Um homem-narrador enlouquecido, tentando contar uma história de amor. Melhor, uma história de loucura, violência e absurdo que é a própria definição do amor, articulada por Cauby, protagonista de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino. O texto começa com a impossibilidade da comunicação: “Não adianta explicar. Você não vai entender.”. Trecho ambíguo que, se postula a impossibilidade do sentido, também estabelece um receptor explícito no texto, “você”, que, não sendo personificado, repercute no receptor. A figura do leitor tem seu papel assegurado, mesmo que a compreensão não seja garantida.
A incompreensão reside no complexo intrincado de acontecimentos da história relatada. O herói, fotógrafo, está numa cidade do Pará, no meio do conflito entre empresas e mineradores em busca de ouro. Mas também está numa pensão, depois da aventura vivida, dividindo o espaço, entre outros seres, com Altino, apelidado de careca, personagem que também relata uma história de amor vivida no passado.
A história de amor de Cauby começa quando este se interessa por Lavínia – mulher casada e ex-prostituta - por quem se apaixonará. Para ser fiel ao livro, tem-se que dizer que ele se sente atraído primeiro por sua fotografia e a incapacidade de conhecer-apreender o ser amado, assim como, a impossibilidade de distinguir entre ele e sua representação, irão determinar as situações vividas pelo casal. Estas começam pelo caráter profético do herói e da sua confiança nos astros (o casal mostra certo fascínio por astrologia). Mas é interessante notar que todos os pressentimentos iniciais tidos pelo narrador (como a morte do careca na página 21, ou a expectativa sobre quem bate a sua porta na página 58) são desmentidos pela narrativa, o que evidencia o sujeito entregue aos caprichos de um destino anunciado (pois o narrador sabe o que aconteceu), mas surpreendente (pois tudo ainda parece absurdo).
Além disso, a construção do texto revela uma história estagnada, que não permite mais a mudança de seus componentes, mas articulada por uma narração dinâmica, que, entre outros elementos, se sustenta em situações de suspense, quase policiais. Uma trama intrincada e às vezes rocambolesca para uma história fechada, imutável. Conflito que garante a tensão da personagem narradora, que apesar de todos os artifícios retóricos empreendidos, jamais poderá desviar o percurso de sua trajetória.
O cotidiano à beira do non-sense também decorre daí. Afinal, tudo parece ilógico para nós, que, diferente de Cauby, não sabemos o que pode estar por trás das atitudes e seres. Destaco, entre os absurdos da narrativa, o tatu Zacarias, herdado pelo narrador e que perdeu a capacidade de escavar. Mesmo ele, tem uma função precisa, pois representa o alquebramento do protagonista, principalmente ao fim do livro, além de simbolizar o desinteresse com as coisas da terra, vivido pelo narrador.
Mas um dos talentos mais evidentes de Aquino está na sua capacidade de intercalar cenas e histórias (seu livro O invasor também é uma obra-prima na construção de cenas e imagens que ocorrem sincrônicas). Ora, as cenas em paralelo servem para aumentar as possibilidades de sentido (como o menino rindo na página 44), podem também servir para salientar a situação das personagens (como o casal sorridente ao fundo, enquanto o careca conta sua história, na página 53). Contudo, os momentos mais impactantes são os inúmeros em que a prosa reveza-se entre do relato de Cauby e o de Altino, às vezes em momentos de extrema tensão, o que sugere a nivelação dos tempos presente-futuro, como ficará mais forte no (re)encontro que fecha a obra.
Outro momento intercalado está no longo trecho em que conhecemos o passado de Lavínia, a única parte do livro narrada em 3ª pessoa. Além disso, existe um outro texto subjacente ao enredo. O livro O que vemos no mundo, escrito pelo professor Schianberg e que serve de manual do protagonista nas questões do amor. É o único objeto, junto com sua câmera, que resiste a determinado incêndio localizado mais ao fim do texto. Há ainda, uma trama paralela envolvendo a guerra pelo ouro que irá causar a morte de um dos personagens principais.
No fim de tantos reveses, ficamos com a força de um amor sobrevivente, que resiste às inúmeras tramas paralelas e tempos narrativos como núcleo da história. Pois aqui ele também é uma doença contagiosa, sexualmente transmissível, um veneno que consome tudo. No caso narrativo, organiza tudo a partir de seu temperamento ilógico. O amor já está na negação da primeira frase. Elemento semiótico relacional do livro estabelece a não-necessidade e a não-causalidade como verossimilhança. No final, o narrador se permite outra interlocução, com seu receptor explícito “Você não teria esperança?” (229). Para deixarmos o livro em paz, temos que entender aqui uma brecha, o derradeiro ponto de fuga do amor segundo Marçal Aquino.
AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios. São Paulo. Companhia das Letras, 2005.
AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios. São Paulo. Companhia das Letras, 2005.
Autor do texto: Daniel Baz dos Santos
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