sexta-feira, 2 de março de 2012

Pataquada: O amor segundo Marçal Aquino

Um homem-narrador enlouquecido, tentando contar uma história de amor. Melhor, uma história de loucura, violência e absurdo que é a própria definição do amor, articulada por Cauby, protagonista de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino. O texto começa com a impossibilidade da comunicação: “Não adianta explicar. Você não vai entender.”. Trecho ambíguo que, se postula a impossibilidade do sentido, também estabelece um receptor explícito no texto, “você”, que, não sendo personificado, repercute no receptor. A figura do leitor tem seu papel assegurado, mesmo que a compreensão não seja garantida.
A incompreensão reside no complexo intrincado de acontecimentos da história relatada. O herói, fotógrafo, está numa cidade do Pará, no meio do conflito entre empresas e mineradores em busca de ouro. Mas também está numa pensão, depois da aventura vivida, dividindo o espaço, entre outros seres, com Altino, apelidado de careca, personagem que também relata uma história de amor vivida no passado.
A história de amor de Cauby começa quando este se interessa por Lavínia – mulher casada e ex-prostituta - por quem se apaixonará. Para ser fiel ao livro, tem-se que dizer que ele se sente atraído primeiro por sua fotografia e a incapacidade de conhecer-apreender o ser amado, assim como, a impossibilidade de distinguir entre ele e sua representação, irão determinar as situações vividas pelo casal. Estas começam pelo caráter profético do herói e da sua confiança nos astros (o casal mostra certo fascínio por astrologia). Mas é interessante notar que todos os pressentimentos iniciais tidos pelo narrador (como a morte do careca na página 21, ou a expectativa sobre quem bate a sua porta na página 58) são desmentidos pela narrativa, o que evidencia o sujeito entregue aos caprichos de um destino anunciado (pois o narrador sabe o que aconteceu), mas surpreendente (pois tudo ainda parece absurdo).
Além disso, a construção do texto revela uma história estagnada, que não permite mais a mudança de seus componentes, mas articulada por uma narração dinâmica, que, entre outros elementos, se sustenta em situações de suspense, quase policiais. Uma trama intrincada e às vezes rocambolesca para uma história fechada, imutável. Conflito que garante a tensão da personagem narradora, que apesar de todos os artifícios retóricos empreendidos, jamais poderá desviar o percurso de sua trajetória.
O cotidiano à beira do non-sense também decorre daí. Afinal, tudo parece ilógico para nós, que, diferente de Cauby, não sabemos o que pode estar por trás das atitudes e seres. Destaco, entre os absurdos da narrativa, o tatu Zacarias, herdado pelo narrador e que perdeu a capacidade de escavar. Mesmo ele, tem uma função precisa, pois representa o alquebramento do protagonista, principalmente ao fim do livro, além de simbolizar o desinteresse com as coisas da terra, vivido pelo narrador.
Mas um dos talentos mais evidentes de Aquino está na sua capacidade de intercalar cenas e histórias (seu livro O invasor também é uma obra-prima na construção de cenas e imagens que ocorrem sincrônicas). Ora, as cenas em paralelo servem para aumentar as possibilidades de sentido (como o menino rindo na página 44), podem também servir para salientar a situação das personagens (como o casal sorridente ao fundo, enquanto o careca conta sua história, na página 53). Contudo, os momentos mais impactantes são os inúmeros em que a prosa reveza-se entre do relato de Cauby e o de Altino, às vezes em momentos de extrema tensão, o que sugere a nivelação dos tempos presente-futuro, como ficará mais forte no (re)encontro que fecha a obra.
Outro momento intercalado está no longo trecho em que conhecemos o passado de Lavínia, a única parte do livro narrada em 3ª pessoa. Além disso, existe um outro texto subjacente ao enredo. O livro O que vemos no mundo, escrito pelo professor Schianberg e que serve de manual do protagonista nas questões do amor. É o único objeto, junto com sua câmera, que resiste a determinado incêndio localizado mais ao fim do texto. Há ainda, uma trama paralela envolvendo a guerra pelo ouro que irá causar a morte de um dos personagens principais.
No fim de tantos reveses, ficamos com a força de um amor sobrevivente, que resiste às inúmeras tramas paralelas e tempos narrativos como núcleo da história. Pois aqui ele também é uma doença contagiosa, sexualmente transmissível, um veneno que consome tudo. No caso narrativo, organiza tudo a partir de seu temperamento ilógico. O amor já está na negação da primeira frase. Elemento semiótico relacional do livro estabelece a não-necessidade e a não-causalidade como verossimilhança. No final, o narrador se permite outra interlocução, com seu receptor explícito “Você não teria esperança?” (229). Para deixarmos o livro em paz, temos que entender aqui uma brecha, o derradeiro ponto de fuga do amor segundo Marçal Aquino.


AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios. São Paulo. Companhia das Letras, 2005.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

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