo, por exemplo, pintar a Última Ceia, usando parentes e amigos dos fregueses e dando a Judas Iscariotes a face de seus inimigos. Dessa forma, quando uma comissão designada pelo bispo chega para conferir o ocorrido, vê que até os mais miseráveis da localidade estão canonizadas nas cenas eclesiásticas graças à transgressão do pintor. Ao fim do conto, o narrador está com Apolek, trinta anos depois da heresia, e ouve o velho contar uma nova versão da história de Cristo. Segundo o pintor, Cristo teria se compadecido de certa Débora, abandonada pelo noivo, e tido um filho com ela.
O texto de Bábel parte da pintura para discutir um dos centros conceituais da arte. Como libertar-se dos modelos da realidade e representar algo essencialmente criador? Além disso, como pretender que o artista elimine as referências contextuais que o envolvem em prol de atingir o efeito pretendido pela história narrada? Apolek cria um paradoxo quando tenta representar uma história lendária a partir de modelos cotidianos. Para falar com Northrop Frye, trata-se de misturar dois modos de imitação, o imitativo alto (seres superiores aos homens normais, lendários) com o imitativo baixo (seres ordinários). O conflito da representação não podia ter palco mais eficaz, afinal, o cosmos bíblico preza por um tipo de realismo que figura o homem histórico, presente no cotidiano (como Auerbach já mostrou no seu Mimesis). Por isso, se presta a este tipo de subversão, tendo o sujeito mundano no centro de sua concepção de humanidade. Os heróis bíblicos são sempre inferiores com relação às camadas que organizam o mundo, diferente dos heróis gregos que, em grande parte das vezes, descendiam do nível superior.
A repercussão intradiegética desta aporia representacional não podia ser diferente. O vulgo clama pela canonização imediata. Celebra sua face refletida nas lendas. Brota daí uma concepção de arte como dispositivo emancipacional do homem. Na ficção, a esfera inferior pode corroer a superior momentaneamente e subverter as categorias de classificação da realidade. Apolek, como artista, inventa uma versão da vida e parodia a oficial. Observa o mundo ao seu redor e o preenche do valor que melhor lhe aprouver. Seu melhor amigo na história é, inteligentemente, um cego. Um absorve tudo por intermédio de sua visão de mundo particular (que se confunde com a visão enquanto atributo sensorial do ser), o outro abdica involuntariamente dos modelos ao seu redor. Está claro, na história de Bábel, qual deles pode almejar o estatuto de criador.


BÁBEL, Isaac. O exército de cavalaria. São Paulo. Cosac & Naify, 2006.

 Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

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