sábado, 1 de dezembro de 2012

Chester Brown e um manifesto quadrinizado




“Embora tenha relatado os incidentes e conversas que compõem esta graphic novel de maneira razoavelmente fiel à minha memória, você deve ter em mente que a memória não é exata” – Chester Brown (p. X)

“Então, a experiência de pagar por sexo não é vazia quando a gente paga à pessoa certa” – Chester Brown (p. 227)



As histórias de caráter autobiográfico já chegaram aos quadrinhos faz algum tempo. Somente nos últimos anos, no Brasil, foram lançados trabalhos como Adeus, tristeza, de Belle Yang, Retalhos, de Craig Thompson, e Persépolis, de Marjane Satrapi para ficar com os exemplos mais populares. De todos estes, nenhum aborda com tanta naturalidade um assunto tão polêmico como Pagando por sexo, último lançamento de Chester Brown. Nas palavras do próprio autor, no prefácio da edição: “Neste livro, registro todas as vezes que paguei por sexo até o final de 2003 e todas as prostitutas com quem tive relações depois disso.” (p. IX). Sendo assim, acompanharemos durante mais de duzentas páginas a descoberta de um mundo fascinante e sensível que se esconde por trás de preconceitos e zonas de generalização difusas, em um percurso que aborda uma série de posturas morais, das quais a mais importante questiona a validade do amor romântico na sociedade atual (proveniente do conflito brilhantemente resumido: “querer transar, não querer namorar”).
Tudo isso é contado em uma técnica narrativa muito precisa. A começar pelo ritmo visual imposto pelo quadrinista, num padrão de dois quadros por linha, quatro linhas por quadro, totalizando um esquema de oito quadros por página. O esforço de criar uma norma rítmica tem duas funções básicas em Pagando por sexo. A primeira delas, como já foi percebido em outros quadrinhos aqui no Pato Fáustico, cria uma zona de familiarização com o leitor, na mesma medida em que trata de conteúdos com os quais ele provavelmente não está familiarizado. A forma, assim, é a primeira garantia de previsibilidade, facilitando a inteligibilidade de uma temática aguda. Mas, mais do que isso, a repetição da estrutura da página também ajuda a erigir o clima de rotina e de naturalidade que permeia todas as relações durante toda a história, numa quebra de estereótipos que anseiam por tramas envolvendo perversão e violência (algo discutido pelos personagens), e que nunca acontece.
Entretanto, nem tudo é previsibilidade em Pagando por sexo. De forma muito engenhosa, Chester Brown varia certas sutilezas compositivas, com destaque para o tamanho diferenciado dos capítulos, realçando o caráter particular de cada programa vivido pelo protagonista, o que impede que se banalize o ritmo do relato. Outros recursos icônicos são também muito bem utilizados. Ainda no primeiro capítulo, intitulado “Minha última namorada” as principais escolhas lingüísticas são estabelecidas. As imagens dos seres geralmente se mantêm estáticas com poucas transformações nas longas cenas de diálogos (principalmente entre o protagonista e seus amigos). Isto, aliado à ausência de expressões fortes no rosto de Chester, ajudam a compor seu caráter decidido e compenetrado (e não temos surpresa quando ele contabiliza, na página 60, quanto gastaria com uma namorada para ter menos sexo do que com as, mais econômicas, prostitutas). A mesma decisão narrativa que enfatiza o enorme número de pensamentos emitidos pelo protagonista e que circundam sempre suas ações. Assim, algo que poderia ser esteriotipadamente corporal, torna-se um fenômeno essencialmente psíquico. Além disso, as personagens das prostitutas nunca tem seus rostos revelados, o que aumenta ainda mais a importância dos monólogos interiores de Chester e sugere que suas amantes são uma construção tão pessoal e reflexiva que escapa à figuração. Pontos para o autor.
Com relação aos desenhos, o ponto de maior interesse é o traço genérico utilizado para realçar mais a abstração dos seres do que seu realismo. Estamos diante de um tipo de arte que usa a simplicidade para falar de temas adultos. O que é sempre um tributo ao movimento underground dos quadrinhos pós Harvey Kurtzman. O autor se concentra nos traços específicos, isto é, usa padrões gerais para definir um sujeito que participa de situações nada gerais. Assim, a facilitação a partir da identificação com o personagem equilibra o afastamento sentido pela situação que ele vivencia. Além disso, a pouca informação visual serve também para ressaltar o discurso dos envolvidos.
Ao fim do volume, páginas e mais páginas de anexo revelam as opiniões do autor acerca dos assuntos abordados em sua obra. No paratexto, Chester Brown se sente à vontade para ser ainda mais explícito e responder aos argumentos de quem condena sua escolha de vida. Sem medo de ser planfetário, o quadrinista exige uma função de sua arte ainda que fora da dimensão estética. Seria um uso redutor e condenável não fosse a qualidade narrativa da história de Pagando por sexo.


BROWN, Chester. Pagando por sexo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

Autor: Daniel Baz






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