quarta-feira, 7 de março de 2012

A morte como base da existência em quatro casos impertinentes


A culpa é de Heiddeger. O ser humano é ser para o fim, isto é, para a morte. Diferente dos demais animais, que simplesmente cessam de viver, o homem morre, e sua consciência permite que a morte seja um dos tantos atributos de sua existência. Viver assim é uma antecipação da morte, que se configura paulatinamente como a possibilidade irreparável da impossibilidade do ser. Por isso, o sujeito convive com uma negatividade que lhe é constitutiva, visto que ele nunca é totalmente, pois existe formulado pela presença de sua própria finitude. Esta ainda não aconteceu, mas condiciona tudo que se refere ao eu. Desta forma, o ser é constituído pelo momento em que deixará de ser. Ele é feito do nada que se produzirá ao fim de sua trajetória. O ser só pode ser o “aí” (dasein), pois estabelece este aí como prenúncio de um acolá (sua morte). Dizer que sou “aí” introduz a negatividade no ser, pois limita suas possibilidades de existir fora do “aí”.
Pois bem... Na Teogonia, Zeus, após as núpcias com sua irmã Deméter, que gera Perséfones, consegue o equilíbrio entre as pulsões dos vivos e a possibilidade da morte, que aqui também já aparece enquanto latência. Deméter é a deusa ligada à terra e sua fecundidade e se associa a Hades e ao escuro território do mundo dos mortos, fazendo circular e aflorar as forças nutrientes da vida. O ciclo vital tem como propulsor as vitaminas recicladas pela morte.
Dois exemplos distantes no tempo que tratam, também de forma diversa, da morte como imanência da vida, isto é, do ser vivente. A cultura, como não pode deixar de ser, não se absteve de tratar deste complexo. No que se refere à ficção, há inclusive a necessidade da narrativa para: (a) adiar a morte (As mil e uma noites); (b) evitá-la (Decamerão); (c) exaltá-la (Romantismos em geral); ou (d) fazê-la risível, como entre nós Manuel Bandeira, ou como o poemeto de Nabokov:

“Um silogismo:
os outros morrem.
Mas eu não sou outro;
assim, não morrerei.”

Porém, não foi da literatura que partiu o mote aqui discutido, mas da recém lançada HQ Daytripper, que será nosso texto introdutório para analisar algumas obras literárias que usam a morte como motivo básico para sua confecção.
A obra-prima dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá é um dos melhores exemplos recentes de como uma linguagem diferenciada (e bem empregada) pode inovar dentro de temas já amplamente trabalhados. Resumindo a história – o que em trabalhos desta qualidade é sempre um sacrilégio -, esta conta alguns dias na vida de Brás de Oliva Domingos, dias que representam uma mudança definitiva em sua existência. O que diferencia Daytripper de um relato “costumista”, do tipo “poesia no cotidiano” (como Umbigo sem fundo, por exemplo), é que, ao fim de todos os capítulos – cujos títulos geralmente referem-se às idades de Brás –, o protagonista morre.  Morre para aparecer vivinho de Oliva Domingos na página seguinte. No início do volume, ainda no paratexto, há a pertinente micro-descrição das duas linhas que habitam os quadrinhos, realismo e fantasia. Temos o realismo do cotidiano, ou seja, a naturalidade de uma vida simples, mas vista pela fantasiosa presença diegética da morte, que se manifestará muitas vezes durante a história.
A estética dos quadrinhos se encaixa de forma perfeita na proposta. Esta envolve a síntese expressiva de palavra e imagem, isto é, dentro de cada elemento mínimo de significação (quadro), temos um código sequencial (língua) e outro simultâneo (imagem). O resultado final, porém, conforme Will Eisner já expressou, é uma arte sequencial que narra a partir do encadeamento dos quadros, num processo semelhante à montagem cinematográfica (com a diferença de que a velocidade da leitura é determinada pelo leitor e que os quadros são estáticos). Obviamente há exceções, quadrinhos exclusivamente feito de imagens como Gon, de Masashi Tanaka, mas estes fogem ao comum.
Esta característica configuradora dos quadrinhos permite que vislumbremos, como nunca antes feito, o trajeto do sujeito em direção à morte. Trajeto este constituído por aquilo que lhe aconteceu e aquilo que poderia ter sucedido, pelo que lhe ocorreu de forma simultânea e pelas escolhas sequenciais que definem um ser diferente do que poderia ter sido. A morte aqui é, antes de mais nada, uma maneira de propor sentido, de estabelecer uma síntese do sujeito. A história de Brás não se manifesta apenas no sintagma, mas no paradigma das múltiplas escolhas e suas consequências que só significam quando o herói encontra a morte e podemos finalmente tentar interpretá-lo(a). Elementos sincrônicos e sucessivos que, de forma sincrética, definem a identidade do ser: quadrinhos puro.
Em Daytripper, a morte é um fim, mas também um ritual de passagem. Na sua manifestação mais superficial, revela os diversos “eus” que compõe o sujeito. A negatividade da morte está brilhantemente expressa, pois já que ela não coincide com o fim narrativo, permite que percebamos como ela habita o ser na forma de sua máxima negação, na pele de sua possível impossibilidade. E seu sentido só pode ser alcançado a partir da síntese ativa de sua presença-ausência múltipla, em cada fase da vida de Brás. “Esta é a história da minha vida”, diz ele, “Respire fundo abra os olhos e feche o livro”, no manifesto do que acabamos de dizer.
O começo do volume, a primeira morte de Brás, permite que vejamos o apuro técnico dos dois criadores. O herói aparece fora de nível, com o corpo inclinado, sobre um fundo avermelhado em um quadro retangular que ocupa todo o final da página. Se estivermos atentos, repararemos que abaixo do quadro há uma mancha escarlate no seu terno, que a seguir se revelará um imenso esguicho de sangue. O tom cromático do fundo rima com a mancha sanguínea, que, pela expressão no rosto do sujeito, o surpreendeu. No quadro seguinte, ele ainda está surpreso-chocado e dentro de um enquadramento mais afastado, mas de um ângulo semelhante, que revela o cenário de um bar. Ele continua deslocado do centro do enquadramento, num artifício básico para demonstrar alguém que busca um eixo, neste caso, existencial. Logo se compreende que a posição inferior do primeiro quadro, a descentralização do ser e a rima entre o sangue e o fundo efetivam um impasse existencial. A morte chega abrupta, mas o código tem todo o tempo do mundo para apreciá-la. O fato do plano do segundo quadrinho estar mais afastado é o prenúncio do olhar clínico que será empreendido pela narrativa acerca deste sujeito, o que permanecerá na narração em terceira pessoa que resume todas as mortes de Brás.
Falando da parte escrita, ela também é primorosa. Brás trabalha como escritor de obituários e não raras vezes o discurso assumirá também esta função, o que nos aproxima, pela empatia, com o herói. As mortes são narradas em tom impessoal contrastando com nossa expectativa, mas fiel à lógica cotidiana de Brás. Alguns balões são fundamentais para a composição da identidade das personagens. Quando desconfiamos do amigo de Brás no capítulo 7, o rabicho dos balões (aquela parte que liga o balão à personagem que fala) tem contornos trêmulos e acidentados, revelando a perda da razão do sujeito (páginas 172 e após). O ruído nos quadrinhos também é exclusivamente visual e cito um caso de seu uso aqui. A onomatopéia “bang”, na primeira morte de Brás, por exemplo, não só situa o disparo da arma, mas reforça a banalidade do acontecimento, através da sonoridade batida do signo. (inteligente e discreto. Principalmente se lembrarmos que os quadrinistas brasileiros não têm tradição de explorar os signos onomatopaicos – Ziraldo sendo uma exceção).
Os espaços são múltiplos. Abertos e fechados. Íntimos e coletivos. Coloridos e sombrios. Oníricos e realistas. Afinal, a vida precisa destes múltiplos vieses para contrastar com o espaço mortuário que é sempre um só, apesar de representado por diversas situações. Estes espaços são tratados por uma quadrinização nada ingênua.
Nas mortes de Brás, por exemplo, são extremamente significativos. Os fins dos capítulos, que coincidem quase sempre com os fins do herói, são narrados, na maioria das vezes, em planos afastados do protagonista (em somente um, sua mão aparece no primeiro plano, mas o foco da cena é justamente o segundo plano), predominantemente gerais (abrangendo seu corpo e ao redor dele), deixando de evidenciar o sujeito, para apreender algo maior do que ele. O quadro que mostra o mar, o que mostra os caminhões, o que mostra a janela de sua casa vista de fora (em angulação inferior, o que só adensa o afastamento) e o plano geral final do protagonista diante do mar, estão todos compostos desta forma.
Em alguns casos, como nas páginas 112-113, há o uso do quadro em duas páginas. Aqui é expresso o espírito de aventura infantil em um enquadramento retangular e que segue na página seguinte refletindo a inconsciência dos limites e o alargamento da experiência temporal. Fato inclusive representativo desta morte, simbolizada pela mão dentro do quadro e o corpo implícito ausente. Em outro exemplo, no enterro do pai de Brás (92-93), também há um quadro superior retangular que continua na outra página, desfamiliarizando o ritmo natural de leitura e impregnando a percepção de um tempo quantitativamente diferente. A presença da morte na escolha da largura do quadro. Coisa fina. Outro exemplo magistral encontra-se na página 25. O melhor amigo de Brás afirma “[...] a morte é parte da vida meu amigo”. Ambos estão em uma esquina (local bifurcado significativo por natureza) e do outro lado, à nossa esquerda, apenas um espaço em branco, o abismo das possibilidades de sentido.
O tempo é um caso a parte. Nada cronológico, está impregnado de sentido. Vimos Brás moço sucedendo ao velho sem respeito à ordem natural das coisas e devemos conviver com inúmeras temporalidades não só as retratadas, como a textual e a imagética. O início do capítulo 10 é uma covardia. Acompanhamos o parto de Brás, que, a essa altura já sabemos ter tido a complicação de uma queda de luz durante o processo, e de repente as páginas são todas pretas, com o diálogo entre os médicos e a parturiente. Alguém diz “Acabou doutor”, este responde “deixe-me mostrar”, e ao virar a página vemos Brás com 76 anos tendo um tumor diagnosticado. Nunca saberemos a qual cena pertence o diálogo. Mais uma camada de sentido a ser multiplamente avaliada.
Daytripper está repleta de outras sutilezas, que rendem páginas e páginas de análise. Mais um exemplo? O céu azul, no capítulo da infância de Brás que aos poucos, na viagem de volta, vai sendo substituído por um céu com fios, que terão tanta importância no desfecho desta parte. Sem falar nas referências, como o nome Brás (Brás Cubas, né), ou o cachorro Dante. Mas sua força está em representar a morte como um artefato composto pelos nossos atos e que nos define enquanto indivíduo. Além disso, morrer é um dispositivo narrativo. Fechamos um sentido, mas a narrativa segue adiante. Com qual Brás ficaremos? A vida e a morte se relacionam na complementação mútua de significação. Assim será nos textos literários dispostos a seguir.
Em 1842, Edgar Alan Poe, um dos grandes responsáveis pela maneira como hoje nos relacionamos com o macabro, com o mistério, com o sobrenatural e com a morte, publicou, pela primeira vez, “A máscara da morte rubra” no Graham`s Lady`s and Gentleman’s Magazine. A história inicia-se descrevendo a tal “Morte rubra”, peste mortífera cujo sintoma principal seria manchas vermelhas espalhadas pelo corpo. A explanação da doença liga-se à determinada recorrência cromática que produzirá o aparato visual mais explícito da trama, como veremos. Este é um espectro do conto. O outro se debruça sobre a figura do Príncipe Próspero, que após perder metade dos habitantes, reúne damas e cavalheiros sadios e se refugia numa abadia “fortificada” e “fartamente provida”. Lá, todos vivem alheios às catástrofes de fora, em um eterno clima de diversão. O narrador estabelece o binômio temático “Lá dentro, tudo isso e segurança. Lá fora, a ‘Morte rubra’”.
Após o intróito, o ponto inicial do conflito se estabelece: “Foi quase ao término do quinto ou sexto mês de sua reclusão, enquanto a peste raivava mais furiosamente lá fora, que o Príncipe Próspero ofereceu a seus mil amigos um baile de máscaras da mais extraordinária magnificência” (282). O trecho é repleto de eficácias discursivas. A começar pela dupla indecisão de seu início. Primeiramente, na indefinição do período exato do mês “toward the close”, no original.  A abstração do tempo vivido é fundamental para a significação diferenciada que o tempo terá durante a mascarada. Além disso, a imprecisão por via da instância narrativa contrastará com a contensão simbólica do tempo da festa. A passagem do tempo anterior é banal, não significativa para o efeito final da história. Entretanto, a escolha não é apenas de ordem conteudística, mas também estritamente formal, já que Poe está garantindo a unidade de tempo fundamental para o gênero em que está escrevendo.
Consequentemente, depois de descrever os salões em que ocorrerá a mascarada, que preza pelo simbolismo das cores, o narrador realça o relógio de ébano “gigantesco”, cujos toques de uma em uma hora obrigavam a orquestra a parar e “perturbava” a alegria dos salões. Quanto a estes, são sete, de cores distintas. O sétimo, único em que as cores da vidraça diferiam das do aposento, era preto com janelas vermelhas e a luz de fora emprestava a ele uma cor escarlate que afugentava os mascarados. Pelo espaço, Poe já revelou a intriga. O retumbar do relógio que interrompe a festa, insere o tópico da negatividade, anuncia o cessamento dos atos humanos.
Eis que surge um conviva estranho, cuja fantasia era feita de mortalhas tumulares e manchada de sangue: a “Morte rubra”. O príncipe corre por todos os salões (cujos contornos encurvados metaforizam a existência do ser) em direção ao intruso e jaz apunhalado aos seus pés. Poe não deixa de mesclar, mais uma vez, a figura da morte á temporalidade do recinto, já que o vulto do mascarado “permanecia ereto e imóvel dentro da sombra do relógio de ébano”. Descrevê-lo desta perspectiva expressionista é postular o tempo como a matéria da morte. Aqui, mais uma vez ela surge como negatividade, ligada a impossibilidade do contínuo. Quando vasculham sua fantasia, nada há por debaixo. Seu aspecto humano deve ser temporário, pois, aqui, a morte é o duplo do homem. É tudo que ele evita ser. Como na solução de qualquer doppelganger, um dos dois deve ser anulado.
Além disso, tal artifício revela a necessidade do homem de nivelar a morte ao seu eixo de referências. Compor sua forma à semelhança dos homens é a percepção de um complexo imanente ao ser. Travestimo-la de nós na simulação de que a entendemos.
Outra forma de personificação da morte está em As intermitências da morte, de José Saramago. O tema inicial parte de mais uma das ideias (de tipo kafkiano) “o que poderia ser”, presente em outras obras do português, como Evangelho segundo Jesus Cristo, A jangada de pedra, História do cerco de Lisboa, O ano da morte de Ricardo Reis, entre outros. A saber: O que poderia ser se a morte encerrasse suas atividades. A reposta saramaguiana é um caos repleto de inversões. Moribundos não desencarnam, vivendo em agonia, funerárias vão à falência, crescimento populacional descontrolado e, para piorar, uma máfia que leva as pessoas até o outro lado do país (nunca identificado), visto que lá a morte continua na ativa.
O acerto de Saramago está em subverter a metafísica da morte, provando que ela é antes uma questão político-econômico-social. Como tudo no mundo aburguesado, a morte tem uma função específica na organização da sociedade e está totalmente integrada nas engrenagens da vida dos homens. Este tratamento está afinado com as escolhas narrativas de Saramago. Aqui, como na maior parte de sua obra, o autor preza pela clareza da exposição, pelo realismo (ainda que mágico) das situações, entrando na mesma dubiedade manifesta em Daytripper. A morte é negativa (sem concretude), mas também positiva (passível de ser quantificável, inclusive). A narração, também como em Daytripper e em Poe, se distancia do narrado, pois o painel, nesta primeira parte do texto é necessário à trama. A morte, antes de ser uma questão do indivíduo, é um problema comunitário.
Os principais traços estilísticos de Saramago também estão aqui, mas adquirem um valor diferenciado frente ao insólito tema. Seus parágrafos em bloco, que não deixam espaço em branco para os olhos, e os diálogos sem marcações, permitem que apreendamos tudo como uma totalidade, pois não há estratificação visível em ambas as categorias. Além disso, a pontuação naturalizada em vírgulas e pontos tem dupla função. Primeiro, enfatiza o lugar dos itens no discurso, já que a maneira como leremos as frases resulta da localização do léxico e não da substituição dos pontos. O discurso deve acomodar o material humano, assim como acontece intradiegeticamente. Além disso, vírgulas e pontos finais resumem as relações entre elementos ao essencial: relação de termos, sucessividade de ações e fim. A existência conturbada do homem diante da própria finitude já está expressa pelo repertório sígnico.
É uma pena que Saramago tenha terminado este livro, pois no momento em que a Morte resolve voltar a matar e se interessar por um violoncelista, o autor cai em todos os problemas que sua prosa já apresentara em alguns outros projetos. Clichês, personagens femininas artificiais (no caso, a própria morte) e a paulatina substituição da tese (pois os romances de Saramago sempre tentam provar uma tese) pelo sermão de pastor ingênuo (longe dos trechos inspirados em Vieira, também presentes em toda sua obra).
Mesmo assim, os problemas não o impediram de produzir uma frase genial na maneira como concebe, sozinha, o ímpeto da figura da morte na existência humana e na sua ficcionalização. E trata-se da primeira do romance: “No dia seguinte ninguém morreu”. Gramaticalmente não estamos no presente. A ação da morte é futura, apesar do verbo estar localizado no passado. O gramatical seria: “no dia seguinte ninguém morrerá”. Por intermédio do verbo “morreu”, a morte se localiza no fato passado, já na adjetivação da única marcação temporal expressa “dia”, sua ação se localiza no futuro. A narrativa vive esta dupla tensão no presente, isto é, a vive como presença, por conseqüência, como humanidade. Como na distentio animi de Agostinho. Experiência humana na tensão da negatividade, pois, como foi dito, a morte não existe enquanto presença, ela é a anulação das possibilidades do ser. Mas quando ela se ausenta, a ferida no contínuo é ainda mais cruel, pois sugere a possibilidade infinita do humano. Resta narrar e narrar é tentar atenuar a tensão do ser passado e do seu ser futuro, cuja única certeza é a morte. A frase deve iniciar o romance, pois do contrário perceberíamos que o narrador se posiciona no futuro dos fatos contados, o que atenuaria (ou anularia) o efeito.
Terminaremos com um brasileiro. Outra obra que mescla o ideal com o real na maneira como pensa a morte. Trata-se da obra de Álvares de Azevedo, em que a morte, antes de tudo, é uma das formas manifestas do individualismo romântico, que, entre nós, foi o maior artífice. O cadáver de poeta, o poeta morto é uma das tantas maneiras de diferenciar-se dos demais. Num dos primeiros poemas de Lira dos vinte anos com o sugestivo título “O poeta”, começa o eu-lírico:

Era uma noite - eu dormia
E nos meus sonhos revia
As ilusões que sonhei!
E no meu lado senti....
Meu Deus! Por que não morri?
Por que do sono acordei?

                Aqui, a morte surge como fuga da realidade. O sono, considerado irmão da morte desde Hesíodo, que permite que o sujeito habite seu mundo ideal, exige a morte como fecho, pois a realidade é dolorosa. O verso que introduz o tópico é introduzido por uma ruptura rítmica que obriga uma pausa após o vocativo “Meu deus!”. A possibilidade da morte exige esta pausa na reflexão, e que é também o sujeito sensível ao encerramento de sua existência. A rima precisa “senti” / “morri” é a presença léxico-sonora desta percepção.
           Um dos principais diferenciais de Álvares de Azevedo no tratamento da morte está no grau acentuado de intimidade de seus poemas que mesclam o cotidiano peculiar do eu às situações insólitas (bem próximo dos textos analisados anteriormente). O prefácio da segunda parte de Lira dos vinte anos é a exaltação do cotidiano, e sua representação a partir dos sentidos, da sátira, da prosa dos nervos, das fibras, das artérias.
          Por isso, a primeira imagem de poeta que aflora nesta etapa é justamente a do poeta morto, no poema miscelânea (á moda de Byron) “Um cadáver de poeta”. O poeta de um reino fictício, Tancredo, falecido, está fora dos sentidos, logo ausente da “tanta inspiração” do mundo. Assim, como acentuamos antes, morrer também é se distanciar (entenda-se diferenciar) do mundo, visto que a morte do poeta será ignorada pela sociedade que lhe nega enterro, pois “não valia a sepultura”.
          Diz o início do texto:


De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!



A carga temporal, que, como já vimos, é uma das principais transfigurações do sentido da morte na arte, estabelece um forte conflito entre os verbos em pretérito imperfeito e o presente simples “resta”. O imperfeito abusa das iterações, atos sem singularidade e que generalizam as ações do ser. A única ação particular “restar” introduz o único item seguro de identificação do poeta e presntificado, “morto”. A morte é um atestado de caráter e permite que, a partir dela, se estabeleça o conflito entre o eu e a realidade que o circunda. Mais uma vez, a morte está diretamente vinculada à possibilidade de postularem-se sentidos.
Outras são as maneira de tratar a morte empreendidas por Álvares de Azevedo. Em “Lembrança de morrer” é solene. Em “O poeta moribundo”, sexta parte de “Spleen e charutos”, é paródico. Porém, há outro aspecto referente à morte que importa ser lembrado na obra do poeta: sua biografia. Afinal, a morte de Álvares de Azevedo encena em nossa história da literatura o exemplo máximo da negatividade imanente ao ser. Criou-se ao redor do poeta a imagem do gênio interrompido, a morte sendo paradoxalmente o fim de suas possibilidades, mas também a legitimadora do artista como o conhecemos. Morrer na tenra idade não só é a expectativa interrompida do talento que não vingará, como também a validação do poeta que poderia ter sido. Nas histórias literárias a morte do sujeito é um interpretante, isto é, possibilita e condiciona as proposições de sentido. Não é raro perceber as dificuldades dos acadêmicos de considerar os autores vivos em muitas de nossas histórias da literatura e alguns não se furtam de interromper seu roteiro antes da geração vivente. Álvares de Azevedo é, assim, um caso emblemático de autor que tem na própria morte o corrimão exegético da academia. Morrer significa.


AZEVEDO, Álvares. Poesias completas. São Paulo: Saraiva, 1962.

MOON, Fábio; BÁ, Gabriel. Daytripper. São Paulo: Panini Books, 2011.


POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia & ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.

SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Autor do texto: Daniel Baz dos Santos

Nenhum comentário:

Postar um comentário