Em 1881 começa
a ser publicado em jornal infantil aquele que em 1893 se tornaria, na forma de
livro, um dos maiores clássicos recentes da literatura ocidental. As aventuras de Pinóquio, de Carlo
Collodi (pseudônimo de Carlo Lorenzini), é um marco. Audaz, é construído tendo
como base certas constantes da literatura infantil, principalmente o caráter
moralista e a unilateralidade pedagógica que este tipo de ficção possui, mas
extrapola este limite com a construção de uma consciência malandra e
ambivalente demais para se contentar com um padrão ético exclusivo.
Seu charme
reside na exploração de um tema fascinante, os autômatos, e a instigante
essência do humano, precedido nisso por outros clássicos como o monstro de Frankenstein, a boneca Olívia de O homem de areia e sucedido pelo homem
de lata de O mágico de Oz, a boneca
Emília, de Lobato, etc. Pinóquio é um pedaço de pau animado (e é fundamental
notar que ele já possui vida antes de possuir forma humana) encontrado por
mestre Cerejo e presenteado a seu amigo Geppetto, em busca de material para
fazer um fantoche. Após a construção de Pinóquio, começa um percurso de
inúmeras aventuras, demonstrações episódicas da transformação do boneco em
menino, trajetória alegórica do que seria o ser humano e, principalmente, o que
a sociedade pensa sobre a formação do homem. Dessa forma, o processo de
humanização e de socialização é o centro do texto.
Uma das
facetas destas temáticas aparece na forma como os personagens se relacionam com
a lei. Já na sua primeira – de muitas – travessuras, Pinóquio faz Geppetto ser
preso, injustamente. Durante sua aventura, ele também será várias vezes detido
pela lei, num exercício de privação e ganho da liberdade que, muitas vezes,
independe da correção de sua conduta. A ambiguidade do estado de direito se
plasma na oscilação entre punição merecida e punição aleatória que rege as
conseqüências dos atos de Pinóquio. Seu caráter questionável, de “malandro
sabido”, como diz o grilo falante (p.130) se popularizou pela ênfase dada na
mentira, principalmente a partir da adaptação animada da Disney. Contudo, os
episódios envolvendo o nariz são pouco incidentais, ocorrendo apenas duas vezes
e sempre relacionadas a lorotas contadas para a sua fada protetora (a primeira
ocorrência surge na página 143)
É impossível
entender as trapaças, malandragens e ludíbrios do boneco sem relacioná-las com
o posterior arrependimento que se segue a todos estes atos. O caráter
ambivalente de sua conduta, que pende do erro para o arrependimento, do
arrependimento para o erro, simula a adaptação tortuosa da vida em sociedade,
funcionando como metáfora da nova cidadania italiana (o período histórico da
obra é o da unificação da Itália), mas também análogo a qualquer processo de
humanização, visto que enfatiza a metamorfose mais importante, ou seja, aquela
que ocorre de dentro para fora. Pinóquio tem dois caráteres conflitantes e
convivendo. Duas feições que oscilam na medida em que ele se torna consciente
da responsabilidade de seus atos. Além disso, é importante notar que nunca são
os conselhos alheios, mas a decisão individual do sujeito que lhe permite
adentrar os caminhos certos e errados e compõe sua jornada em prol da
metamorfose. Nesse sentido, o grilo original é muito mais interessante, pois
lida justamente com esta dimensão ambígua do boneco. Ao surgir como a
consciência do herói, o pequeno animal falante é assassinado pelo furioso autômato
de madeira, irritado com as inúmeras censuras que o inseto lhe direcionara. Os
conselhos do animal de nada adiantam, mostrando que não é o que o outro
determina, mas as escolhas “pessoais” que podem fazer Pinóquio “acostumar-se a
ser um menino de bem” (p. 209). Assim como o pedaço de pau já tinha vida antes
de ter forma de um menino, o direito a existência não é imanente ao homem, mas
efeito de conquista e formação. Por isso, é somente ao reencontrar a fada e
descobrir que não vai crescer que o herói deseja se tornar homem finalmente (p.
208).
Aqui, surge
uma série de contradições que moldam o caráter do boneco de madeira. Todos
dizem que um verdadeiro menino gosta de estudar, mas seus colegas de classe são
“verdadeiros meninos” e abominam o estudo (p. 223). Assim, Pinóquio passará por
outros tipo de metamorfoses até entender o que realmente é ser um homem. Transformar-se-á
em cachorro (bestialidade), em enforcado (para aprender a força da morte), etc.
No “país dos folguedos” se transforma em burrico, maldição que assola meninos
preguiçosos e irresponsáveis. E, somente ao realizar a derradeira boa ação de
dar dinheiro para fada necessitada, poderá finalmente se tornar um menino (p.
341).
Mesmo os
espaços pelos quais Pinóquio cruza atestam os horizontes móveis do mundo e as amplas
possibilidades de escolha do sujeito. Sua peregrinação picaresca passa pela
pequena aldeia perto da casa de Geppetto, arcaica e campestre. Depois, o boneco
visita a cidade dos pega-trouxas, em que o mundo é às avessas, o teatro de
Manjafogo, a ilha das abelhas operárias e o já citado país das brincadeiras. A
profusão de lugares reforça o aprendizado de Pinóquio, além de ser comum a toda
picaresca, como Ítalo Calvino, no ensaio que complementa a edição, já nota lucidamente.
Um dos objetivos de Pinóquio e motor de suas aventuras é a perda/ganho de
dinheiro, seja por trapaça (o gato e a raposa lhe enganam), seja por escolha
(usar o dinheiro de Manjafogo para outros fins que não os corretos). Mesmo isso
é subvertido por Collodi, ao apresentar personagens paupérrimos, miseráveis
mesmo como centro de sua fábula, o que ele confirma nas primeiras linhas do
texto:
“Era uma vez...
- Um rei – dirão logo os meus pequenos leitores.
Não meninos, vocês se enganaram. Era uma vez um pedaço de
pau.” (p. 8)
Muito mais do que um livro
infantil, Collodi apresenta um tratado sobre o insignificante, sobre a pobreza,
a fome, o imitativo baixo (como diria Northrop Frye) como ângulo da emergência
da humanização.
Para
concluir, escolho o momento emblemático (além de encantador) em que Pinóquio
encontra Geppetto dentro do peixe-cão e resume-lhe tudo o que lhe aconteceu até
então:
“Imagina que,
no dia em que o senhor, meu pobre pai, vendeu o próprio casaco para me comprar
uma cartilha a fim de eu ir para a escola, eu fugi para ver os fantoches, e o
titereiro me quis botar fogo no fogo para eu lhe cozinhar o carneiro assado,
esse mesmo que me deu depois cinco moedas de ouro para lhe trazer, mas aí
encontrei a Raposa e o Gato, que me levaram para a hospedaria do Camarão
Vermelho, onde comeram com lobos, e eu saí sozinho de noite e encontrei os
assassinos, e se puseram a correr atrás de mim, e eu ia correndo e ia correndo
e eles sempre atrás, e eu correndo até que ne enforcaram num galho daquele
Carvalho Gigante, de onde a bela Menina dos Cabelos Turquesa me mandou tirar
com a carruagem pequenina, e os médicos, quando me examinaram, disseram logo:
‘Se não está morto, é sinal de que ainda está vivo’, e aí acabei soltando uma
mentira e meu nariz começou a crescer que não passava mais pela porta do
quarto, motivo pelo qual fui com a Raposa e o Gato enterrar as quatro moedas de
ouro, pois uma tinha gasto na hospedaria, e o papagaio começou a rir, e
vice-versa; e em vez das duas mil moedas não encontrei mais nada, e quando o
juiz soube que eu tinha sido roubado, de repente mandou-me botar na cadeia,
para dar uma satisfação aos ladrões, de onde ao sair, vi um belo ramo de uvas
num pomar, onde fiquei preso numa armadilha, e o lavrador daquela santa região
me botou uma coleira de cachorro para eu montar guarda do galinheiro, mas
reconhecendo minha inocência me deixou seguir [...]”
O trecho
demonstra duas características constitutivas de Pinóquio, fundamentais para o
entendimento do projeto de Collodi. A primeira delas trata-se da
impossibilidade que o boneco tem de entender a totalidade das situações que
aconteceram com ele. Fatos desconectados são postos lado a lado em seu discurso
e acontecimentos intimamente ligados são contados de forma assindética e
fragmentada, o que nos leva à segunda característica, o ritmo oral que
tangencia toda a história do novo menino. Se a história aborda a formação do
homem, o faz por intermédio de uma consciência que não entende este processo e
de uma linguagem que convida a desmontagem e a reconcatenação de episódios
(como Calvino também percebe). A célebre ideia de Bildung é trabalhada de forma multivalente e pluridirecional. A
moral da história só é adquirida pelo leitor depois das idas e vindas da
linguagem, das múltiplas tonalidades das vozes que preenchem o mundo e, mesmo
assim, pode circunscrever um herói incapaz de explicar o que aprendeu. Pinóquio,
nesse sentido, está no limite da (de)formação. Um herói infantil, malandro e
desentendido é perspectivado por um narrador que o usa de exemplo e se
interessa por ele, permitindo que, da união destas duas consciências
divergentes, brote o turbilhão discursivo que é As aventuras de Pinóquio e sua ética informal.
COLLODI, Carlo. As aventuras de Pinóquio. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
Autor: Daniel Baz
Nenhum comentário:
Postar um comentário