domingo, 28 de abril de 2013

Pinóquio: um herói desentendido e informal




Em 1881 começa a ser publicado em jornal infantil aquele que em 1893 se tornaria, na forma de livro, um dos maiores clássicos recentes da literatura ocidental. As aventuras de Pinóquio, de Carlo Collodi (pseudônimo de Carlo Lorenzini), é um marco. Audaz, é construído tendo como base certas constantes da literatura infantil, principalmente o caráter moralista e a unilateralidade pedagógica que este tipo de ficção possui, mas extrapola este limite com a construção de uma consciência malandra e ambivalente demais para se contentar com um padrão ético exclusivo.
Seu charme reside na exploração de um tema fascinante, os autômatos, e a instigante essência do humano, precedido nisso por outros clássicos como o monstro de Frankenstein, a boneca Olívia de O homem de areia e sucedido pelo homem de lata de O mágico de Oz, a boneca Emília, de Lobato, etc. Pinóquio é um pedaço de pau animado (e é fundamental notar que ele já possui vida antes de possuir forma humana) encontrado por mestre Cerejo e presenteado a seu amigo Geppetto, em busca de material para fazer um fantoche. Após a construção de Pinóquio, começa um percurso de inúmeras aventuras, demonstrações episódicas da transformação do boneco em menino, trajetória alegórica do que seria o ser humano e, principalmente, o que a sociedade pensa sobre a formação do homem. Dessa forma, o processo de humanização e de socialização é o centro do texto.
Uma das facetas destas temáticas aparece na forma como os personagens se relacionam com a lei. Já na sua primeira – de muitas – travessuras, Pinóquio faz Geppetto ser preso, injustamente. Durante sua aventura, ele também será várias vezes detido pela lei, num exercício de privação e ganho da liberdade que, muitas vezes, independe da correção de sua conduta. A ambiguidade do estado de direito se plasma na oscilação entre punição merecida e punição aleatória que rege as conseqüências dos atos de Pinóquio. Seu caráter questionável, de “malandro sabido”, como diz o grilo falante (p.130) se popularizou pela ênfase dada na mentira, principalmente a partir da adaptação animada da Disney. Contudo, os episódios envolvendo o nariz são pouco incidentais, ocorrendo apenas duas vezes e sempre relacionadas a lorotas contadas para a sua fada protetora (a primeira ocorrência surge na página 143)
É impossível entender as trapaças, malandragens e ludíbrios do boneco sem relacioná-las com o posterior arrependimento que se segue a todos estes atos. O caráter ambivalente de sua conduta, que pende do erro para o arrependimento, do arrependimento para o erro, simula a adaptação tortuosa da vida em sociedade, funcionando como metáfora da nova cidadania italiana (o período histórico da obra é o da unificação da Itália), mas também análogo a qualquer processo de humanização, visto que enfatiza a metamorfose mais importante, ou seja, aquela que ocorre de dentro para fora. Pinóquio tem dois caráteres conflitantes e convivendo. Duas feições que oscilam na medida em que ele se torna consciente da responsabilidade de seus atos. Além disso, é importante notar que nunca são os conselhos alheios, mas a decisão individual do sujeito que lhe permite adentrar os caminhos certos e errados e compõe sua jornada em prol da metamorfose. Nesse sentido, o grilo original é muito mais interessante, pois lida justamente com esta dimensão ambígua do boneco. Ao surgir como a consciência do herói, o pequeno animal falante é assassinado pelo furioso autômato de madeira, irritado com as inúmeras censuras que o inseto lhe direcionara. Os conselhos do animal de nada adiantam, mostrando que não é o que o outro determina, mas as escolhas “pessoais” que podem fazer Pinóquio “acostumar-se a ser um menino de bem” (p. 209). Assim como o pedaço de pau já tinha vida antes de ter forma de um menino, o direito a existência não é imanente ao homem, mas efeito de conquista e formação. Por isso, é somente ao reencontrar a fada e descobrir que não vai crescer que o herói deseja se tornar homem finalmente (p. 208).
Aqui, surge uma série de contradições que moldam o caráter do boneco de madeira. Todos dizem que um verdadeiro menino gosta de estudar, mas seus colegas de classe são “verdadeiros meninos” e abominam o estudo (p. 223). Assim, Pinóquio passará por outros tipo de metamorfoses até entender o que realmente é ser um homem. Transformar-se-á em cachorro (bestialidade), em enforcado (para aprender a força da morte), etc. No “país dos folguedos” se transforma em burrico, maldição que assola meninos preguiçosos e irresponsáveis. E, somente ao realizar a derradeira boa ação de dar dinheiro para fada necessitada, poderá finalmente se tornar um menino (p. 341).
Mesmo os espaços pelos quais Pinóquio cruza atestam os horizontes móveis do mundo e as amplas possibilidades de escolha do sujeito. Sua peregrinação picaresca passa pela pequena aldeia perto da casa de Geppetto, arcaica e campestre. Depois, o boneco visita a cidade dos pega-trouxas, em que o mundo é às avessas, o teatro de Manjafogo, a ilha das abelhas operárias e o já citado país das brincadeiras. A profusão de lugares reforça o aprendizado de Pinóquio, além de ser comum a toda picaresca, como Ítalo Calvino, no ensaio que complementa a edição, já nota lucidamente. Um dos objetivos de Pinóquio e motor de suas aventuras é a perda/ganho de dinheiro, seja por trapaça (o gato e a raposa lhe enganam), seja por escolha (usar o dinheiro de Manjafogo para outros fins que não os corretos). Mesmo isso é subvertido por Collodi, ao apresentar personagens paupérrimos, miseráveis mesmo como centro de sua fábula, o que ele confirma nas primeiras linhas do texto:

“Era uma vez...
- Um rei – dirão logo os meus pequenos leitores.
Não meninos, vocês se enganaram. Era uma vez um pedaço de pau.” (p. 8)

Muito mais do que um livro infantil, Collodi apresenta um tratado sobre o insignificante, sobre a pobreza, a fome, o imitativo baixo (como diria Northrop Frye) como ângulo da emergência da humanização.
Para concluir, escolho o momento emblemático (além de encantador) em que Pinóquio encontra Geppetto dentro do peixe-cão e resume-lhe tudo o que lhe aconteceu até então:

“Imagina que, no dia em que o senhor, meu pobre pai, vendeu o próprio casaco para me comprar uma cartilha a fim de eu ir para a escola, eu fugi para ver os fantoches, e o titereiro me quis botar fogo no fogo para eu lhe cozinhar o carneiro assado, esse mesmo que me deu depois cinco moedas de ouro para lhe trazer, mas aí encontrei a Raposa e o Gato, que me levaram para a hospedaria do Camarão Vermelho, onde comeram com lobos, e eu saí sozinho de noite e encontrei os assassinos, e se puseram a correr atrás de mim, e eu ia correndo e ia correndo e eles sempre atrás, e eu correndo até que ne enforcaram num galho daquele Carvalho Gigante, de onde a bela Menina dos Cabelos Turquesa me mandou tirar com a carruagem pequenina, e os médicos, quando me examinaram, disseram logo: ‘Se não está morto, é sinal de que ainda está vivo’, e aí acabei soltando uma mentira e meu nariz começou a crescer que não passava mais pela porta do quarto, motivo pelo qual fui com a Raposa e o Gato enterrar as quatro moedas de ouro, pois uma tinha gasto na hospedaria, e o papagaio começou a rir, e vice-versa; e em vez das duas mil moedas não encontrei mais nada, e quando o juiz soube que eu tinha sido roubado, de repente mandou-me botar na cadeia, para dar uma satisfação aos ladrões, de onde ao sair, vi um belo ramo de uvas num pomar, onde fiquei preso numa armadilha, e o lavrador daquela santa região me botou uma coleira de cachorro para eu montar guarda do galinheiro, mas reconhecendo minha inocência me deixou seguir [...]”

O trecho demonstra duas características constitutivas de Pinóquio, fundamentais para o entendimento do projeto de Collodi. A primeira delas trata-se da impossibilidade que o boneco tem de entender a totalidade das situações que aconteceram com ele. Fatos desconectados são postos lado a lado em seu discurso e acontecimentos intimamente ligados são contados de forma assindética e fragmentada, o que nos leva à segunda característica, o ritmo oral que tangencia toda a história do novo menino. Se a história aborda a formação do homem, o faz por intermédio de uma consciência que não entende este processo e de uma linguagem que convida a desmontagem e a reconcatenação de episódios (como Calvino também percebe). A célebre ideia de Bildung é trabalhada de forma multivalente e pluridirecional. A moral da história só é adquirida pelo leitor depois das idas e vindas da linguagem, das múltiplas tonalidades das vozes que preenchem o mundo e, mesmo assim, pode circunscrever um herói incapaz de explicar o que aprendeu. Pinóquio, nesse sentido, está no limite da (de)formação. Um herói infantil, malandro e desentendido é perspectivado por um narrador que o usa de exemplo e se interessa por ele, permitindo que, da união destas duas consciências divergentes, brote o turbilhão discursivo que é As aventuras de Pinóquio e sua ética informal.
 
COLLODI, Carlo. As aventuras de Pinóquio. São Paulo:  Cosac Naify, 2012.





Autor: Daniel Baz

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